23 Setembro 2017
"No texto de orientação da Associação, o consentimento à eutanásia está vinculado à lucidez da demanda do paciente, ao seu caráter livre e voluntário, a um processo de reflexão em que o pedido é repetido, motivado e reiterado. A situação médica deve ser sem saída, sem a possibilidade de uma solução razoável. Além da consulta ao paciente, acrescenta-se aquela entre os médicos, com uma equipe interdisciplinar, com os familiares e com um grupo de apoio. É prevista a liberdade do médico e da equipe para prosseguir ou não, e é previsto um controle, tanto antes como depois da decisão e a prática da eutanásia" escreve Lorenzo Prezzi teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 14-09-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Dentro das instituições hospitalares católicas não está autorizada a prática da eutanásia, mesmo quando o direito civil o permite. A província belga dos Irmãos da Caridade (Frères de la Charité), ou melhor, a associação que, em nome da família religiosa, administra os 15 hospitais psiquiátricos de sua propriedade, acredita que não pode mais acatar este imperativo e permite a prática da eutanásia não só para pacientes em fase terminal, mas também para os portadores de doenças mentais não-terminais (abril de 2017).
O superior geral, irmão René Stockman, apresentou sua objeção respondendo com um comentário (12 de junho) e solicitando explicações aos três religiosos e aos membros do Conselho administrativo (11 membros) sobre o documento que justifica tal opção (Texto de orientação do grupo dos Irmãos da Caridade sobre a eutanásia em casos de sofrimento psíquico em fase não-terminal). Em seguida, ele submeteu a questão aos bispos belgas que manifestaram não concordar com o mesmo em um comunicado de 22 de maio, reiterando as considerações apresentadas em um texto de fevereiro de 2015 (A dignidade da pessoa humana, mesmo demente). Por fim, ele consultou a Santa Sé. Tanto a Congregação para a Doutrina da Fé como aquela dos religiosos deram uma avaliação negativa. No início de agosto, o Papa pediu uma revisão da decisão.
Em 12 de setembro, a associação respondeu negativamente e "continua a defender o seu documento de orientação", declarando a sua vontade de continuar o confronto e defendendo a objeção de consciência para a qual se encaminham os três religiosos do conselho de administração.
A congregação é composta por irmãos com votos religiosos, fundada em Gante (Bélgica) por Pierre-Joseph Triest, em 1807. Conta com 572 religiosos consagrados à educação e ao cuidado dos doentes, especialmente mentais. No país, através de uma associação específica, faz a gestão de 15 hospitais psiquiátricos com 5.500 pacientes, ou seja, um terço dos leitos previstos para os cuidados psiquiátricos em Flandres.
Desde 2002, a Bélgica tem uma lei que permite e disciplina a eutanásia. A partir de 2014, a lei ampliou a possibilidade de solicitação também para menores de idade. Indicativo da crescente dificuldade para as instituições de orientação religiosa na cura de doentes terminais foi o episódio de uma multa (€ 5.700), aplicada a um lar para idosos de Diest, por se recusar a proceder à eutanásia de uma paciente portadora de câncer de pulmão.
No texto de orientação da Associação, o consentimento à eutanásia está vinculado à lucidez da demanda do paciente, ao seu caráter livre e voluntário, a um processo de reflexão em que o pedido é repetido, motivado e reiterado. A situação médica deve ser sem saída, sem a possibilidade de uma solução razoável. Além da consulta ao paciente, acrescenta-se aquela entre os médicos, com uma equipe interdisciplinar, com os familiares e com um grupo de apoio. É prevista a liberdade do médico e da equipe para prosseguir ou não, e é previsto um controle, tanto antes como depois da decisão e a prática da eutanásia.
Na conferência de imprensa de 12 de setembro, a Associação reiterou que não existe uma incoerência com o magistério católico: "Para nós, não há dúvida alguma. O texto foi redigido em conformidade com o pensamento cristão ao qual nos reportamos na nossa organização. Levamos em conta também as mudanças e as evoluções da nossa sociedade".
O superior geral ressalta quatro pontos não aceitáveis:
- a redução do valor da vida de "absoluta" para "fundamental";
- a contradição de prever uma doença psiquiátrica sem tratamento adicional, que mostra ‘uma má psiquiatria';
- o fato de ir além da letra da lei que não prevê a eutanásia para os portadores de doenças mentais e não a reconhece como ato médico;
- a contraditoriedade de prever a eutanásia em uma instituição de inspiração católica.
Por parte dos responsáveis católicos afirma-se tanto a proteção absoluta da vida, como a autonomia do paciente (até agora as solicitações foram atendidas transferindo os pacientes para outras instituições não-católicas) e o valor dos tratamentos.
O que está em questão é o seu equilíbrio recíproco. Os bispos escrevem: "Reafirmamos aqui a nossa profunda estima pelo profissionalismo e a atenção cuidadosa de tantas pessoas que garantem o atendimento de pacientes com transtornos mentais graves e de longo prazo (...) mas não podemos concordar que (a eutanásia) seja praticada em pacientes psiquiátricos não-terminais. Compartilhamos posição semelhante com cidadãos bem além das tradicionais fronteiras ideológicas. A nossa opinião não significa absolutamente abandonar às pessoas a dor. Temos consciência de que o sofrimento psíquico pode ser imenso e que uma pessoa pode estar em total desespero e sem quaisquer perspectivas. Mas é precisamente nessa situação que devemos ficar ao seu lado e não abandoná-la. Com a proposta de cuidados paliativos apropriados para as pessoas com transtornos mentais graves, resistentes às terapias".
A recusa da Associação o que pode significar? "Seremos obrigados - respondeu o irmão
Stockman - a separar a Associação da congregação. Uma decisão grave porque os nossos 15 hospitais assim perderiam a sua identidade católica. Muito doloroso também para nós, porque foram os Irmãos da Caridade que desenvolveram na Bélgica os tratamentos psiquiátricos, tirando, desde 1815, os doentes psiquiátricos das prisões e das correntes. Mas, como religiosos, devemos ser capazes, se necessário, de nos libertar do que morre e encaminhar para outras instâncias novas iniciativas e nos manter pioneiros. Estamos presentes em 31 países com centros psiquiátricos. Vamos abrir um em Bangui (África Central), onde nada existe para acolher os doentes devastados por imensos traumas" (La Croix, 24 de agosto).
A organização Irmãos da Caridade continua a defender o seu texto de orientação sobre a eutanásia em casos de sofrimento psíquico em fase não terminal.
Nas últimas semanas, exploramos as possibilidades de trazer as duas partes para uma mesa de conversação, mas sem sucesso. Enquanto isso, continuamos a pedir para entrar em diálogo, para nos permitir explicar o nosso texto de orientação e as nossas argumentações.
Um dos debates mais acalorados nestes últimos meses depois da publicação da nossa "notificação ética" diz respeito ao problema de saber se a nossa visão atual ainda está alinhada com os ensinamentos da Igreja Católica. Do nosso ponto de vista, não há nenhuma dúvida. Essa notificação ética foi redigida em conformidade com o pensamento cristão que aplicamos em nossa organização. Atemo-nos a isso levando em conta as mudanças e as evoluções da nossa sociedade. Portanto, levamos em consideração os seguintes elementos: o reconhecimento do caráter excepcional e proporcional do ponto de vista ético, a objeção de consciência, a deontologia e o aspecto ideológico.
Nós gostaríamos de enfatizar que a nova notificação ética continua a defender a ideia de que a vida vale à pena ser defendida e que nós não aderimos pura e simplesmente ao argumento da decisão autônoma. Esta notificação ética nasceu da nossa preocupação de administrar o melhor atendimento possível ao paciente.
Nos nossos centros, damos prova de grande cautela em responder às perguntas dos pacientes sobre a eutanásia e o sofrimento psicológico em fase não terminal. Levamos em conta com a máxima seriedade a dor insuportável e sem remédios, bem como os pedidos de eutanásia dos nossos pacientes. Por outro lado, procuramos proteger a vida, garantindo que a eutanásia não seja praticada a não ser nos casos em que não exista outra solução, a fim de oferecer ao paciente um tratamento razoável.
