17 Mai 2018
Quase todas as 70 cadeiras do auditório Teotônio Vilela estavam ocupadas, raridade em sessões na pequena sala da Assembleia Legislativa de São Paulo. Um deputado avisou: "As cenas a seguir são fortes, talvez alguém se assuste". No telão foi mostrado um vídeo que mostrava o interior de um navio com milhares de bois vivos. Os animais estavam amontoados, alguns com parte do corpo mergulhada em uma espessa camada de fezes, urina e lama. Uma voz feminina narrava as imagens: "Eles estão defecando um na cabeça do outro, é uma grande senzala."
O vídeo durou pouco mais de um minuto, mas várias pessoas choraram.
A reportagem é de Leandro Machado, publicada por BBC Brasil, 15-05-2018.
Era o último dia de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que apurava casos de maus-tratos de animais. Um dos temas foi a exportação de gado vivo, mercado de quase R$ 1 bilhão anuais e que nos últimos meses se tornou alvo de ativistas, parlamentares e do Ministério Público Federal.
Após a exibição do vídeo, o deputado estadual Feliciano Filho (PRP), presidente da CPI e militante dos direitos dos animais, fez um discurso que inflamou os ativistas na plateia. "Como pode o governo federal se render e agir para beneficiar uma única empresa?"
Ele se referia ao caso do navio Nada, embarcação panamenha que tirou do país 27 mil bois vivos de uma só vez, em fevereiro. Avaliada em R$ 64 milhões, a carga foi para a Turquia. Ela pertencia à Minerva Foods, uma das maiores empresas de alimentos do país. Na época, a enorme quantidade de animais em um único barco despertou atenção dos ativistas, que denunciaram maus-tratos e entraram na Justiça para impedir esse tipo de exportação.
Um juiz federal chegou a suspender as saídas em todo o país, mas, horas depois, o governo do presidente Michel Temer (MDB) entrou na Justiça e conseguiu reverter a decisão, alegando que a proibição causaria prejuízos econômicos ao Brasil.
A disputa sobre exportação de gado vivo continua na Justiça e em várias instâncias do Legislativo - ela é hoje considerada a maior batalha que o movimento de defesa dos direitos dos animais já enfrentou no país.
Em fevereiro, depois das denúncias do navio Nada, a advogada Letícia Filpi, vice-presidente da Associação Brasileira de Advogados Animalistas (Abra), atuou em uma ação judicial tentando impedir as exportações em São Paulo.
"A legislação permite que você mate um animal para comê-lo, mas a Constituição proíbe que você faça isso com crueldade. Outro fator é ambiental: esses navios não são feitos para o transporte de animais, são adaptados, inseguros. Há também a questão ética: a visão do pecuarista é que o animal é uma besta irracional que pode ser explorado até a morte. O animal é consciente e têm emoção, é sujeito de direito", diz.
Letícia tem 42 anos e milita na área desde que se formou em Direito. "Em 2012, quando virei vegana, decidi abraçar a causa de vez", conta. Ela atuou em várias "batalhas", como a proibição da caça de javalis e da vaquejada, além de resgate de animais em condição de maus-tratos. Em 2013, por exemplo, dezenas de beagles foram retirados por ativistas do Instituto Royal, laboratório paulista que realizava testes com cães.
"As exportações são a maior causa que já enfrentamos, porque o agronegócio é uma indústria muito estabelecida, a mais forte do país. Ela gera muito dinheiro e tem fortes alianças com o poder", afirma. "Antigamente, o movimento era visto como protetor só de cães e gatos, mas com a entrada dos veganos, mais organizados, começamos a entrar em questões maiores", explica ela, que também é advogada da Agência de Notícias de Direitos Animais (Anda).
A jornalista Silvana Andrade, presidente da agência, critica o argumento do governo de que a proibição traria prejuízos econômicos ao país. "Esse argumento é falacioso, o mercado de gados vivos é uma pequena parcela da carne que o Brasil produz. O país não pode ter uma economia baseada na crueldade."
Além de noticiar temas do ativismo, a Anda promove ações judiciais contra procedimentos que considera equivocados. Silvana se lembra do dia em que começou a militar. "No dia 19 de fevereiro de 2000, meu aniversário, ganhei um cão de presente, a Nina. Me apaixonei tanto por ela que, no dia seguinte, parei de comer carne. Depois, virei vegana", conta.
