Por: Wagner Fernandes de Azevedo | Edição: Patricia Fachin | 19 Abril 2018
“O ano 1968 se tornou mítico e, como tal, é evocado como inspiração, como nostalgia e tem diferentes usos políticos, mesmo dentro da esquerda”. A constatação é da historiadora Mariana Villaça, que estuda a arte e a política na América Latina. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, a pesquisadora analisa a influência do maio de 68 francês na América Latina e afirma que, à época, “as notícias sobre os protestos e mobilizações — não apenas na França, mas também na Itália e nos Estados Unidos — circularam rapidamente e fortaleceram as discussões sobre a nova esquerda e a necessidade de se aderir à luta armada”.
De outro lado, diz, as manifestações de 68 também fomentaram os festivais de cinema na América Latina, os quais contribuíram para a circulação de documentários e noticiários sobre as mobilizações estudantis. Segundo ela, “é inegável constatarmos que 68 é um ano paradigmático na história das mobilizações estudantis, e certamente a morte de Che e as manifestações sucessivas em distintas universidades contribuíram para alimentar esse fenômeno”.
Mariana Villaça | Foto: Unifesp
Mariana Villaça é graduada em História pela Universidade de São Paulo – USP, onde também cursou o mestrado e o doutorado em História Social. Atualmente leciona no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de São Paulo - Unifesp, onde também é vice-coordenadora do programa de Pós-Graduação em História.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como podemos perceber as influências de maio de 1968 nos movimentos políticos latino-americanos?
Mariana Villaça - A repercussão foi bastante grande e há alguns trabalhos que mostram a força das mobilizações estudantis na América Latina. No caso uruguaio, Vania Markarian abordou esse tema no livro El 68 uruguaio: el movimiento estudiantil entre molotovs y música beat (2012). As notícias sobre os protestos e mobilizações — não apenas na França, mas também na Itália e nos Estados Unidos — circularam rapidamente e fortaleceram as discussões sobre a nova esquerda e a necessidade de se aderir à luta armada. Um jornal de bastante impacto nos circuitos intelectuais latino-americanos, Marcha, publicou, nesse período, análises de Noam Chomsky, Regis Debray e outros, que saudavam esse protagonismo estudantil.
IHU On-Line - Quais movimentos protagonizaram mobilizações políticas na América Latina depois da morte de Che Guevara? Houve articulação continental entre eles? Como?
Mariana Villaça - Acredito que a formação de comitês de solidariedade à Cuba em diversos países (existentes desde 1959) exerceu um papel importante junto ao meio universitário, bem como a realização da Conferência Tricontinental em Cuba, em 1966 (que criou a OSPAAL). Num outro plano, temos a emergência das organizações armadas, como Tupamaros, ALN (Ação Libertadora Nacional), MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionária), e que em alguns momentos buscaram arquitetar ações conjuntas (sem muito sucesso) e tecer conexões (algumas propiciadas pela convivência em Cuba, durante treinamentos ou eventos políticos). Trabalhos como o mestrado de Carlos Eduardo Malaguti Camacho, da Unifesp, sobre os Tupamaros e a ALN (história comparada e conectada) procuram mapear essas conexões.
A articulação continental foi forte principalmente no meio intelectual, por meio da iniciativa de alguns periódicos e de instituições como a Casa de las Américas, como nos mostra o livro de Adriane Vidal Costa, da UFMG, que se intitula Intelectuais, política e literatura na América Latina (Ed. Alameda, 2013).
IHU On-Line - Como o guevarismo influenciou a criação da Organização Latino-americana de Solidariedade - OLAS?
Mariana Villaça - A criação da OLAS é menos uma influência do guevarismo e mais uma política do governo cubano de se afirmar perante a URSS como polo de irradiação de guerrilhas e influência política na América Latina, procurando fortalecer as organizações comprometidas com a luta armada (nos moldes cubanos), em contraposição aos Partidos Comunistas tradicionais e sua perspectiva de aliança de classes.
No plano simbólico, evidentemente, a evocação de Che Guevara foi fundamental para a divulgação da OLAS. O conceito de guevarismo é abrangente e mesmo no período recebeu diversas interpretações. Recomendo para esse tema novamente o mestrado de Carlos Malaguti e os trabalhos de Jean Salles.
IHU On-Line - Existe relação entre o guevarismo e as manifestações de Maio de 1968 na França? Os movimentos revolucionários da América Latina influenciaram ou foram influenciados pelas manifestações estudantis da França?
Mariana Villaça - Sim, acho que se trata de uma via de mão dupla, ainda que tenhamos que ter cuidado em não simplificar a abordagem — não se trata de “reflexo” de uma coisa ou de outra. Os festivais de cinema (novo cine), em um circuito internacional independente (menciono os festivais em Pesaro, Viña del Mar, Mérida, Oberhausen, Leipzig etc.), contribuíram muito para fazer circular documentários e noticiários que traziam registros e imagens das mobilizações estudantis (Exemplo: filmes como Me gustan los Estudiantes e La hora de los hornos foram exibidos na Europa e circularam amplamente pelo circuito universitário na América Latina). O mesmo podemos dizer da circulação da canção de protesto, que inclusive se faz presente nesses filmes (ver o mestrado de Caio de Souza Gomes, da USP, “‘Quando um muro separa, uma ponte une’: conexões transnacionais na canção engajada na América Latina (anos 1960/70)”).
Eventos como o assassinato de Edson Luís no Brasil (março), de Liber Arce no Uruguai (agosto), o massacre de Tlatelolco no México (outubro), entre outros acontecimentos, têm naturalmente suas especificidades, mas é inegável constatarmos que 68 é um ano paradigmático na história das mobilizações estudantis, e certamente a morte de Che e as manifestações sucessivas em distintas universidades contribuíram para alimentar esse fenômeno.
IHU On-Line - Quais eventos foram determinantes para a criação da OLAS?
Mariana Villaça - Os resultados da Conferência Tricontinental, em 1966, me parecem ter sido o principal embrião para a criação da OLAS. Ambas, no entanto (Tricontinental e OLAS), não tiveram os resultados esperados e para isso contribuíram os dilemas e embates entre a velha e a nova esquerda, bem como a dificuldade de Cuba em se colocar como centro político, em face das suas próprias questões e contradições.
IHU On-Line - Quais são as consequências de 1968 para os movimentos políticos da atualidade na América Latina?
Mariana Villaça - O ano 1968 se tornou mítico, e como tal , é evocado como inspiração, como nostalgia e tem diferentes usos políticos, mesmo dentro da esquerda (os filmes sobre maio de 68 trazem questões nesse sentido, como Os sonhadores, do Bertolucci). Por vezes, Maio de 68 é lembrado como uma manifestação que teve seu lirismo, por causa do fervor revolucionário, mas tem algo de quixotesco ou ingênuo — uma vez que os estudantes pretenderam, sem muito êxito, firmar uma aliança com os trabalhadores, além de não saberem muito bem como dar continuidade ao movimento. Por outro lado, também é lembrado, igualmente pela esquerda, por seu lado heroico, com uma certa nostalgia, ao se valorizar o protagonismo juvenil e o ímpeto que tornou possível aquele acontecimento.
Assim, podemos dizer que não há uma única leitura do "mítico” 68 dentro da esquerda (que por sua vez é multifacetada, também). Maio de 68 tem, por conseguinte, diferentes usos ao ser evocado como “modelo" de rebeldia, a ser reproduzido, reatualizado, ou como sintoma da imaturidade política da juventude engajada — que deveria ter se organizado melhor, que precisa hoje ter uma visão política menos imediatista, etc.
IHU On-Line - Quais impactos e transformações as mobilizações de 1968 causaram no cinema latino-americano?
Mariana Villaça - Recrudesceram o sentimento de urgência de ação, motivando os jovens a engrossarem as fileiras das organizações de luta armada. Fortaleceu a noção de que os agentes revolucionários na América Latina poderiam ser, na verdade, os estudantes, e menos os trabalhadores urbanos ou camponeses. Isso transparece no cinema por meio de novas modalidades como o “cine-ato”, inaugurado por La hora de los Hornos (exibido em partes, visando ao debate e à mobilização).
Igualmente ecoa na organização do movimento Nuevo Cine Latinoameriano, cujas bases “teóricas” seriam manifestos redigidos nessa época pelos próprios cineastas em prol de um “tercer cine”, um “cine-combate” ou de um “cine imperfecto”. A palavra de ordem passa a ser o uso do cinema como instrumento político, voltado à ação, ao protesto e convocação à luta armada (e não como simples proposta de conscientização), a ser exibido em circuitos independentes, alternativos. É um período em que são filmados muitos documentários realizados em condições precárias, às pressas, e que são de pouco apuro estético, mas retratam bem esse “combativismo” que permeia o cinema latino-americano desse momento.
IHU On-Line - Na sua opinião, na atualidade, como movimentos políticos latino-americanos militam por meio da arte? Pode se dizer que existe um movimento cultural com identidade latino-americana? Como esse movimento se articula?
Mariana Villaça - Não conheço movimentos, e talvez a pulverização dos dias de hoje não comporte algo assim, em escala continental, mas acho que existem muitas expressões e espaços institucionais nesse sentido, como o Festival de Cine Pobre (Gibara, Cuba), ou as obras de artistas plásticos voltadas à América Latina (muito contundentes na última Bienal de São Paulo), ou ainda o Festival de Cinema Latino-americano de São Paulo.
Mesmo no meio acadêmico há espaços garantidos para essa militância e essa reflexão, por meio de associações que promovem encontros anuais ou bienais, como a COCAAL, ANPHLAC, AHILA, LASA. Acabo de participar, semana passada, do Simpósio “América Latina entre os anos 60 e 70: novos olhares”, no curso de Letras da USP, em que o foco era refletir sobre as artes nos anos 60 e seu legado hoje. A discussão da identidade latino-americana continua em pauta, portanto.
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1968, o ano mítico, nostálgico e inspirador para a esquerda. Entrevista especial com Mariana Villaça - Instituto Humanitas Unisinos - IHU