Por: Wagner Fernandes de Azevedo | 26 Mai 2018
As mobilização juvenis do ano de 1968 não foram estritamente europeias. Tampouco pode-se analisar 1968 positivamente, como uma data estática, sem precedentes ou implicações posteriores. Expandir o olhar permite compreender a estrutura da política internacional que encerrava a era dourada do capitalismo no ciclo histórico do século XX. Segundo Néstor Pitrola, em entrevista concedida ao IHU por e-mail, a derrubada da ditadura argentina de Juan Carlos Onganía em 1969, começou com uma organização cinquenta anos antes: “Em setembro de 1918 os estudantes ocuparam as faculdades e chegam inclusive a votar em si mesmos como autoridades, uma atitude que logo seria replicada em outros países do continente. Simultaneamente, os trabalhadores de Córdoba protagonizavam uma greve geral, que os estudantes chamavam para apoiar”.
Em 1918 a partir da mobilização dos estudantes cordobenses construiu-se um novo modelo universitário. A chamada Reforma Universitária de 1918 democratizou o acesso à universidade com a gratuidade, popularizou com as medidas de participação estudantil na gestão e garantiu a autonomia universitária. As reivindicações dos jovens argentinos despertaram no continente mobilizações integradas, a partir dos Congressos Universitários. Em pelo menos 18 países da América Latina seguiu-se a onda de protestos reformistas. As reivindicações se expressaram no Manifesto de Córdoba, em 21 de junho de 1918. A partir deste documento organizou-se e planejou-se uma nova categoria de sujeitos políticos capaz de mobilizar as massas. “As marchas universitárias reuniam mais de 10 mil pessoas, sendo que o número de estudantes [em Córdoba] não superava 1500”, aponta Pitrola.
Passados 50 anos de transformação do sistema universitário argentino, em 1969, apenas em Córdoba eram 30 mil universitários — de acordo com Daniel Gaido, em El Cordobazo y el clasismo en Córdoba. O movimento estudantil na ascensão como coletivo político de massas protagonizou a insurreição contra a ditadura do general Onganía — iniciada em 1966, mas que continha a carga histórica de sucessivas tomadas do poder por parte dos militares desde 1955. A emergência do movimento, mobilizou diferentes categorias, unificando a pauta na capital cordobêsa: “O grande acontecimento da época foi o Cordobazo, dirigido pelos trabalhadores da SMATA porque marcou o período político de caráter revolucionário, abrindo uma escalada proletária e produzindo o começo do fim da ditadura de Onganía”, afirma Néstor Pitrola.
Os movimentos da década de 1960, visibilizados com o maio de 1968, são marcas de um processo de mudanças e contestação política, social, cultural e econômica. O Cordobazo tem seu ápice em 1969 com as grandes greves gerais, inspiradas nas insurgências estudantis e trabalhadoras ao redor do mundo, como a Revolução Cubana, a Primavera de Praga e Maio de 1968 na França. Para Pitrola as crises do capitalismo retornam para essas mobilizações: “Na tarefa de afrontar uma época convulsiva a nova geração colocará a mão na linha do tempo da luta de classe trabalhadora”, opina.
Néstor Pitrola/Foto: Prensa Obrera
Néstor Pitrola é sindicalista e político argentino, natural de Córdoba, e dirigente do Partido Obrero - PO, de linha trotskista. Foi uma das principais lideranças do movimento estudantil cordobês na década de 1960. Foi eleito deputado nacional pela província de Buenos Aires em 2013 e reeleito em 2015, completando seu mandato em 2017. Foi o candidato do PO para a presidência da república obtendo 116,7 mil votos.
IHU On-line — Como começou o movimento estudantil na Argentina?
Néstor Pitrola — Se bem há alguns antecedentes prévios, o grande salto organizativo do movimento estudantil se deu em torno da Reforma Universitária de 1918. É quando se fundem as grandes federações em um período de grandes greves trabalhistas sob impacto da influência da Revolução Russa.
IHU On-line — Qual foi a organização para a Reforma Universitária de 1918?
Néstor Pitrola — O Comitê Pró-Reforma se formou em março de 1918 e a poucas semanas se formou a Federação Universitária de Córdoba. Os estudantes de medicina e engenharia foram seus motores, que arrastaram ao conjunto dos estudantes contra o poder da Corda Frates[1], vinculada à Igreja Católica.
IHU On-line — Pode se dizer que a Reforma Universitária de 1918 foi o que possibilitou a organização do Cordobazo?
Néstor Pitrola — Sim, pode se dizer que foi o seu primeiro ensaio. Em setembro de 1918 os estudantes ocuparam as faculdades e chegam inclusive a votar em si mesmos como autoridades, uma atitude que logo seria replicada em outros países do continente. Simultaneamente, os trabalhadores de Córdoba protagonizavam uma greve geral, que os estudantes chamavam para apoiar. As marchas universitárias reuniam mais de 10 mil pessoas, quando os estudantes não superavam os 1500. O Partido Obrero afirmou que a Reforma foi o primeiro Cordobazo.
IHU On-line — Quais organizações compuseram o Cordobazo em 1968-69? As forças trabalharam unidas pelas reivindicações?
Néstor Pitrola — A vanguarda do Cordobazo esteve constituída pelos trabalhadores do Sindicato de Mecánicos y Afines del Transporte Automotor — SMATA, que prepararam e protagonizaram os principais combates contra o Exército. A burocracia que havia convocado à greve a concebia como uma ação ilhada, muito longe do levantamento que teve lugar. Diferente do Partido Obrero (Política Obrera nessa época), a maioria de agrupações de esquerda, focadas ao guerrilherismos foquistas[2], descartavam uma ação proletária desse alcance porque tampouco tiveram um papel relevante na sua organização.
IHU On-line — Quais foram as influências do Cordobazo?
Néstor Pitrola — A geração do Cordobazo foi impactada diretamente pela Revolução Cubana, que trouxe a revolução socialista ao continente latino-americano. Outro fator foi o esgotamento do peronismo, que saiu do poder de luta em 1955 e logo anunciou a “desencilhar até que se esclareça”, dando um apoio implícito a Onganía. Os grandes levantes de trabalhadores e estudantes da época, como o Maio francês e a Primavera de Praga, mostraram, por sua vez, o derrape das velhas burocracias stalinistas contrárias à ação de luta das massas. Nessas experiências que revolucionaram as organizações de esquerda nasce a Política Obrera, em 1964. No Cordobazo nasceu um lema massivo que persistiria em todo período político: “Lute, lute e lute, por um governo trabalhador, trabalhador, trabalhador e popular” — “Luche, luche y luche, por um gobierno obrero, obrero y popular”, em espanhol —, o qual marcou a ascensão do classismo e da esquerda. A volta de Perón teve um conteúdo histórico de desviar e conter esse processo, e adquire um conteúdo definitivamente contrarrevolucionário, com a criação dos paramilitares das Triple A, o golpe policialesco chamado Navarrazo[3] que depôs o governo cordobês, que foram antecedentes do sangrento golpe militar de 24 de março de 1976, que tiraria a vida de 30 mil detidos desaparecidos.
IHU On-line — Quais foram as diferenças do Cordobazo e do Rosariazo em suas forças constituintes? Pode se dizer que uma foi mais importante que a outra para o fim da ditadura?
Néstor Pitrola — O grande acontecimento da época foi o Cordobazo, dirigido pelos trabalhadores da SMATA porque marcou o período político de caráter revolucionário, abrindo uma escalada proletária e produzindo o começo do fim da ditadura de Onganía. O Viborazo — em 1971, que ocorreu também em Córdoba —, o Rosariazo e o Mendonzazo, foram parte deste processo político. Houve dos rosarinos uma prévia e uma preparação ao Cordobazo, e o mais importante, em setembro de 1969, com elo na greve ferroviária, é que o 16 de setembro se transforma em outra greve política de massas na cidade. O Mendozazo teve o eixo nos professores. De conjunto, forma parte do grande período político do Cordobazo.
IHU On-line — Como a organização posta em 1968 e 1969 que revogou a ditadura sofreu um novo golpe em 1976?
Néstor Pitrola — Na chegada do golpe de 1976 teve um papel-chave o governo prévio de Perón e Isabel. O golpe sobreveio logo do fracasso da estratégia de conter as massas com o regresso de Perón. Sob a sua batuta, deram-se severos golpes às organizações trabalhadoras desde 1974, como o Navarrazo ou a própria formação das Triple A. Posteriormente, Isabel colocou Jorge Rafael Videla[4] para chefiar o Exército e junto com José López Rega[5] e Celestino Rodrigo[6] idealizaram um plano radical de ajuste contra os trabalhadores. As greves de junho e julho que derrotaram esses planos aceleraram os preparativos do golpe militar.
IHU On-line — Qual é o atual caminho para os movimentos sociais e sindicatos da América Latina? O peronismo e o kirchnerismo na Argentina, por exemplo, ainda são sustentáveis?
Néstor Pitrola — O caminho é a independência de classe e posta em pé nos partidos dos trabalhadores revolucionários que peleiam por uma saída em termos históricos à falência econômica do capitalismo e das guerras, massacres e enormes sacrifícios que impõem cotidianamente às massas. O peronismo e o kirchnerismo não podem se sustentar pelo peso de seus fracassos históricos. Saíram do poder pactuando com Chevron e o Clube de Paris, e hoje emprestam seus legisladores a Maurício Macri para que aprove reforma contra os trabalhadores.
IHU On-line — Os movimentos juvenis de 1968 ainda impactam na política?
Néstor Pitrola — É o que se vê nesses dias na própria França. Os estudantes se colocaram em apoio à greve dos ferroviários, inclusive com a ocupação de várias universidades. Politicamente, o desejo do capital de superar seus antagonismos com a globalização e decretar o fim das ideologias com a caída do Muro, se destacou contra as sucessivas crises financeiras que aconteceram no final dos anos 1990 e as rebeliões populares que abriram o novo século, como o Argentinazo de 2001[7] e as insurreições na Bolívia. Na tarefa de afrontar uma época convulsiva a nova geração colocará a mão na linha do tempo da luta de classe trabalhadora. O que se percebe no crescimento que teve a União das Juventude pelo Socialismo, a juventude do Partido Obrero, na Argentina.
IHU On-line — Como vê a ascensão da direita na América Latina? Quais são as possibilidades de as esquerdas tomarem o poder? Como essas esquerdas têm construído uma alternativa?
Néstor Pitrola — A ascensão da direita se produz em um quadro de enormes desequilíbrios. É o que se viu em dezembro com Macri na Argentina ou com a caída do governo peruano. A tentativa de sustentar Temer apelando à militarização e golpes jurídicos tem levado o Brasil a uma situação de crise de poder. Ocorre que a ascensão prévia de governo de esquerdas e nacionalistas foi uma tentativa de conter as rebeliões de massas dos anos 1990 e 2000. Essas massas não têm sido derrotadas e esse é um fator forte de desestabilização para os recâmbios direitistas. Uma nova alternativa deve partir de um balanço dos fracassos das intenções de desenvolver nossos países por uma aliança com as burguesias nativas. A caída dos preços internacionais das matérias-primas pulverizou essas experiências que buscaram infrutuosamente se sustentar à custa de ajustes e pactos com o capital internacional.
A partir deste balanço surge claramente na América Latina a necessidade de governos de trabalhadores capazes de romper com o capital financeiro, nacionalizar os bancos, o comércio exterior e os recursos estratégicos sob gestão dos trabalhadores. A perspectiva de unidade da América Latina brinda essa perspectiva de poder em razão de uma Federação de Estados Unidos Socialistas da América Latina, pois estão esgotadas as possibilidades históricas de uma Pátria Grande, a partir das burguesias latino-americanas dos Odebrechts, Techint, Grobocopatel, Bunge & Born, Repsol, Chevron ou Barrick, os sócios maiores, como nos propuseram Lula, Chávez e o kirchnerismo.
[1] Corda Frates é uma federação internacional de estudantes universitários, fundada em 1898, em Turim, na Itália.
[2] Guerrilherismo foquista é a organização da luta por focos, método de guerra revolucionária defendida por Ernesto Che Guevara e empregada com sucesso na Revolução Cubana, mas fracassou na Bolívia.
[3] Navarrazo é chamado o golpe que derrubou o governador da província de Córdoba Rodrigo Obregón Cano, no ano de 1975, durante a presidência de Juan Domingo Perón. O Navarrazo foi protagonizado pela Triple A, Alianza Anticomunista Argentina, gerida pelas forças armadas, polícia federal e setores peronistas durante a década de 1970. A Triple A foi condenada em 2006 por crimes de lesa humanidade.
[4] Jorge Rafael Videla foi nomeado chefe das Forças Armadas Argentinas pela presidenta Isabel Perón, que assumiu o cargo após a morte do seu marido Juan Domingo Perón. Jorge Videla liderou o golpe que instauraria uma nova ditadura na Argentina, entre 1976 e 1985, sendo o primeiro presidente do período (1976-1981).
[5] José López Rega foi ministro do bem-estar social (1973-1975) no terceiro governo de Juan Domingo Perón. Foi um dos organizadores da Triple A.
[6] Celestino Rodrigo foi ministro da economia (1975) no governo de Isabel Perón. Renunciou ao cargo em 45 dias devido a pressão social sobre suas políticas de ajuste fiscal.
[7] Argentinazo foi o movimento de protestos ocorridos em dezembro de 2001, que resultaram na renúncia do presidente Fernando de la Rúa, em 20 de dezembro de 2001. Após a renúncia seu sucessor foi Ramón Puerta, então presidente do Senado, e responsável pela convocação das eleições presidenciais pela Assembleia Legislativa. Em 23 de dezembro de 2001, Adolfo Rodriguez Saá é eleito. Após uma semana como presidente, sob responsabilidade de convocar eleições gerais em 90 dias, abandona o cargo, no dia 30 de dezembro de 2017. Eduardo Camaño, então presidente da Câmara de Deputados, assume a chefia e a convocação novas eleições pela Assembleia, resultando na eleição de Eduardo Duhalde, tomando posse em 2 de janeiro de 2002 e cumprindo o período até maio de 2003, quando Néstor Kirchner vence o segundo turno da eleição presidencial devido a desistência do candidato opositor Carlos Meném ao processo eleitoral. As ondas de protestos sofreram violenta repressão policial, causando 39 mortes, destes, nove eram menores de idade.
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Cordobazo: o levante de estudantes e trabalhadores contra a ditadura na Argentina de 1968-69. Entrevista especial com Néstor Pitrola - Instituto Humanitas Unisinos - IHU