08 Mai 2018
"Não se pode banalizar a morte", sublinha António Maia Gonçalves, especialista em cuidados intensivos que escreveu um livro para explicar por que é que por vezes os médicos decidem não reanimar os doentes. Frontalmente contra a eutanásia, o médico admite que a analgesia e a sedação podem abreviar o processo de morte, mas nota que a intenção é, nestes casos, dar conforto.
A entrevista é de Alexandra Campos, publicada por Público, 05-05-2018.
"Se tenho um doente com 90 anos que tem uma pneumonia potencialmente curável, não vou deixar de o reanimar por causa da idade", assegura António Maia Gonçalves, médico que trabalha há muitos anos em unidades de cuidados intensivos e que quase todos os dias é confrontado com a morte. No livro Reanimar: Histórias de Bioética em Cuidados Intensivos (Modo de Ler) explica por que razão contesta a despenalização da eutanásia.
Numa altura em que o tema está na ordem do dia, depois de terem sido apresentados três projetos de lei e com o debate na Assembleia da República marcado para 29 de Maio, o médico considera que “é um abuso o Parlamento legislar” sobre esta matéria.
Por que é decidiu escrever este livro?
Quis explicar por que é que em determinadas circunstâncias não reanimamos um doente, para que as pessoas percebam que esta é uma boa prática médica. Houve um familiar de um doente que uma vez uma vez que me interpelou, achou que eu tinha sido muito violento [por optar pela não reanimação]. É importante que as pessoas percebam que respeitamos a vida acima de tudo.
Confessa que gostava de morrer de morte súbita. Diz até que, quando teve um acidente de moto, a primeira coisa em que pensou foi: não quero ir parar a uma unidade de cuidados intensivos.
Numa unidade de cuidados intensivos, o doente está sujeito a grande invasibilidade. São muitos tubos, uma máquina a bufar para os pulmões, uma máquina a fazer hemodiálise, portanto, tudo isto se justifica se houver a possibilidade de reversibilidade clínica, se não, não se justifica essa invasibilidade toda e o sofrimento provocado ao doente e à família. Mas obviamente que, na dúvida, deve-se tratar sempre o doente.
Tenho doentes que me dizem: tenho tanta idade, a minha família está a gastar tanto dinheiro comigo. Não posso criar essa dúvida nas pessoas.
Mesmo que o doente tenha um testamento vital em que refere expressamente que não quer ser sujeito a determinados tratamentos?
Houve uma grande pressa legislativa, o testamento vital foi aprovado por unanimidade pelo Parlamento em 2012, regulamentado em 2014, e, mesmo depois de uma grande campanha em 2016, hoje temos 18 mil testamentos vitais, é um número irrisório.
No Reino Unido, onde no ano passado foi negada no Parlamento a aprovação da lei para o suicídio assistido, há um testamento vital que faz sentido, um programa (o Respect). Quando doente está com doença crônica, com insuficiência cardíaca, respiratória, ou renal, que necessariamente vai evoluir para o término da vida, numa fase em que está completamente capacitado pergunta-se se quer ser sujeito a, por exemplo, traqueostomias. Isso faz todo o sentido. Já o nosso testamento vital parte de uma suposição no meio de milhões de diagnósticos possíveis. Um jovem diz: não quero ser ligado a ventilador nenhum. Mas se esse jovem entrar numa sala de emergência com uma pneumonia acha que vou deixá-lo morrer?
Por que é que só fala da experiência da eutanásia na Holanda? Há outros países que já aprovaram a eutanásia, como o Canadá.
No Canadá foi aprovada em 2015. A rampa de lançamento que os projetos de eutanásia implicam levaram a que 3% das causas da mortalidade sejam atualmente por eutanásia na Holanda. Ora, não me vão dizer que estas pessoas todas estavam em grande sofrimento. Repare, na Holanda há eutanásia infantil. Como é que uma criança presumiu que queria morrer?
Em Portugal, os projectos de lei até agora apresentados não permitem eutanásia em crianças e os doentes têm que passar pelo crivo de vários médicos.
Repare: há 160, 170 países no mundo e apenas meia dúzia têm eutanásia. Há pilares fundamentais na sociedade, e um deles é o direito à vida. Quando fazemos abanar os pilares de uma estrutura seguramente que o resultado final vai ser mau.
De certa forma acho que é um abuso do Parlamento legislar sobre isto. Além disso, houve poucos debates e persiste uma grande confusão de termos. Vamos falar sem baralhações semânticas: eutanásia é ativamente matar alguém.
Apesar de ser contra a eutanásia, não fecha completamente a porta ao suicídio assistido nem mesmo à eutanásia, desde que não sejam os médicos a abrir esta porta.
O médico tem que ser uma pessoa tolerante, uma das grandes qualidades do médico é não julgar ninguém. Não tendo o direito de impor os meus valores, tenho que respeitar que haja pessoas que não queiram viver e queiram morrer com o mínimo de segurança. Porque é preciso muita coragem para uma pessoa se suicidar. Se se entender que o que aqui esta em causa é um direito de cidadania, o Estado poderá garantir os fármacos apropriados. O suicídio assistido, de alguma forma, é menos mau do que a eutanásia. A eutanásia implica que um médico mate o doente e isso é contra qualquer código deontológico de um país que se quer com valores. Não se pode banalizar a morte.
No livro até revela o nome dos fármacos. Porquê?
O nome dos fármacos está disponível em qualquer site. Estas coisas são para ser discutidas, têm implicações na vida das pessoas, nas famílias e na prática médica. Repare, um idoso acamado, que está consciente, apesar de muito debilitado, vai sentir que é um peso para a família. Essas são dúvidas que não podemos criar nos nossos pais, temos que ter a humanidade de não os fazer sofrer. A nossa luta é para que se morra melhor, é essa a solução, não é proporcionar a eutanásia. Acredite que será um fardo para as pessoas de idade se esta lei for aprovada.
