10 Agosto 2019
Em Thoreau, el salvaje (Godot), sobre o qual antecipamos algo, Michel Onfray examina os princípios de uma vida sábia.
“Thoreau ensina a verdadeira revolução, a única que vale a pena e que não derrama sangue: essa que permite mudar a ordem do mundo, mudando-se e convidando os outros a mudar”, destaca o texto abaixo, publicado por La Nación, 04-08-2019. A tradução é do Cepat.
Henry David Thoreau associou seu nome a dois fatos que o resumem muito bem: uma estadia na prisão e a vida em uma cabana. Dito assim, as coisas assumem uma bela amplitude: imagina-se a vida do rebelde atrás das grades, a existência do homem inflexível forçado pelo poder a estagnar seus anos em um calabouço, uma espécie de companheiro de rota de Auguste Blanqui, que passou quase toda a sua vida na prisão.
Além disso, o filósofo é convertido para nós em um Diógenes estadunidense, vivendo em uma cabana, no meio do bosque, inverno e verão, comendo bolotas, assando sua pesca e a sua caça. Nós o imaginamos ranzinza e misantropo, sem receber ninguém, preferindo a companhia das bestas às dos homens.
No entanto, a biografia faz justiça a estes clichês românticos... Thoreau efetivamente esteve preso em 1846, por se recusar a pagar os impostos que serviam para manter o regime escravista ao qual se opunha. Mas, por este crime, foi alojado uma noite em um pequeno espaço municipal. O guarda, que o conhecia bem, quis pagar por ele. Thoreau não aceitou.
Foi libertado na manhã seguinte porque uma alma boa de sua família, provavelmente sua tia, pagou a dívida de maneira anônima, diante do que ele não se rebelou. Preso na véspera pela polícia, enquanto voltava de seu sapateiro, foi ao artesão assim que o libertaram. Assim que retirou seus sapatos, foi colher uva-do-monte.
Em relação à pequena cabana, efetivamente, viveu ali, mas de maneira irregular, entre os dias 4 de julho de 1845, dia da declaração da independência dos Estados Unidos, e 6 de setembro de 1847. Ou seja, foi um lugar de férias, segundo seus caprichos, durante vinte e seis meses. A cada dois dias, visitava os seus, que estavam a poucos minutos a pé, e levava algo para comer que não fosse a pesca do lago e a marmota do bosque.
Em defesa de Thoreau, ele não criou o mito, como tampouco o sustentou. Nunca ocultou estes dados biográficos, ao contrário, é ele próprio quem dá os detalhes de sua prática da cabana. A cabana é para Thoreau a oportunidade de provar que o transcendentalismo não é um assunto de livros, mas, sim, uma ocasião existencial. Inclusive, uma só noite de cela e a prática intermitente na cabana foram o suficiente para mostrar que o filósofo vivia suas ideias e pensava sua vida, que associava a teoria e a prática, o pensamento e a ação, a filosofia à vida, que não era um professor de filosofia, mas um filósofo.
Emerson havia emprestado o terreno no qual Thoreau construiu a cabana à beira do lago Walden, um lugar proustiano para ele, onde frequentava quando criança, com sua avó, e onde com seus pais, aos sete anos, havia preparado um prato com peixes sobre um banco de areia.
Thoreau imagina o lago sem fundo, sem entrada e sem saída, como repleto de uma água sagrada capaz de o lavar do pecado original da civilização. Lava-se no lago todos os dias, seja qual for a estação. Quando sua superfície está congelada, estira-se sobre o gelo e olha através dele a vida nas profundidades. Estuda a diminuição e o aumento no nível de água, a respiração do lago, como se tratasse de um ser vivo...
A cabana ocupa 13,5 metros quadrados de solo (3 metros por 4,5) e 2,5 metros de altura. Thoreau instala três cadeiras para não receber mais que duas pessoas por vez. Coloca uma cama e uma mesa. Uma lareira lhe permite se aquecer. Recebe viajantes, conterrâneos, lenhadores, escravos fugitivos. Também filósofos.
Publica Walden em 1854. Trata-se de um autêntico grande livro de filosofia. Não encontramos nenhum conceito, nenhum personagem conceitual, mas, sim, uma reflexão sobre as condições de possibilidade de uma experiência existencial: como levar uma vida filosófica? Thoreau não convida para que seja imitado, mas mostra como é possível fazer, tornando-se cada um responsável de inventar seu caminho, de encontrar sua via.
Um grande e verdadeiro livro de filosofia existencial, disse. Com efeito, Thoreau propõe o que ele chama de uma “medicina eupéptica”, uma medicina para produzir o bem, e para distanciar o mau, o mal. O que prescreve esta medicina? Agradecer o esplendor de cada manhã, opor uma vontade disto ao movimento natural da negatividade que nos arrasta para o pessimismo, desejar a felicidade que não está dada, mas, sim, construí-la, colocar-se ou voltar a se colocar no centro de si mesmo, transformar os inconvenientes em vantagens, buscar o positivo no negativo, querer fazer de nossa vida uma festa.
Convida igualmente a rejeitar “a vida mesquinha”. A vida mesquinha é a vida voltada para os falsos valores: o dinheiro, a honra, o poder, as riquezas, a propriedade, a reputação. É a vida suja pelos vícios da sociedade de consumo: cobiçar, comprar, possuir, consumir, substituir. É também uma vida falsa com os outros: uma vida reduzida à superfície, às aparências, à mundanidade, aos salões, ao charlatanismo.
Quem poderia não subscrever esta constatação: “É muito evidente que muitos de vocês vivem existências medíocres e vazias”? Ou a esta: “A maioria dos homens vivem existências de tranquila desesperança”? Com efeito, nós não nos pertencemos, perdemos nossa vida em vez de ganhá-la, vivemos como máquinas, confiamos sempre nossa vida ao dia seguinte.
O que fazer para não levar uma vida mesquinha? Tudo o que permita uma vida filosófica. Quer dizer? Thoreau apresenta receitas existenciais que são como exercícios espirituais no sentido da filosofia antiga. Consegue extrair algumas frases de Walden para obter princípios de vida como se tivessem sido ensinados por Sócrates ou Diógenes, Epicuro ou Sêneca.
Antes de examinar estes princípios para uma vida sábia, abro um parêntese para especificar que Thoreau pega emprestado de Sócrates o princípio do “conhece-te a ti mesmo”; reivindica sua ignorância modesta, “só sei que nada sei”, contra a ciência suficiente e pretensiosa dos filósofos que pretendem saber tudo acerca de tudo. Thoreau pratica, como Sócrates, a meditação diante da natureza e as paisagens.
Dos cínicos, toma emprestada a vida natural como arma de guerra contra a vida cultural, a rusticidade provocadora na vida mais concreta, a indigência que não se dá nele sem roupa suja e rejeição da higiene moderna, as lições de coisas dadas pela natureza em geral e pelos animais em particular, a insubmissão generalizada, a misantropia prática, até os golpes de bastão (metafóricos no caso de Thoreau) desferidos aos intrusos...
Dos epicuristas, assume uma dietética dos desejos suscetíveis de produzir um prazer que não se abandona a seus instintos, mas, sim, à construção de seus prazeres. Define a felicidade como ausência de problemas e, nessa esteira, encontra virtudes na frugalidade, na castidade, na continência. Coloca a ciência a serviço da moral: a física para Epicuro e Lucrécio, as ciências naturais para Thoreau.
Dos estoicos, assume a identificação de Deus, da Natureza e da força que a constitui. Faz da dor e do sofrimento representações sobre as quais é possível intervir para atenuá-las, inclusive eliminá-las. Acredita no formidável poder da vontade. Mostra-se tranquilo frente à morte porque sabe que não é desaparecimento, mas, sim, diluição no grande Todo...
[.] Walden comporta uma utopia política. Esta é ao menos minha hipótese. A coisa nunca se diz. Merece, no entanto, ser especificada. Thoreau descreve uma casa primitiva construída em uma idade de ouro, feita com materiais sólidos e sem ornamentos. Não tem forro, as estruturas são visíveis, as vigas estão despidas. É profunda como uma caverna, é necessária uma tocha para ver o teto. Uma só e vasta peça serve de cozinha, de dormitório, de escritório, de salão, de ático. Uma grande lareira aquece o viajante de passagem, que é sempre bem-vindo. Um guisado é cozinhado no fogo o tempo todo. O forno cozinha o pão que perfuma o ambiente. Pendurados em um prego, todos os objetos são úteis e visíveis.
[...] Um rei, uma rainha, um conterrâneo convivem ali em total simplicidade. Esta comunidade permitiria a prática das virtudes propugnadas pelo filósofo: simplicidade, austeridade, rusticidade, funcionalidade, verdade, autenticidade, frugalidade, sobriedade, sinceridade, felicidade, liberdade, bondade, tranquilidade, bem-estar.
Não é por acaso uma abadia de Thelema estadunidense? Uma utopia concreta que cada um pode começar a praticar a partir do instante em que toma a decisão? Thoreau ensina a verdadeira revolução, a única que vale a pena e que não derrama sangue: essa que permite mudar a ordem do mundo, mudando-se e convidando os outros a mudar.
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Thoreau retorna. A cabana de Walden, uma utopia política - Instituto Humanitas Unisinos - IHU