O Brasil começou a exportar gado vivo há 20 anos - o país é considerado o maior produtor de carne processada do mundo. Os bichos são transportados de caminhão das fazendas ao porto, colocados em grandes embarcações, viajam milhares de quilômetros pelo mar e, depois, são abatidos no país comprador. O trajeto do navio Nada até a Turquia, por exemplo, durou 15 dias.
A prática vem crescendo. Segundo a Associação Brasileira dos Exportadores de Animais Vivos (Abreav), em 2017 o Brasil vendeu 460 mil cabeças de gado em pé - nome técnico para a modalidade -, movimento de R$ 800 milhões e crescimento de 42% em relação a 2016. Para este ano, a entidade espera 30% de alta.
A maior parte dos animais vai para países muçulmanos por uma questão religiosa. A carne consumida pelos fiéis deve ser abatida pela técnica halal, seguindo preceitos islâmicos.
O animal deve ser morto por um muçulmano que tenha atingido a puberdade. Ele deve pronunciar o nome ou uma oração que cite Alá durante o processo, com a face do animal voltada para Meca.
Segundo a Câmara de Comércio Árabe-Brasileira, as vendas de gado vivo para cinco países árabes, como Iraque e Egito, cresceram 75% nos últimos dois anos - de R$ 273 milhões em 2015 para R$ 412 milhões no ano passado.
O caso do navio Nada começou a chamar a atenção depois que moradores de Santos reclamaram do mau cheiro deixado pelos excrementos que caíam dos caminhões. Em seguida, a ONG Fórum Nacional de Proteção e Defesa de Animal entrou na Justiça para impedir que o barco deixasse o país, alegando maus-tratos.
O processo chegou ao juiz federal Djalma Moreira Gomes, da 25ª Vara Civil de São Paulo, que nomeou a veterinária Magda Regina, funcionária da Prefeitura de Santos, para realizar um laudo sobre a embarcação.
No documento, ela escreveu que, no trajeto até o porto, os animais levavam choques elétricos no ânus para que ficassem deitados nos caminhões. Já dentro do navio, cada bicho ficava espremido em um espaço de um metro quadrado. Regina apontou que poderia haver mortes por pisoteamento e até por afogamento nas fezes.
Também afirmou que após a lavagem da embarcação, os dejetos e excrementos eram jogados no mar "sem qualquer tratamento" - cada boi produz cerca de 30 quilos de fezes por dia.
Segundo o laudo, o navio tinha três veterinários para cuidar dos 27 mil animais - um para cada 9 mil. Magda também apontou: "Em setor específico do navio, vulgarmente denominado Graxaria, foi constatada a presença de um equipamento destinado a triturar os animais mortos, cujo resultado do trituramento é também lançado ao mar."
Uma vistoria dos auditores fiscais do Ministério da Agricultura Paulo Roberto de Carvalho Filho e Felipe Ávila Alcover, no entanto, apontou resultado oposto: para eles, não houve maus-tratos e o navio seguia todas as regras da Organização Mundial da Saúde Animal.
"Os animais apresentavam expressão de tranquilidade, ausência de dor, ansiedade ou estresse térmico. Se aproximavam com curiosidade do toque humano, sinal de que não são tratados com rudeza e acostumados ao arraçoamento por tratador", escreveram os auditores.
Eles disseram também que os bovinos estavam bem alimentados e que os decks da embarcação tinham piso adequado - a limpeza era feita a cada cinco dias.
Depois das vistorias, o juiz federal Djalma Moreira Gomes suspendeu as exportações em todo o país, mas a decisão foi derrubada por uma desembargadora depois de uma ação da Advocacia Geral da União.
No dia 4 de fevereiro, o ministro da Agricultura, Blairo Maggi, encontrou-se com o presidente Michel Temer para falar do caso. "Os bois já estão embarcados, sendo alimentados por ração vinda de outros países. Descarregar estes animais conforme a Justiça determinou traz um problema sanitário. Além de já ser um problema diplomático", afirmou à Agência Brasil.