Para isso, realizamos um processo de reflexão que segue por dois caminhos. Em primeiro lugar, avaliamos o pedido da eutanásia submetendo-o às disposições legais em matéria. Em seguida, exploramos com o paciente, durante esse tempo, soluções de tratamento, de reativação, de tratamentos para o prolongamento da vida e de espiritualidade. Nossa equipe de tratamento pode decidir se seguir por essas duas direções, ou seguir apenas a segunda, a da vida, e apelar a um médico (LEIF, fórum de informações sobre o fim de vida) externo ao hospital para examinar a demanda de eutanásia.
Estabelecemos a ligação entre essas duas trajetórias através da aplicação de um conjunto de medidas prudenciais. Estas medidas devem especificar e concretizar as condições da lei relativa à eutanásia (por exemplo: o paciente está na posse de plenas faculdades mentais quando solicita a eutanásia? O paciente é incurável do ponto de vista médico? Não há outras soluções razoáveis?). Uma comissão de avaliação composta de colaboradores internos e externos aos nossos hospitais irá considerar no futuro se a decisão do médico satisfez essas medidas prudenciais.
A equipe dos nossos centros respeita a liberdade dos médicos para praticar ou não a eutanásia, bem como a liberdade do resto da equipe de atendimento de participar ou não desse procedimento Mesmo a liberdade é garantida por lei. No caso que seja tomada em consideração a prática da eutanásia nos nossos centros, deve-se igualmente levar em conta um fator específico importante: o "contexto da vida". Quando for realizada, todos os meios devem ser empregados a fim de evitar, tanto quanto possível, que a eutanásia tenha um efeito traumatizante sobre os outros pacientes.
Como organização, nós não desejamos responder através da mídia às decisões tomadas pelos três irmãos. A questão que foi posta a eles pelo Vaticano é uma questão absolutamente pessoal e individual, que, em nossa opinião, não deve ser debatida na mídia. Gostaríamos, portanto, de pedir a todos que respeitem esta decisão.
Um dos debates, suscitados nos últimos meses pela nossa notificação ética, diz respeito à questão de saber se a nossa visão atual ainda esteja em sintonia com os ensinamentos da Igreja Católica. Em nossa opinião, não há dúvida a respeito. Essa notificação ética foi redigida em conformidade com o pensamento cristão que adotamos em nossa organização. Nessa perspectiva, levamos sempre em consideração as modificações e evoluções da nossa sociedade. A nossa decisão foi baseada nos elementos aqui relatados.
Deus chama ao amor e à misericórdia, incluindo a misericórdia para os pacientes em estado de sofrimento psicológico. Continuamos, evidentemente, a defender a proteção da vida antes de qualquer outra solução. Ela continua a ser para nós uma prioridade absoluta. Situações excepcionais em que o paciente está sofrendo dor insuportável e irremediável podem ainda assim acontecer e podemos, nesses casos, em sintonia com a visão cristã, compreender o seu desejo pela eutanásia. Trata-se, na realidade, de uma exígua minoria de casos, de exceções.
Em nossa notificação ética, adotamos a escolha de uma visão proporcional da ética. Isso significa que consideramos três valores fundamentais, estritamente vinculados e os colocamos em relação entre si: a necessidade de proteção da vida, a autonomia e a relação de tratamento. Esses valores são todos cristãos. A necessidade de defender a vida é baseada no conceito da Criação divina e no quinto mandamento: "Não matarás". Nós não o consideramos um aspecto inderrogável, mas sim um valor fundamental no sentido de "condição em relação a outros valores relacionados". Embora não absoluta, a necessidade de defender a vida continua, aos nossos olhos, um valor prioritário.
A ideia de autonomia baseia-se no conceito da Criação e, mais especificamente, no direito de dispor da liberdade e da responsabilidade concedidas por Deus a cada homem em relação à Criação. Ela também se fundamenta na liberdade de tomar decisões de acordo com a própria consciência. A autonomia, como valor cristão, não é, em nossa opinião, nem absoluta nem individualista, mas sim relativa e relacional. Deve, portanto, ser aplicada em um contexto de harmonia e de responsabilidade em relação aos outros.
Também a relação de tratamento está inscrita na tradição cristã: Deus encarna a Trindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo; o Homem foi criado à imagem de Deus e, portanto, em relação com o criador divino e os seus similares; a história da Santidade é igualmente a da relação entre Deus e o homem. A relação de tratamento é, em nossa opinião, menos categórica porque pode levar à obstinação terapêutica, mas continua a ser essencial no quadro do tratamento praticado.
É o valor que os une que se situa na inter-notificação entre a necessidade de defender a vida e a autonomia.
Na prática, esses três valores estão ligados entre si quando precisam ser tomadas decisões éticas. Quando se parte dos ensinamentos das "fontes da moral" da ética cristã, também se deve levar em conta as intenções ou motivos do tratamento prolongado e das suas consequências, do contexto e da situação. Não deve apenas ser considerada a necessidade de defender a vida, mas também a autonomia e a relação de tratamento e não considerar apenas o tratamento, mas também a situação, as razões e as consequências que são, portanto, comportamentos totalmente de acordo com a tradição cristã.
Os ensinamentos da Igreja Católica nos remetem, no quadro da eutanásia, a outra visão cristã, aquela da deontologia que, na avaliação de um tratamento, restringe-se apenas aos tratamentos, sem levar em conta a situação, os motivos e as consequências. Os múltiplos tratamentos são, portanto, considerados "intrinsecamente maus", sistematicamente e sob todos os aspectos rejeitados, por serem contrários à visão absoluta da necessidade de defender a vida. A ética passa a ser uma ideologia, uma concepção absoluta que permite fugir ao confronto. Acaba por proteger confortavelmente contra toda argumentação, bom senso ou debate. Nesse último aspecto vemos uma contradição fundamental com um dos valores essenciais da tradição cristã e bíblica, ou seja, o primeiro mandamento: "Não terás outros deuses diante de mim", que nos ensina que só há um único absoluto, o próprio Deus. Qualquer um que chegue a absolutizar uma realidade opõe-se à palavra de Deus e não age no respeito a Deus e à Bíblia.
Além disso, uma ética que leva em conta apenas a necessidade de proteger a vida e os tratamentos, é uma ética que podemos chamar de restritiva.
Esse tipo de ética está em flagrante contradição com o Evangelho em que Jesus coloca o sábado e as outras regras judaicas a serviço dos homens e não os homens a serviço das regras. Colocar as regras acima dos homens é um ultraje ao amor e ao Deus fonte do amor.
Um paciente que pede a eutanásia deve fazer tal escolha em conformidade com a própria consciência. Não podemos julgar muito rapidamente sobre a consciência dos homens. É importante, em nossa opinião, que essa visão não se oponha à relação de tratamento e ao acompanhamento do paciente. Com base nos dois eixos e nas medidas prudenciais mencionadas acima, pronunciamo-nos explicitamente em favor da proximidade com o paciente, ao apoio da esperança e ao acompanhamento do paciente em seu pedido, mesmo que esse pedido conduza, em casos muito excepcionais, à prática da eutanásia. Fazemos isso sem obrigar absolutamente a equipe de saúde a colaborar com a prática da eutanásia.
Até mesmo o lugar onde o procedimento ocorre depende da nossa visão. Mais uma vez, nós acompanhamos o paciente até o lugar, onde, de acordo com seu médico, ele decidir que quer praticar a eutanásia. Um número limitado de pacientes, poderá eventualmente escolher o hospital psiquiátrico, em vez de sua própria casa. Estabelecer de antemão que, uma vez terminada a trajetória de acompanhamento, o paciente deva curvar-se às escolhas ideológicas do operador, torna impossível a relação com a equipe médica. A negativa de praticar a eutanásia em instituições médicas de orientação cristã empurra a maioria dos solicitantes para organizações que dão mais importância à autonomia, que à necessidade de proteger a vida e que também podem ser menos atentas às medidas prudenciais. Agindo assim, haveria um prejuízo para a ideia segundo a qual a vida merece ser defendida.
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Bélgica: Eutanásia nos hospitais católicos? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU