13 Agosto 2018
"Há pouca dúvida de que o peso cumulativo da carreira de Sodano sugira um funcionário que não quis, ou não conseguiu, levar em conta a verdadeira natureza da crise de abuso clerical e ele inspira pouquíssima confiança em termos de um compromisso robusto com uma reforma", escreve John Allen Jr., jornalista, em artigo publicado por Crux, 12-08-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
Na crescente conversa sobre responsabilização em meio aos escândalos de abuso sexual da Igreja, uma questão que muitas vezes não recebe tanta atenção quanto deveria é sobre o que, exatamente, as pessoas precisam ser responsabilizadas - isto é, quais tipos de ações em relação aos escândalos de abuso são dignos de sanção e qual prova a autoridade superior precisa ter antes que as consequências possam ser impostas.
Para começar com o caso mais claro, “tolerância zero” obviamente implica que o abuso sexual requer disciplina rápida e severa, e agora sabemos que o padrão vale até para os príncipes da Igreja devido ao exemplo do ex-cardeal Theodore McCarrick.
Também sabemos, pelo menos em teoria, que encobrir os abusos cometidos por outros é também uma violação da política de "tolerância zero", o que significa que ela também deve ser sancionada - apesar de que provar tal conhecimento, em vez de apenas suspeitar de sua existência, é surpreendentemente difícil.
E fica ainda mais embaraçoso quando o acusado não está cometendo um crime ou um encobrimento, pelo menos não diretamente, mas simplesmente estando do lado errado da história - mostrando um julgamento tão ruim, tamanha surdez e insensibilidade, a ponto de sugerir ignorância quanto à magnitude e profundidade da crise de abuso, tornando a resposta da Igreja mais fraca e menos convincente.
Você certamente não poderia dizer, a julgar pelo caso do atual decano do Colégio Cardinalício, que há responsabilização por esse tipo de lapso na Igreja Católica.
Esta semana, o Irish Times informou que o cardeal italiano Angelo Sodano, enquanto era secretário de Estado do Vaticano sob o papa João Paulo II, abordou, em novembro de 2003, a ideia de negociar um acordo com a então presidente Mary McAleese para manter os arquivos da Igreja fora das investigações do governo. O Times também informou que, dois anos depois, Sodano perguntou ao então ministro das Relações Exteriores da Irlanda, Dermot Ahern, se seu governo prometeria indenizar o Vaticano por quaisquer perdas que pudessem ocorrer nos tribunais irlandeses em função de litígios relacionados a abuso sexual.
Embora o Vaticano não tenha comentado sobre esses relatos, eles são totalmente consistentes com o que sabemos sobre o modus operandi de Sodano.
Em fevereiro de 2005, por exemplo, Sodano pediu à então secretária de Estado norte-americana, Condoleezza Rice, que interviesse para bloquear uma ação coletiva diante do Tribunal Distrital dos Estados Unidos em Louisville, Kentucky, que visava responsabilizar financeiramente o Vaticano pelo abuso sexual de menores. Rice foi obrigada a explicar que, no sistema americano, o poder executivo não tem esse poder e que os estados estrangeiros tem o dever de reivindicar sua imunidade nos tribunais americanos.
(Para o registro, o Vaticano acabou fazendo exatamente isso, com sucesso, e a ação fracassou).
Tenha em mente que os pedidos aos irlandeses e aos americanos vieram após a explosão dos escândalos de abuso nos EUA em 2002/2003, então não se pode argumentar que Sodano não entendia quão séria era a crise ou quão doloroso seria para os sobreviventes ver a segunda figura mais poderosa do Vaticano colocando a proteção de ativos institucionais como sua principal preocupação.
E esse não é o único ponto de interrogação na história de Sodano em termos de sua visão do que “tolerância zero” implica.
Em 2010, o cardeal Christoph Schönborn de Viena, Áustria, acusou Sodano de ter bloqueado uma investigação do Vaticano relativa ao falecido cardeal Hans Hermann Gröer, que foi acusado de várias formas de abuso sexual e má conduta e que acabou sendo destituído de seus deveres e privilégios de Cardeal em 1998. De acordo com Schönborn, o então cardeal Joseph Ratzinger, futuro papa Bento XVI, queria iniciar um julgamento contra Gröer sob a lei da Igreja, mas Sodano entrou no meio do caminho.
Schönborn foi mais tarde obrigado a viajar a Roma para uma reunião conciliatória com Sodano e Bento XVI, mas ele nunca se retratou sobre o conteúdo de sua acusação.
Schönborn falou, a propósito, não muito depois de Sodano ter usado a frase “fofoca insignificante” em uma homilia de Páscoa em referência à cobertura da imprensa sobre os relatos de vítimas de abusos clericais, de um modo que muitas das vítimas o acharam profundamente insensível.
Depois, há a questão do apoio forte e de longa data de Sodano ao padre Marcial Maciel Degollado, fundador dos Legionários de Cristo, que foi considerado culpado por Ratzinger e sua equipe na Congregação para a Doutrina da Fé de abuso sexual e má conduta em 2006 e condenado a uma vida de oração e penitência.
Sodano foi aliado de Maciel até o fim. Mesmo enquanto a equipe de Ratzinger conduzia sua investigação, Sodano conseguiu que o Vaticano emitisse uma declaração pública insistindo que não havia "procedimento canônico" contra Maciel - o que era tecnicamente correto, já que foi tomada a decisão de lidar informalmente com o caso devido à idade e à saúde de Maciel, mas a declaração obscureceu a verdade maior de que o Vaticano estava em seu rastro.
Sodano até mesmo lutou contra a divulgação de uma declaração pública sobre a sentença de 2006, bem depois que a carta a comunicando já havia sido recebida por Maciel e distribuída dentro da ordem, com o argumento de salvar Maciel do constrangimento.
Então, onde tudo isso nos deixa?
Certamente nunca houve uma sugestão de que o próprio Sodano tenha abusado de alguém, e mesmo acusá-lo de “encobrir” o caso de Maciel pode ser um exagero - em vez de ele ter conhecimento direto dos crimes de Maciel, o cenário mais plausível é que Sodano simplesmente não queria saber. Ele admirava a ortodoxia, o zelo e o sucesso de Maciel com os jovens - sem mencionar sua destreza na arrecadação de fundos - e estava inclinado a atribuir as acusações contra Maciel, que circularam desde 1997, à inveja ou à oposição política.
Por outro lado, há pouca dúvida de que o peso cumulativo da carreira de Sodano sugira um funcionário que não quis, ou não conseguiu, levar em conta a verdadeira natureza da crise de abuso clerical e ele inspira pouquíssima confiança em termos de um compromisso robusto com uma reforma.
É verdade que Sodano tem agora 90 anos, mas continua a ser o decano do Colégio Cardinalício, e se o Papa Francisco morresse amanhã, ele ainda presidiria as reuniões diárias dos cardeais antes do conclave para eleger um sucessor. Além disso, Sodano é ativo apesar de sua idade e é amplamente visto em Roma como exercendo uma influência significativa nos bastidores através de uma extensa rede de amigos e protegidos, especialmente na Secretaria de Estado.
Enquanto Francisco pondera sobre o que a “responsabilização” pelos escândalos de abuso implica, mais cedo ou mais tarde ele provavelmente terá que considerar figuras como Sodano - funcionários que podem não ser culpados de um crime ou encobrimento, mas cujas escolhas e declarações deixaram muitos observadores, especialmente os sobreviventes de abuso, se perguntando exatamente quão sério o sistema é, de fato, sobre "tolerância zero".
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Sobre o Cardeal Sodano e o significado de 'responsabilização' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU