05 Março 2019
Arcebispo de Marselha (desde 2006) e presidente da Conferência dos Bispos da França (desde 2013), dom Georges Pontier apresentará sua renúncia, aos 76 anos, no começo de julho. Ele conversou com Le Point, após a reunião dos bispos em Roma, da qual participou, sobre as notícias candentes dos últimos dias, durante os quais a Igreja Católica foi seriamente atacada em todas as frentes.
A entrevista é de Jérôme Cordelier, publicada por Le Point, 04-03-2019. A tradução é de André Langer.
Embora tardia, a recente reunião dos Bispos em Roma representa um importante ponto de inflexão na luta da Igreja contra os abusos sexuais, pois significou a liberação da palavra, do arrependimento e da interpelação. No entanto, a imprensa muitas vezes deteve-se apenas na raiva das associações das vítimas diante da ausência de “medidas concretas”, como tinha anunciado o Papa. O que pensa em relação a isso?
Nós vivemos quatro dias importantes e carregados de emoções. Não se tratava de uma assembleia de decisões, mas de uma consciência da magnitude do problema ao nível da Igreja universal. Dependendo das culturas, das histórias e dos continentes, a aproximação aos abusos sexuais é muito diferente, especialmente quando se trata da necessidade de tomar a palavra. Em alguns países da África, de modo especial, o encaminhamento do pensamento não é o mesmo que no Ocidente, por exemplo; nada foi colocado em prática para ouvir, não há a obrigação de denunciar. É preciso que a Igreja, uma instituição mundial, coloque as vítimas no centro e abandone a cultura do sigilo. Não devemos mais procurar proteger a instituição e acobertar os culpados.
Esta era uma preocupação primordial até agora?
Nós não ouvimos nem compreendemos suficientemente os danos que esses atos causaram. Muitas vezes, minoramos esses casos para não fazer barulho, e não consideramos com profundidade esses dramas que arruinaram tantas vidas. Eu mesmo realmente tomei consciência há alguns anos, e de maneira ainda mais viva neste tempo de preparação para a reunião em Roma, não lendo um artigo de jornal, mas me encontrando com as vítimas e ouvindo-as.
A cultura do sigilo dentro da Igreja tem sido um entrave importante na gestão desses assuntos?
Importante, sim. Temos uma cultura da discrição, até do sigilo, que é real e, neste caso, o respeito pelas pessoas, a presunção de inocência nos tornou muito prudentes. Infelizmente, esta maneira de fazer as coisas foi percebida como uma defesa da instituição. No que me diz respeito, eu não dimensionei a extensão dos fatos. Passei vinte anos da minha vida como bispo sem conhecer tais casos, nem perceber sua perversidade. Eu nunca teria imaginado que os sacerdotes poderiam ter se envolvido em atos tão desprezíveis que podem ser qualificados, às vezes, nem sempre, como crimes.
Você compreende a angústia e a impaciência das vítimas que esperavam dessa reunião de Roma medidas concretas?
Eu os compreendo, claro, sempre precavendo-os, como fez o Papa Francisco, contra as expectativas superdimensionadas e equivocadas. Na reunião, nós não votamos uma única vez. Tratava-se, repito, de uma reunião de interpelação, de conversão, de tomada de consciência. Nós fomos tomados pelo que ouvimos. Levamos um soco na barriga. Em nossos vários grupos de trabalho, fizemos propostas concretas, mas elas só vão aparecer dentro de algumas semanas ou até meses. A Igreja Católica é um grande transatlântico. É necessário dar tempo para a “máquina”, que funciona nos cinco continentes, avançar, permitir que os procedimentos e as competências das conferências episcopais sejam especificados. Haverá um antes e um depois no funcionamento da Igreja. Mas não podemos decidir da noite para o dia.
Este tempo não durou demais, não?
Certamente! Mas não devemos pensar que tudo esteja começando com a reunião de Roma. Na França, desde 2000, mas sobretudo desde 2016, ouvimos as vítimas e, graças a elas, reunimos informações. Desde 2002, distribuímos nas paróquias as primeiras ferramentas para administrar os casos de abusos sexuais. Em 2016, criamos um grupo permanente dentro da Conferência Episcopal, seguido de centros de escuta em várias dioceses. Formamos uma comissão, presidida por Alain Christnacht, para nos ajudar no discernimento e como lidar com os padres acusados. Em seguida, recrutamos uma delegada permanente para se ocupar com esses casos. Agora, dá-se a criação da comissão independente presidida pelo Jean-Marc Sauvé e na qual tomam assento 22 especialistas para tornar mais transparentes os casos de pedofilia dos últimos cinquenta anos.
Mas esta comissão apresentará suas conclusões apenas em 2021. Será necessário esperar todo esse tempo para jogar luz sobre esses crimes?
É por isso que continuamos trabalhando em quatro projetos para recolher os relatos e fazer sua memória. Nós não paramos a nossa ação enquanto esperamos que a Comissão Sauvé divulgue suas conclusões, claro que não!
O fosso entre a Igreja e a sociedade, particularmente na Europa e na França, está aumentando?
Esses acontecimentos chocam, provocam grandes questionamentos e impõem grandes sofrimentos a todos os sacerdotes que se sentem julgados, suspeitos. Mas não vejo que a Igreja esteja morta; vejo até belos sinais de vida. Na diocese de Marselha, na próxima Páscoa, batizaremos cem adultos de entre 18 e 60 anos, o mesmo número do ano passado. Na Jornada Mundial da Juventude (JMJ) no Panamá, em janeiro passado, a delegação francesa foi numericamente a segunda maior da Europa depois da Polônia – os mais numerosos foram os sul-americanos, uma vez que o evento aconteceu nesse continente. As demandas de formação para o conhecimento da fé e da vida espiritual estão aumentando. E eu não cito os múltiplos testemunhos de engajamentos de cristãos na vida social. Eu vejo estas coisas reconfortantes, mas eu estou marcado, nós estamos marcados, por esta imensa tristeza que é a nossa e pela vergonha que sentimos.
Em L'Archipel Français [O Arquipélago Francês] (Seuil), de cujo livro Le Point publica extratos com exclusividade, Jérôme Fourquet, diretor do departamento de opinião da agência de pesquisa IFOP, usando mapas e estatísticas, diagnostica uma França que entrou em uma “era pós-cristã”. Como responde a isso?
Esta hipótese faz pensar... Um conjunto de sinais mostra que nós mudamos de época nos países ocidentais e especialmente na Europa. Anteriormente, na França em particular, a sociedade civil se organizava em relação às coordenadas cristãs. Este tempo acabou, como vimos nos debates sobre o casamento para todos. As nossas sociedades se tornaram plurais no nível religioso, inclusive no mundo cristão, onde sensibilidades diferentes se expressam. Estou pensando em particular no evangelismo protestante.
Mas há também um mundo ateu que se destaca no espaço público. Vivemos em um momento em que a vida cristã não é mais um comportamento automático ou hereditário, mas uma escolha pessoal e uma escolha que muitas vezes é feita na idade adulta. Não devemos lamentar esta evolução: o número de catecúmenos acima de 18 anos em nosso país vem aumentando ligeiramente a cada ano na última década...
Jérôme Fourquet destaca “um deslocamento da matriz católica” que estruturou a sociedade francesa (há menos casamentos, mais divórcios, ter um filho fora do casamento tornou-se a norma)... O que acha disso?
De fato, não é mais “a matriz católica” que orienta decisivamente a vida na sociedade. Mas, paradoxalmente, o religioso continua muito presente. Nos debates, as posições dos crentes não são ocultadas. Não são eles que impõem a legislação, mas as reflexões dos grupos religiosos, a montante, são possíveis e são ouvidas.
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“A vida cristã não é mais um comportamento automático”. Entrevista com Georges Pontier, presidente da Conferência Episcopal da França - Instituto Humanitas Unisinos - IHU