01 Julho 2019
Parentes recordam o jovem de 25 anos e sua filha de quase 2, os migrantes salvadorenhos que morreram afogados ao tentarem atravessar a fronteira dos Estados Unidos.
A reportagem é de Georgina Zerega, publicada por El País, 28-06-2019.
A casa dos Martinez em El Salvador permanece na penumbra, quase vazia. Dentro, a comovente história de uma mãe que não entende o que aconteceu. Do lado de fora, um punhado de pessoas que vêm constantemente ver, perguntar, dar os pêsames. As vidas truncadas de Óscar e Valeria, plasmadas em uma imagem que ainda percorre o mundo, se tornaram uma expressão das consequências da crise migratória. “Essa era minha menina”, diz Rosa Ramírez, dona Rosa, mãe e avó dos migrantes que se afogaram no domingo ao querer atravessar o rio Bravo. O vazio de sua ausência vem de antes: “Eles o deixaram no dia em que partiram e continua até hoje”.
Óscar, de 25 anos, sua mulher, Tania Ávalos, de 22, e a filha, de quase 2, partiram de El Salvador no dia 3 de abril pela manhã. Saíram de casa com uma pequena mala que continha algumas roupas e um pouco de dinheiro. Queriam pedir asilo político nos Estados Unidos, razão pela qual levavam uma carta das autoridades salvadorenhas justificando que estavam sendo perseguidos por gangues, com a esperança de que fosse suficiente. Algo que não era verdade, de acordo com a mãe, mas que estavam usando como desculpa para poder fugir. “Eu disse a ele até o último momento para não ir, mas ele insistia: ‘Mamãe, tudo vai correr bem’”, conta a mãe sentada na sala de estar, onde ainda estão espalhados alguns brinquedos de Valeria. A integridade com a qual se lembra do filho e da neta, apenas com os olhos chorosos em alguns momentos, contrasta com os gritos dolorosos dos primeiros dias que se viram pela televisão salvadorenha. “Ele dizia que queria dar um futuro melhor à filha. Iria trabalhar, economizar e depois voltar.
Dona Rosa, de 45 anos, apesar da maneira como se dirigem a ela, procura ficar em casa. Não tem força nem vontade de cruzar com ninguém. Nesta quinta-feira teve de ir às ruas de Altavista, o bairro de San Salvador onde mora, porque lhe disseram que tinha de assinar alguns papéis no trabalho para poder tirar alguns dias de folga. Ao vê-la, os vizinhos se aproximam para lhe dar os pêsames. A comoção da tragédia atingiu esta perigosa colônia de cerca de 300.000 habitantes, muitos deles jovens que, como Óscar, pensam em migrar. “Obrigada, obrigada”, diz com o olhar perdido sem parar muito tempo com ninguém.
“Bem comportado” e “um pouco malcriado”. Assim Rosa se lembra do filho, sobre o qual diz que nunca se envolveu com as gangues que têm grande presença no lugar. No dia em que lhe contou que seria pai pensou que fosse uma brincadeira, recorda. “Me dizia, rindo, ‘você vai ser avó’. Depois que a menina nasceu, conta, Óscar inclusive deixou de jogar futebol com os amigos para cuidar dela. “Em seu tempo livre ele se dedicava a cuidar do bebê, era muito carinhoso”, diz. “Sempre me lembrarei dele como um bom filho e um bom pai.”
Na tela do seu celular, Rosa mostra orgulhosa um vídeo da neta dançando com outra menina. “Este ela me mandou do México”, comenta, “tinha feito uma amiga”. O segundo aniversário de Valeria seria no próximo dia 18 de julho. Sua avó lembra ainda que toda a família se reuniu para comemorar seu primeiro ano. “Ainda não conseguia falar bem, mas me reconhecia como ‘avó’ e me jogava beijos”.
Antes de partir, Óscar e Tania levavam uma vida modesta, humilde. Ele trabalhava em uma pizzaria e ela em um restaurante de comida chinesa. Entre os dois, ganhavam cerca de 600 dólares (aproximadamente 2.291 reais) por mês. Não pagavam aluguel porque moravam com dona Rosa na pequena casa em Altavista. Seu sonho, conta a mãe, era poder ter seu próprio lugar, se tornar independente. “O salário aqui é muito pequeno, não era suficiente para comprar uma casa”, comenta Rosa.
O jovem casal contou à família que queria ir há seis meses, quando milhares de centro-americanos começaram a marchar em caravana rumo aos Estados Unidos, uma nova forma de migrar que era considerada mais segura. Tinham se casado recentemente e queriam tentar a sorte. Seus pais e irmãos entenderam as razões, mas os alertaram para os perigos de percorrer a rota pela América Central e pelo México. “Começamos a aconselhá-los a não ir, por causa das tragédias que víamos nos noticiários, mas eles já haviam tomado a decisão”, diz dona Rosa com resignação. Diante da insistência do filho, a mãe implorou que deixasse a menina sob seus cuidados, porque considerava a viagem muito perigosa para ela. “Não mamãe, a menina vem conosco”, lembra que ele lhe disse.
A viagem até a fronteira de Tapachula, no sul do México, durou quase um mês. Lá receberam um visto humanitário que lhes permitia residir legalmente no país enquanto tramitava seu pedido de asilo nos Estados Unidos. Apesar das instalações do Governo mexicano, que começou a endurecer os controles de imigração depois das ameaças de Donald Trump, o casal não hesitou em continuar rumo ao norte. Segundo a família, a travessia pelo território mexicano não foi um problema.
“Conversávamos com ele e sempre nos dizia que estava bem”, diz Rosa. O plano do casal era se encontrar nos Estados Unidos com amigos e conhecidos que também tinham migrado. Um deles é o irmão mais velho de Óscar, Carlos Martínez. “Quando ele me disse que estava vindo, eu falei: ‘Olha, é difícil ficar longe da família, acho que vou voltar’, mas ele continuava convencido”, conta por telefone da Virgínia.
A última vez que Óscar se comunicou com alguém da família foi com Carlos, seu irmão, através de mensagens de WhatsApp. No domingo de manhã, horas depois de chegar a Matamoros, em Tamaulipas, no norte do México, a um passo dos Estados Unidos, seu objetivo. A ponte internacional que atravessa a fronteira até Bronwsville, no Texas, estava fechada até segunda-feira e cheia de gente à espera de uma reunião com as autoridades migratórias. Há várias semanas, a Administração de Donald Trump acordou com o Governo de Andrés Manuel López Obrador que os solicitantes de asilo deveriam esperar por uma resposta em centros migratórios do lado mexicano. “Ele se precipitou, ficou desesperado porque as novas leis de asilo dizem que tinham de esperar ali”, lembra Carlos.
“Ele me escreveu e perguntou: ‘Quero seu conselho, pulo no rio ou vou para a Migração?’”, lembra Carlos sobre a mensagem que o irmão lhe enviou no domingo. “Disse a ele para não passar pelo rio porque era absurdo, ele estava com a menina. Ele me prometeu que não iria fazer isso”. Horas depois, recebeu um telefonema da irmã, de El Salvador. Acreditavam que Óscar havia desaparecido ao tentar atravessar a fronteira nadando. “Partiu meu coração, ele me prometeu, mas não seguiu meu conselho”.
Dona Rosa não recebeu nenhuma chamada até segunda-feira. A conversa durou apenas alguns segundos. A esposa do filho estava tendo uma crise nervosa e sua voz estava entrecortada. Tinha acabado de presenciar a descoberta dos corpos depois de ter passado a noite desesperada sem saber onde estavam. Tinham desaparecido diante de seus olhos algumas horas antes. Desde aquele dia, não conseguiu se comunicar com ela. Só ouviu balbucios. “Falei com pessoas que a acompanham. Ela está sendo ajudada por psicólogos porque fica muito nervosa toda vez que conversamos”. Rosa, que ainda aguarda a repatriação do corpo do filho e da neta, nunca esquecerá as palavras que ouviu ao telefone: “Óscar morreu, Óscar e a menina se afogaram”.
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México – EUA. “Ele queria dar um futuro melhor à filha”, conta mãe e avó dos migrantes que se afogaram - Instituto Humanitas Unisinos - IHU