Confrontar a realidade: o que faltou ao retiro dos bispos dos EUA

bispos. | Foto: Arquidiocese de Olinda e Recife

Mais Lidos

  • A ideologia da Vergonha e o clero do Brasil. Artigo de William Castilho Pereira

    LER MAIS
  • Juventude é atraída simbolicamente para a extrema-direita, afirma a cientista política

    Socialização política das juventudes é marcada mais por identidades e afetos do que por práticas deliberativas e cívicas. Entrevista especial com Patrícia Rocha

    LER MAIS
  • Que COP30 foi essa? Entre as mudanças climáticas e a gestão da barbárie. Artigo de Sérgio Barcellos e Gladson Fonseca

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

21 Janeiro 2019

A maior parte do falatório do frei capuchinho Raniero Cantalamessa no retiro dos bispos dos Estados Unidos presume que não há nada muito errado com o status quo. Ele parece indiferente à profundidade do problema ou ao modo como ele foi perturbador para as vítimas, suas famílias e, por extensão, para a comunidade católica mais ampla.

Publicamos aqui o editorial do National Catholic Reporter, 18-01-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Foi um evento altamente incomum quando a maioria dos bispos dos Estados Unidos se reuniram para um retiro de uma semana no início de janeiro, no Seminário Mundelein, nos arredores de Chicago. O evento foi impulsionado por um problema muito incomum e debilitante, a crise dos abusos sexuais do clero, que atormentou a Igreja nos Estados Unidos durante quase 34 anos.

O evento em si pode ter sido o objetivo principal – reunir um grupo de homens publicamente divididos sobre uma série de questões para rezarem e meditarem longe das pressões diárias. Só o tempo dirá se haverá benefícios em longo prazo.

Mais imediatamente, entretanto, o ponto central do encontro, no que se refere ao escândalo dos abusos, permanece bastante intrigante, particularmente à luz das 11 palestras proferidas pelo frei capuchinho Raniero Cantalamessa, pregador oficial da Casa Papal.

Ele começou anunciando que o encargo que recebeu do Papa Francisco era para que ele “conduzisse uma semana de Exercícios Espirituais para a Conferência Episcopal, para que os bispos, longe de seus compromissos diários, em um clima de oração e silêncio e em um encontro pessoal com o Senhor, pudessem receber a força e a luz do Espírito Santo para encontrar a solução certa para os problemas que afligem a Igreja dos Estados Unidos hoje”.

A esse respeito, ele disse: “Não vou falar sobre pedofilia ou dar conselhos sobre eventuais soluções. Essa não é a minha tarefa, e eu não teria competência para fazer isso”.

Está além da nossa competência e do espaço, aqui, lidar com autoridade com a efusão de erudição de Cantalamessa, um rio de palavras que conduziu os bispos por meio de discursos sobre o querigma, a ascese cristã, a oração, a espiritualidade, a conversão, a centralidade da pessoa de Jesus, todos entrelaçados com estudos bíblicos, teólogos da era moderna, a obra de Francisco, referências à cultura pop e uma análise ininterruptamente sombria da cultura contemporânea.

Mas não está além da nossa competência fazer perguntas. E há perguntas em abundância, especialmente rumo ao encontro em fevereiro, em Roma, dos presidentes das Conferências Episcopais de todo o mundo.

Primeiro, se a crise dos abusos sexuais e a sua má gestão por parte dos bispos foram o ímpeto para o retiro, por que isso foi retirado da pauta como um tópico a ser abordado? Por que os Exercícios Espirituais não poderiam envolver o fato de conduzir os bispos, de modo corporativo, aos requisitos básicos da tradição – dizer a verdade, arrepender-se, buscar o perdão – necessários para a reconciliação e para a reconstrução da confiança junto à comunidade?

Parece-nos que a maior parte do falatório de Cantalamessa presume que não há nada muito errado com o status quo. Ele parece indiferente à profundidade do problema ou ao modo como ele foi perturbador para as vítimas, suas famílias e, por extensão, para a comunidade católica mais ampla.

De fato, no início dos trabalhos, o pregador do papa, citando “A nuvem do desconhecimento” sobre a contemplação, urge os bispos a colocarem “uma nuvem de esquecimento” abaixo deles, deixando para trás “todo problema, projeto ou ansiedade que possamos ter neste momento”. Se o restante da Igreja tivesse tal luxo à disposição...

Cantalamessa vê a possibilidade de que o escândalo tenha levado a uma Igreja “muito mais evangélica e humilde”, “mais livre do poder mundano”.

A Igreja certamente foi humilhada, mas isso é principalmente o resultado de forças externas. Resta saber se ela realmente pode abraçar a humildade exigida.

Em uma seção que achamos especialmente infeliz, Cantalamessa reflete sobre a agonia de Cristo no horto.

“Devido aos escândalos da pedofilia, muitos bispos da Igreja Católica, a começar pelo bispo de Roma, estão experimentando agora exatamente o que Jesus experimentou no Getsêmani. Como vimos, a causa última do seu sofrimento (...) consistiu em tomar sobre si pecados que ele não havia cometido e em assumir a responsabilidade por eles diante do Pai.”

Deixaremos aos estudiosos a disputa por essa interpretação, mas não é preciso ser especialista para saber que a comparação é lamentavelmente despropositada. Ela poderia funcionar melhor se o pregador tivesse colocado as vítimas no horto. Os bispos foram levados a fazer um retiro não porque estivessem carregando os pecados dos outros, mas por causa daquilo que eles e seus coirmãos fizeram ou deixaram de fazer ao longo de décadas. Nesse exemplo, eles não se comparam muito favoravelmente com Jesus.

Esperamos que o encontro de fevereiro ofereça um confronto da realidade mais estimulante sobre a necessidade de uma reforma profunda das estruturas da Igreja e da cultura clerical.

Leia mais