Para Pedro Camargo Neto, vice-presidente da Sociedade Rural Brasileira (SRB), os maus-tratos precisam "ser comprovados" antes de qualquer proibição. "A gente não pode acabar com um negócio por causa de um navio que não está em condições. Estamos todos contra a crueldade, mas é preciso separar, o transporte não é necessariamente cruel".
A Minerva Foods, dona da carga do navio Nada, afirmou que o manejo do gado seguiu todos os procedimentos adequados para preservar o bem-estar dos animais durante o transporte, no embarque e no decorrer da viagem.
Não foi a primeira vez que a empresa se envolveu em uma polêmica sobre venda de gado vivo. Em outubro de 2015, um navio com 5 mil animais naufragou em Barcarena, no Pará. Milhares deles morreram afogados - a companhia foi processada e condenada a pagar indenização 4,5 milhões para o município paraense.
Para Elizabeth MacGregor, diretora do Fórum Nacional de Proteção e Defesa de Animal, o caso do navio Nada foi importante para abrir a discussão sobre o transporte de gado vivo. "Antes, a população e a maioria dos veterinários desconheciam completamente este tema. Quando você fala em meio ambiente, precisa falar em pecuária, porque ela causa grande impacto, com desmatamento, poluição, flatulência dos animais", diz ela, que é vegetariana e milita pelos direitos dos animais desde a década de 1990.
Após a saída da embarcação, a cidade de Santos aprovou uma lei proibindo o transporte de gado vivo em suas vias, o que, na prática, limitava o acesso de caminhões com animais ao maior porto do país. No entanto, o ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin, após uma ação da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA), suspendeu o efeito da lei, argumentando que ela "impôs restrição desproporcional" à atividade dos produtores pecuários.
Ainda há dois projetos de lei que a visam pôr fim à prática - um na Assembleia Legislativa de São Paulo e outro na Câmara dos Deputados em Brasília.
Já o processo do Fórum Nacional de Proteção e Defesa de Animal, que também pede o fim do mercado em todo o país, deve ser julgado novamente em breve. Em parecer sobre o caso, o Ministério Público Federal pediu a proibição da exportação porque, nas palavras do órgão, ela "viola a Constituição e é um ato de crueldade".
Em entrevista à BBC Brasil, o autor do texto, procurador Sérgio Monteiro Medeiros, afirmou que os navios não garantem "condições sanitárias mínimas nem a saúde e o bem-estar dos animais".
"Os índices de mortalidade são muito altos. Eles (os bois) ficam comprimidos em espaços muito pequenos, são pisoteados. Além disso, forma-se uma cama de dejetos, vômitos, urina, fezes. (Os navios) são um forte proliferador de doenças", diz.
Em seu parecer, o procurador comparou o transporte aos navios negreiros. "Sei que essa é uma comparação polêmica, e que muita gente pode não gostar. Mas os escravos vinham em péssimas condições, da mesma forma que os bois são levados hoje. Naquele momento, o tráfico foi objeto de repúdio internacional. Por isso, aprovamos a proibição do tráfico de escravos. Em algum momento, (as exportações) serão alvo do repúdio", afirma.
Os dados apontados pelo procurador são questionados pela Câmara de Comércio Árabe Brasileira. Segundo o órgão, os países compradores do gado vivo brasileiro apontam que apenas 3% dos animais chegam mortos ao destino.
Em nota à BBC Brasil, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento afirmou que a "exportação de gado no Brasil cumpre com as normativas nacionais, que alcança a atividade em todas as suas etapas: desde a seleção dos animais nas propriedades de origem até o embarque nos portos no país e estão totalmente alinhadas às diretivas e recomendações da Organização Mundial de Saúde Animal".
Em viagem à Turquia neste fim de semana, o ministro Blairo Maggi, acompanhado de empresários do agronegócio brasileiro, encontrou-se com o colega turco Ahmet Fakibaba. O chefe da Agricultura do país avisou ao brasileiro: se o atual governo da Turquia for reeleito neste ano, ele vai viajar ao Brasil para anunciar a compra de mais gado vivo.
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Quem são os ativistas que tentam proibir a exportação de quase R$1 bi em gado vivo do Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU