12 Junho 2019
"Desenhada para atuar cumprindo um direito constitucional indígena que contraria frontalmente interesses econômicos poderosos, a FUNAI resiste aos trancos e barrancos. Não fosse a expertise acumulada pela instituição ao longo dos anos e sobretudo o intenso e crescente protagonismo indígena no cenário nacional, seu destino já poderia ter sido a extinção. Se um dia voltarmos a termos a normalidade democrática no país (?) e um novo governo tenha o interesse em tornar a FUNAI uma instituição menos vulnerável aos interesses ruralistas, creio que algumas medidas poderiam ser tomadas de imediato, especialmente com relação à presidência da instituição", escreve Leonardo Barros Soares, psicólogo, Mestre e Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Chegam notícias de que o presidente Jair Bolsonaro cedeu às pressões da bancada ruralista no congresso nacional e decidiu demitir o atual presidente da Fundação Nacional do Índio, general Franklimberg Ribeiro de Freitas. Era a segunda vez que o general de brigada exercia a função desde maio de 2017, após a breve e tumultuada passagem de Antônio Toninho Costa pela presidência do órgão. O próximo escolhido para a função será o 39º presidente desde a instituição da FUNAI em 1968, após a extinção do famigerado Serviço de Proteção aos índios em pleno regime militar. É uma notícia nada auspiciosa, uma vez que os rumores dão conta de que seu sucessor deverá ser necessariamente mais “simpático” às demandas ruralistas. Nós sabemos bem o que isso significa: paralisação das demarcações, revisão dos processos já iniciados, inércia com relação ao massacre Guarani-Kaiowá, dentre tantas outras ações ou inações que podem ser tomadas para prejudicar a já sofrida vida dos povos indígenas brasileiros em detrimento do complexo agroindustrial do país.
É de conhecimento até do mundo mineral que a situação da FUNAI é periclitante e sua degradação tem caminhado a passos largos. Ocorrendo cerca de pouco mais de um mês após o Acampamento Terra Livre, a demissão de seu presidente – diga-se de passagem, já também muito contestado por representar a remilitarização da política indigenista – apenas reforça a ideia de que, no rol de prioridades do estado brasileiro, os povos indígenas não têm lugar algum. A situação, portanto, é e sempre foi dramática, mas não há nada que não possa piorar. Nosso trabalho como intelectuais, no entanto, já dizia Bourdieu, é o de desdramatizar a análise para, se possível, orientarmos racionalmente as ações sobre o tecido social. Nesse pequeno texto, portanto, me debruço sobre a presidência da FUNAI como um objeto de investigação privilegiado para o entendimento da performance cambaleante da política indigenista no Brasil. Ao fim, proponho algumas modificações institucionais que, a partir de meu olhar enquanto cientista político, poderiam ter algum impacto positivo sobre a instituição sob análise.
Para começar, vale a pena olhar para a lista de presidentes da FUNAI e observar o tempo em que permaneceram à frente da instituição. O cargo é tão volátil que é mais útil fazer a contagem do tempo em meses e não em anos. Assim, temos o caso Ayrton Carneiro de Almeida, que foi nomeado em abril de 1985, mas não tomou posse devido a uma barreira formada por índios e funcionários do órgão para impedir sua entrada na sede da fundação, até a presidência de Márcio Meira, que é o recordista: presidiu a FUNAI por 61 meses. A média de permanência no cargo é de pouco mais de um ano. Olhar para a média, no entanto, é enganoso, pois não dá conta da imensa discrepância observada: oito presidentes não passaram de cinco meses; nove conseguiram passar mais de dois anos no cargo.
Apenas dois passaram quatro anos, o tempo de um mandato presidencial. Em suma, é uma cadeira que ninguém esquenta.
Para entender essa volatilidade funcional é importante ouvir o que os antigos presidentes têm a dizer. Nesse sentido, é valiosa a contribuição do pesquisador Felipe Milanez que, no período em que escrevia para a Revista Carta Capital, conseguiu entrevistar os últimos ocupantes do cargo de presidente da FUNAI. A leitura é instrutiva porquê nos leva, sem mediações, à avaliação direta dos atores em questão sobre os principais desafios e constrangimentos da função.
Há variações nas filosofias de trabalho, mas os entrevistados são unânimes ao afirmar que a principal força política com a qual se debate a FUNAI é a bancada ruralista. É no antagonismo entre demarcação de territórios tradicionais e pressão por sua liberação irrestrita para a prática de mineração, indústria madeireira, pasto para gado e plantio de soja que a dinâmica indigenista brasileira orbita nos últimos 30 anos. Donos de terra sempre foram poderosos no Brasil, continuam a ser e não há nem o menor indício de que irão perder pelo menos uma fração ínfima de seu poder num curto ou médio prazo. Ainda está por se fazer um estudo sobre seu poder de influência concreta na cadeia decisória das demarcações territoriais. Quem conhece agentes que trabalham no ministério da justiça sabe, no entanto, muito bem, como e quando as coisas acontecem.
Desenhada para atuar cumprindo um direito constitucional indígena que contraria frontalmente interesses econômicos poderosos, a FUNAI resiste aos trancos e barrancos. Não fosse a expertise acumulada pela instituição ao longo dos anos e sobretudo o intenso e crescente protagonismo indígena no cenário nacional, seu destino já poderia ter sido a extinção.
Se um dia voltarmos a termos a normalidade democrática no país (?) e um novo governo tenha o interesse em tornar a FUNAI uma instituição menos vulnerável aos interesses ruralistas, creio que algumas medidas poderiam ser tomadas de imediato, especialmente com relação à presidência da instituição. Primeiramente, seria importante que se estabelecesse um mandato fixo, digamos, de dois anos ou mesmo de quatro, juntamente com a eleição presidencial. Desde 1968 até hoje, segundo essa regra, teríamos tido 12 presidentes ocupando o cargo, e não 35. Ficaria mais fácil de acompanhar o balanço de trabalho do presidente, que poderia assinar a instituição de grupos de trabalho e concluir a demarcação de terras menores dentro de uma mesma gestão. Embora não fosse garantia contra manobras políticas, a posição ficaria muito menos vulnerável do que é hoje.
Em segundo lugar, o presidente da FUNAI deveria ser ou funcionário de carreira da instituição ou uma liderança indígena eleita no Conselho Nacional de Política Indigenista ou, alternativamente, uma presidência rotativa entre os dois segmentos. Isso conferiria maior legitimidade ao órgão e garantiria que os envolvidos na tomada de decisão tivessem domínio dos procedimentos burocráticos necessários à função e, ainda, livre trânsito em todos os territórios indígenas do país. Além disso, evitaria que a política indigenista brasileira fosse usada como moeda de troca de segunda categoria para o emprego de aliados políticos do governo do dia.
Por fim – e isso seria a proposta mais controversa, eu creio – a FUNAI deveria ser alçada à categoria de secretaria independente, vinculada diretamente à presidência da república.
O ministério da justiça seria a pasta que apenas cuidaria da retaguarda jurídica dos processos demarcatórios, e não um grande filtro burocrático que, na prática, restringe de forma considerável as terras indígenas que são efetivamente demarcadas no país. A dobradinha FUNAI e presidência da república poderia dar mais agilidade aos processos demarcatórios, que podem levar mais de dez anos para serem concluídos, um período incompreensivelmente longo para o reconhecimento de um direito estabelecido na constituição. Como dizia Rui Barbosa, justiça que tarda não é justiça, mas injustiça qualificada e manifesta.
Estas são apenas três propostas de mudança no desenho institucional da FUNAI e sua presidência, cujas consequências podem ser benéficas para o fortalecimento deste órgão. Não é uma lista exaustiva e outras propostas de reinvenção da burocracia envolvida na política indigenista brasileira são muito bem-vindas.
Há muitas perguntas sem respostas quando se trata de pensar em formas de tornar o processo demarcatório brasileiro mais ágil e justo. Nosso papel enquanto pesquisadores da política indigenista brasileira é o de contribuir para qualificar o debate através de estudos e propostas exequíveis de mudanças institucionais que venham a aperfeiçoar a atuação do estado brasileiro. Pensar em fortalecer a FUNAI, portanto, deve fazer parte de todo projeto político que vise tornar a sociedade brasileira mais justa, democrática e inclusiva.
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Precisamos falar da presidência da Funai - Instituto Humanitas Unisinos - IHU