Os defensores da eutanásia consideram que este é um direito de cidadania.
Eu entendo que este não é um direito de cidadania. Mas se se entender no Parlamento que é, que o façam com dignidade. Isto não pode ser feito com leviandade. Não podemos fazer com que direitos ultra minoritários e esta pressa legislativa para os aprovar possam depois prejudicar a prática clínica. Não sei o que ganha o país com esta pressa.
Preferia que este assunto fosse referendado?
Acho que a sociedade não tem maturidade nem informação para isso. E não houve nenhum partido que tenha sufragado este interesse. Portanto, de certa forma acho que é um abuso do Parlamento legislar sobre isto. Além disso, houve poucos debates e persiste uma grande confusão de termos. Vamos falar sem baralhações semânticas: eutanásia é ativamente matar alguém. No suicídio assistido é o próprio que vai ingerir drogas disponibilizadas por alguém que o apoia.
Afirma que entre os erros mais comuns da medicina estão hoje a prescrição excessiva de antibióticos, o sobrediagnóstico e as reanimações cegas e indiscriminadas. Há muitas reanimações cegas em Portugal?
Primeiro, a Medicina não é uma ciência exata e, na dúvida, deve-se reanimar. Logo à partida, temos a reanimação extra-hospitalar e, por vezes, em contexto hospitalar, como não é explicitado se é para reanimar ou não… reanima-se.
Mas não existe a figura da ordem para não reanimar?
É preciso que isto tenha sido discutido com o doente antes. A este nível, os médicos ainda têm que mudar a sua prática.
O que fazem quando não há vaga numa unidade de cuidados intensivos para um doente? Como se decide qual é o doente que se vai deixar morrer?
Não se deixa morrer. Nem que seja no Algarve, hei-de arranjar uma vaga. Se tenho um indivíduo com 90 anos que tem uma pneumonia potencialmente curável não vou deixar de o reanimar por causa da idade. Faz-me muita impressão que se garanta que pessoas tenham uma grande longevidade e depois, quando há doenças em idade avançada, o que temos para lhes oferecer é a eutanásia.
Tive um doente com cancro de pulmão que me disse que não queria quimioterapia nem radioterapia. Tem todo o direito, e eu estou a cuidá-lo o melhor que sei.
Mas, com o envelhecimento acelerado, não chegaremos a um ponto em que não haverá vagas?
Os médicos comprometem-se em adequar a prática médica à realidade demográfica. A possibilidade de não reanimar o doente era impensável há 30 anos. E os cuidados paliativos são uma coisa muito recente. Em Portugal, apenas 30% da população está coberta por cuidados paliativos. Portanto, temos um longo caminho para andar. Não estamos a falar de uma figura abstrata, estamos a falar dos nossos pais. Tenho doentes que me dizem: tenho tanta idade, a minha família está a gastar tanto dinheiro comigo. Não posso criar essa dúvida nas pessoas.
Refere que um doente internado numa unidade de cuidados intensivos custa entre dois a três mil euros por dia.
Por isso é que os recursos têm que ser adequados, a reanimação justifica-se em situações clínicas que tenham reversibilidade. Eu não sou apologista de suspender medidas, o que faço é não acrescentar medidas. Não inicio hemodiálise, por exemplo. Mas os cuidados intensivos permitem que um doente com 80 e tal anos seja operado a uma válvula cardíaca, que um doente que teve um tumor e tem um estado geral debilitado seja tratado porque não vai morrer no pós-operatório. São um serviço ao serviço de outros serviços.
É habitual enviarem doentes para cuidados paliativos?
Há doentes a quem demos alta e que vão para a enfermaria e depois aí são encaminhados para os cuidados paliativos. Por exemplo, há uma equipa no IPO do Porto que presta cuidados domiciliários. Está na altura de generalizar este tipo de cuidados.
Diz que a analgesia e a sedação podem abreviar o processo de morte. Em relação a isto não tem reservas?
Nenhumas. Se uma pessoa tem uma doença terminal e está a gritar e a gemer com dores vou tirar-lhe as dores, vou dar-lhe sedação e analgesia adequadas para que esteja confortável. Agora, o doente vai ter o reflexo de tosse diminuído, vai acumular secreções, o seu estado de consciência vai afundar, obviamente o processo de morte vai ser abreviado. Mas estamos a falar de intenção. A minha intenção é cuidar e dar conforto.
Para quem defende a eutanásia não há grande diferença entre uma coisa é outra.
Há pessoas que acham que a intenção com que se fazem as coisas não tem importância. Eu não penso assim.
Alguma vez algum doente lhe pediu para lhe acelerar a morte?
Não, já houve doentes que não quiseram prosseguir com tratamentos, agora dizer ‘mate-me’ não. Mas também já tive doentes que não quiserem ser operados. Tive um doente com cancro de pulmão que me disse que não queria quimioterapia nem radioterapia. Tem todo o direito, e eu estou a cuidá-lo o melhor que sei.
A justiça britânica decidiu há dias desligar as máquinas no caso de Alfie Evans. Concorda com esta decisão?
Os princípios bioéticos que norteiam a prática médica são quatro e um deles é a justiça. E a justiça implica uma repartição objetiva dos recursos, mas há também o respeito pela vontade da família. No meu entendimento, desrespeitar a vontade dos pais é muito mau. A dimensão da morte não é só de quem parte, é de quem fica também. Eu não o faria.
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Será um fardo para as pessoas de idade se a eutanásia for aprovada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU