05 Setembro 2018
O dia 16 de outubro de 2016 é um marco na segurança pública brasileira – ou em sua insegurança pública, melhor dizer. Na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Roraima, o Primeiro Comando da Capital (PCC) inicia sua ofensiva contra os antigos aliados do Comando Vermelho (CV). Dez pessoas são assassinadas e, depois, decapitadas. Seus corpos são jogados sobre colchões em chamas, em ritual que viraria padrão.
A reportagem é de Fred Melo Paiva, publicada por CartaCapital, 04-09-2018.
Tudo filmado pelos celulares dos presos, cujo funcionamento no interior das cadeias é franqueado pela falsa peleja de duas décadas entre governos e operadoras de telefonia móvel para barrar o sinal em presídios – além, claro, da corrupção que permite o ingresso dos aparelhos. Vídeos e fotos do massacre correram prisões do País inteiro através do WhatsApp.
Na guerra que se instalaria dali para a frente – “a maior sequência de assassinatos em massa da história do sistema carcerário mundial” –, uma espécie de “TV Prisão” passaria a noticiar e transmitir em tempo real a carnificina.
A prisão de Monte Cristo fora construída para 750 pessoas. Na ocasião do ataque do PCC, contava 1,5 mil. Parte do esgoto do prédio era despejado no meio do pátio, o que tornava o ar constantemente putrefato. Não havia atendimento médico nem assistência jurídica, ainda que quase mil fossem presos provisórios esperando por julgamento.
Com o uso de barracas de lona, placas de madeira e embalagens de marmitex, os detentos construíram uma vila completa, com lojinhas, igreja e até uma academia de ginástica no terreno da penitenciária. O descaso total propiciou a cooptação pelas facções organizadas do crime.
Monte Cristo é só mais uma cadeia a reproduzir o modus operandi com o qual a nossa segurança pública lida com esse tema: autoridades terceirizam aos próprios presos o controle de presídios lotados, livrando-se assim de qualquer investimento. A estratégia, disseminada pelo País, acabou por criar um monstro.
Os relatos e as informações acima fazem parte do livro A Guerra, de Bruno Paes Manso e Camila Nunes Dias, lançamento recente da Editora Todavia. Com o ritmo de um Taran-tino que se dedicasse aos fatos reais, conta, com pormenores nunca antes revelados, as condições e a trama que propiciaram a arquitetura e ascensão do PCC – a facção que nasceu nos presídios paulistas na esteira do Massacre do Carandiru, como “forma de se organizar para sobreviver ao sistema”.
Para além das descrições macabras das rebeliões e da abundante transcrição dos “salves” (as mensagens secretas da cúpula do PCC), A Guerra é um atestado de óbito da segurança pública no Brasil e uma prova do acordo de rendição do Estado na “Guerra às Drogas”.
O “Partido do Crime” organiza-se em células – as “sintonias” – instaladas em prisões e bairros pobres de centenas de cidades do Brasil. Conectadas, formam coletivos decisórios em âmbito regional, estadual, nacional e internacional. A Sintonia das Gravatas responde pela contratação e pagamento de advogados.
A Sintonia do Progresso, “das mais complexas da organização”, cuida de atividades que envolvem lucros. Desdobra-se em várias outras, como a Sintonia do Bob, especializada no comércio de maconha, e a 100%, que trabalha no ramo da cocaína pura. Além das atividades-fim, o Partido acumula a função de “agência reguladora do crime”.
Ficam em São Paulo as duas instâncias máximas do PCC – a Sintonia Geral Final e o Resumo Disciplinar, formadas por seleto grupo de apenados da Penitenciária II de Presidente Venceslau. O assassinato de alguém importante ou o ataque ao Estado, por exemplo, é decisão estratégica que cabe ao eminente colegiado.
Conforme explicou aos autores do livro um preso que havia pertencido à cúpula, “a Sintonia Geral Final é o STF”. No caso, SGF. Enquanto “o voraz apetite expansionista dos paulistas” transformou atacado e varejo de maconha e cocaína em empresa multinacional com sofisticado modelo de gestão e organograma, dá-se a impressão de que a polícia surgirá em peruas Veraneios e Opalas. Uns têm livre acesso aos smartphones. Outros parecem operar por fax.
Não fosse pelo tarantinesco relato das atividades criminosas que se desenvolvem se não nas barbas das autoridades, mas em suas próprias cadeias, não sendo, portanto, o caso de mandar prender porque presos já estão, bastaria debruçar-se sobre os números mais recentes da criminalidade no Brasil para atestar a falência generalizada de órgãos da segurança.
Segundo dados do 12o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), lançado há duas semanas, o Brasil registrou 63.880 assassinatos no ano passado – 175 por dia, sete por hora –, o suficiente para superar em 3% o recorde estabelecido em 2016.
“Há quatro anos éramos o 12o país mais violento do mundo”, diz a cientista social Carolina Ricardo, assessora sênior do Instituto Sou da Paz. Em 2015, com uma média de 26,7 assassinatos a cada 100 mil habitantes, chegamos, segundo o Banco Mundial, à auspiciosa sexta posição, atrás apenas de El Salvador, Honduras, Venezuela, Jamaica e Trinidad e Tobago.
Naquele ano, a União Europeia registrou uma única morte violenta no mesmo grupo de pessoas. “Agora chegamos ao top 5”, assombra-se Carolina. “E 64 mil é o público da abertura da Copa do Mundo, mais do que os 58 mil americanos mortos em toda a Guerra do Vietnã.”
O plano de expansão do PCC coincide com o aumento recorde dos homicídios no Brasil, mas é impossível cravar uma relação de causa e efeito entre uma coisa e outra, porque a investigação é pífia – segundo o Sou da Paz, 80% desse tipo de crime não consegue ser elucidado.
Embora as mulheres assassinadas tenham sido “apenas” 4.539, são igualmente assombrosos os números da violência contra elas. De acordo com o FBSP, em 2017 foram registrados 60.018 estupros, um aumento de 8,4% em relação ao ano anterior.
Como típico crime subnotificado – estima-se que entre 7,5% e 10% das ocorrências sejam comunicadas à polícia –, o total de casos pode chegar a 500 mil. Praticamente, um a cada minuto. O estudo mostra ainda que 221.238 mulheres recorreram à Lei Maria da Penha, 606 por dia. “Resultado de uma cultura que começa com piadinhas supostamente inocentes”, diz Carolina, “e termina por naturalizar a violência contra a mulher.”
No ano passado, os 37 países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) investiram 4,5% de suas despesas na segurança pública – o Brasil, 2,5%. Em compensação mantínhamos encarcerados um recorde de 729.463 pessoas em 2016 (a terceira maior população carcerária do mundo, ultrapassando a Rússia!). Para tanto foi preciso contrariar a Lei de Newton, segundo a qual dois corpos não podem ocupar a mesma vaga no espaço. Era precisamente isso o que acontecia, já que os lugares disponíveis eram somente 367.217.
Em plena campanha de fidelização, digamos, do preso-torcedor, o PCC agradece por mais e mais gente na “cebola” – a mensalidade cobrada de seus filiados, de até mil reais, a não ser que haja alguma oferta de ocasião. Ou até a suspensão da cobrança, como ocorreu no Ceará, possibilitando que se batesse a meta de 600 novos inscritos com grande sucesso. Terceiro estado na contabilidade de membros do “Partido”, o Ceará é também o terceiro colocado no ranking da violência apresentado pelo Anuário – perde para Rio Grande do Norte e Acre, campeão e vice.
O Rio de Janeiro, em 11o lugar, aventurou-se pelo caminho da intervenção militar, uma jogada de marketing que tinha por objetivo catapultar Michel Temer das profundezas de sua impopularidade. Claro que deu tudo errado.
Depois de cinco meses, o número de ocorrências violentas com ao menos três mortes aumentou 86% em comparação com 2017, ao passo que a apreensão de fuzis, metralhadoras e submetralhadoras caiu 36,5% (os dados são do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes, que possui um Observatório da Intervenção).
De acordo com o Datafolha, apenas 3% consideram boa ou ótima a gestão de Temer. Considerando a margem de erro, tem-se o que merece o ilegítimo.
Para Carolina Ricardo, são múltiplos os motivos que explicam os números “impactantes” da nossa violência. “Não há continuidade nas poucas políticas de segurança pública que podemos chamar de aceitáveis, a polícia investiga pessimamente, o Judiciário não prioriza o principal, o sistema prisional é lotado e não ressocializa, a dinâmica do tráfico não é resolvida e não há políticas sociais que deem perspectivas de vida”, enumera.
“A segurança pública no Brasil está entregue ao PM em suas patrulhas de rua.” Reside aí outra grave faceta da nossa tragédia, traduzida nos números do FBSP: a polícia brasileira matou 5.144 pessoas em 2017, um aumento de 20,5% em relação ao ano anterior. Segundo o tenente-coronel Adilson Paes de Souza, mestre em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo e pesquisador da letalidade da PM, eis “a polícia que mais mata no mundo”.
Em entrevistas com policiais assassinos, Paes de Souza encontrou quatro razões comuns que os motivaram a matar, todas reveladoras da falência do nosso modelo de segurança pública:
1. “Ele não acredita no sistema, sabe que a prisão é uma escola do crime”.
2. “Ciente da corrupção policial e da investigação insatisfatória, decide que ele próprio será o sistema”.
3. “Entre seus colegas, matar é um valor exaltado e um rito de passagem, questão de status social”.
4. “O PM que mata está viciado em matar. Sofre de uma psicopatologia que o obriga, em certos casos, a matar uma vez por semana. Isso é um drama de tal ordem, que termina por reverter-se contra ele mesmo.
Os poucos números disponíveis mostram que entre 2001 e 2006 houve um suicídio de policial militar a cada 15 dias em São Paulo. De 2005 a 2014, quase 15 mil foram afastados por transtornos psiquiátricos”. Precisando, é o caso de recorrer a Chico Buarque: chame o ladrão.
“A polícia é a mesma da ditadura, sem qualquer incremento. Na essência, na estética, na impossibilidade de controle social. Sob a ótica de eliminar o inimigo, atuam numa manifestação como atuavam no combate aos subversivos”, diz o tenente-coronel, que por 30 anos fez parte da PM de São Paulo.
Quando a justificativa da “resistência seguida de morte” constante nos boletins da polícia começou a ser por demais questionada como suspeita, tudo o que se fez foi mudar para continuar igual – e trocou-se a expressão por “morte decorrente de intervenção policial”. Mas “os mesmos agentes registram, os mesmos processam, tudo exatamente como antes”.
As vítimas da PM são as mesmas que figuram em abundância em cerca de 70% entre os 63.880 assassinados ano passado: uma maioria de negros ou pardos, jovens, pobres e periféricos. “A desigualdade do Brasil deveria questionar nossos valores humanos. E, se não questionam, se apenas segue a vida, então este é um lugar terrível. Ou se dá direito à dignidade ou as pessoas estarão vulneráveis”, diz a diretora-executiva da Oxfam Brasil, Katia Maia.
“Aqui os negros só atingirão a renda dos brancos em 2089, quando teremos 200 anos de abolição da escravatura. As prisões de hoje são as senzalas de ontem, com suas condições inumanas, e que deixarão aquelas pessoas marcadas para sempre.”
De sua fundação em 1993 até 2014, o Primeiro Comando da Capital arregimentou cerca de 11 mil presos em 24 unidades da federação. Hoje tem 29 mil filiados. “A expansão do PCC e a transformação do mercado de drogas foram efeitos colaterais de uma abordagem equivocada na área da Justiça e da Segurança Pública”, escrevem os pesquisadores Bruno Paes Manso e Camila Dias no livro sobre o grupo.
“A guerra que, supunham as autoridades, ajudaria a controlar o crime promoveu a criação e organização das facções criminosas, que assumiram papel de inimigos e partiram para a ofensiva, cada vez mais endinheiradas e dispostas ao embate.”
Terminam citando Marielle Franco, assassinada em crime impune há 163 dias: “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”
Luiz Inácio Lula da Silva (PT)
Dizer que precisamos de uma Política Nacional de Redução dos Homicídios e de uma nova política de drogas chega a ser engraçado, dado que o partido esteve no governo de 2003 a 2015. Decepcionada, ainda mais sabendo que especialistas prepararam um programa supercompleto para o partido.
Jair Bolsonaro (PSL)
Cita como fonte para diversos dados um documentário da Globo. Mostra outros do FBSP e Ipea como sendo do IBGE. Diz que vai garantir a policiais o excludente de ilicitude, que existe desde 1984. Não tem proposta para o crime organizado. Relaciona combate ao estupro de crianças com necessidade de mudança ideológica. Não sei se entendi.
Marina Silva (Rede)
Um dos melhores. Traz propostas concretas para o sistema prisional, como a criação de uma Política Nacional de Medidas e Penas Alternativas, e fala em priorizar programas com egressos das prisões. Reconhece o crime organizado como grande problema. Peca em não trazer proposta para a juventude negra e as mulheres.
Ciro Gomes (PDT)
Certamente, a proposta mais detalhada e conectada com os reais problemas do País. Fala na criação de um sistema nacional de inteligência criminal que inclua Coaf, Receita Federal e PF, unificação dos sistemas de cadastro de armas, institucionalização da Força Nacional, valorização da Escola Nacional de Segurança Pública. Podia ter algo mais efetivo sobre enfrentamento da violência doméstica.
Geraldo Alckmin (PSDB)
Um folder bonito quase sem propostas. Coloca uma meta de redução de homicídios, mas não diz como alcançá-la. Outro que fala em integração e inteligência sem detalhar como. Mais um que não traz propostas para o enfrentamento da violência contra a mulher.
Alvaro Dias (PODEMOS)
Não tem proposta. Fala em tolerância zero, alusão à política do prefeito Giuliani em NY nos anos 90, mas o plano apenas menciona reduzir homicídios em 60% (como?) e investir em inteligência, informação e integração (frase que diz tudo e não diz nada).
Guilherme Boulos (PSOL)
Muito bem-intencionado, traz um longo histórico das ações desenvolvidas nos últimos anos. Vai de propostas concretas e urgentes, como a valorização dos profissionais de segurança e controle de armas, até questões polêmicas como a desmilitarização. Infelizmente, não detalha como implementar a maioria delas.
Cabo Daciolo (Patriota)
Atribui a violência urbana à entrada de armas e drogas, o que poderá ser resolvido aplicando 10% do PIB nas Forças Armadas (oi?).
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“Quantos mais vão precisar morrer?” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU