30 Setembro 2017
A semana de formação dehoniana ocorreu em Albino (Bergamo), de 28 de agosto a 1o. de setembro, com cerca de cinquenta participantes. A apresentação dos trabalhos foi a seguinte:
Alguns desses textos podem ser encontrados no site da Província italiana setentrional dos Sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus (dehoniani).
A crônica é de Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, publicada por Settimana News, 11-09-2017. A tradução é de Ramiro Mincato.
"Derramarei o meu espírito sobre todos os homens, vossos filhos e vossas filhas profetizarão; vossos anciãos terão sonhos" (Joel 3,1): este texto interpreta a conclusão da semana de formação dehoniana (Albino - BG, 28 de agosto - 01 setembro de 2017), sobre o 500° aniversário da Reforma Protestante e o 50° do endereço Ecumênico do Vaticano II.
"Há um ponto de viragem no âmbito católico", afirmou o pastor Paolo Ricca. Enquanto, até ontem, o católico médio, apesar de ter abandonado posições mais críticas e negativas, percebia a Reforma como algo que não lhe dizia respeito, alheia à sua fé, mas agora não é mais assim. Pode ser que ainda seja uma minoria, mas significativa e importante, como foi significativa a viagem de Francisco a Lund (31 de outubro de 2016): a reforma me diz respeito como papa e como católico romano". Durante as Laudes, comentando Ez 37,15-19, Ricca falou de uma possível unidade através da mão poderosa de Deus. Sem cancelar histórias recíprocas, as várias confissões, investidas de nova identidade, ainda permanecerão.
Pe. Alfio Filippi, diretor emérito da revista Il Regno e das Edições Dehonianas, concluía seu articulado excursos sobre o ecumenismo no período pós-conciliar deste modo: "Ao invés de definir o modelo da unidade que se quer realizar e, ao invés de fadigar-se em calcular a quota de verdade de cada Igreja, não seria metodológica e psicologicamente mais saudável afirmar e viver já agora o ecumenismo, simplesmente como a melhor forma possível de conhecimento mútuo entre as Igrejas, em estado de comunidade reconciliada?"
O velho monge e teólogo francês, Ghislain Lafont, olhando para o passado recente e para o futuro, escreveu: "Depois da Belle Époque, às vésperas de 1914, as ruínas se acumularam de tal modo que o mundo parecia incapaz de dominar, com o olhar ou com a ação, as possibilidades do instrumento inimaginável de que dispunha. E, como os homens possuem uma índole ruim hoje, como possuíam ontem, sua multiplicada capacidade de praticar o mal causa desastres. Recordamos recentemente o massacre de Verdun (1916), não compreendendo, então, que era o primeiro de tantos outros, como o de Aleppo (Síria), nestes últimos meses. A inquietação ecológica deixa claro que não se trata apenas de conflitos de superfície sobre uma terra não erodida, mas de uma espécie de desintegração do próprio planeta, que tem sido teimosamente abusado: terra, ar e água".
E a Igreja? "Ao longo deste século de ferro e sangue, abriu paradoxalmente sua flor. Descobriu sua beleza, suas riquezas, sua habilidade de brilhar no jardim, além de valorizar as cores e as formas das outras flores. Identificou sua própria fonte: o amor misericordioso de Deus que cria, acompanha, cura, desenvolve, começando debaixo, e permitindo que tudo se encaminhe para cima".
"Depois de 500 anos volta a pergunta sobre o que realmente foi a Reforma", disse Rica. Em parte, alguma coisa a mais, em parte, alguma coisa a menos. Sem dúvida foi um unicum na história cristã, que foi sempre uma história de reformas. Há biblistas que indicam o Quarto Evangelho (João) como uma reforma do cristianismo primitivo. O monaquismo foi uma reforma: a criação de comunidades cristãs ao lado da estrutura paroquial. Foram grandes reformadores os Papas Gregório VII, Gregório Magno e assim por diante. Independentemente de sua orientação eclesial.
Na origem do cristianismo há uma conversão permanente e contínua. O Vaticano II fala de perennis reformatio na Unitatis Redintegratio. Mas a Reforma continua a ser um unicum, apesar de sua natureza reformadora ser contestada dentro e fora. A Igreja de Roma, que excomungou Lutero em 1521, condenou também todas as formulações da Reforma no Concílio de Trento, embora levando-as em consideração em diversas questões. Não se tratava de reforma, para os padres conciliares, mas de deformação do cristianismo.
À mesma conclusão, mas do lado oposto, se colocaram os anabatistas, movimento nascido com Zwínglio, em Zurique, mas, em seguida, espalhado com diferentes características por toda a Europa. Em relação à Reforma, perseguida graças ao Magistrado da cidade e ao Príncipe, os anabatistas contrapõem a liberdade de fé diante do poder, tanto do Papa como do Príncipe. Sem isso, a reforma permanece parcial e incompleta.
A terceira crítica é de T. Muentzer, o teólogo da revolução dos camponeses contra os príncipes alemães. Do Magistrado ou Príncipe indigno eles retiram o poder da espada e realizam o julgamento final da história: o cancelamento do poder político. Para eles, Lutero não compreende o Apocalipse. Seu Deus é mudo. O Altíssimo fala por meio dos camponeses. A reforma cristã é a sua.
Mas os próprios protagonistas da Reforma não se consideram reformadores. Eles se consideram antecipadores da mesma, não os responsáveis diretos. Para Lutero (Tese 89), a Igreja precisa de reforma. A reforma não é de uma pessoa, nem de muitas. É somente de Deus. O próprio Calvino, pertencente à segunda geração dos reformadores, escreve deste modo a Carlos V, em 1553: a reforma da Igreja é a obra de Deus, tão independente da expectativa humana quanto a ressurreição em relação aos mortos . Somente Deus pode fazê-la.
Então, o que foi a Reforma? "Não foi a reforma da Igreja, mas a refundação da fé cristã. A Reforma, inicialmente em termos fragmentários e orgânicos, restabeleceu a fé cristã na Palavra de Deus. Isto nunca tinha ocorrido, exceto no início do cristianismo. As Escrituras realmente tornaram-se o fundamento do discurso cristão, causaram uma reflexão da doutrina e da vida cristã tão profunda que criou um novo modelo de Igreja, uma nova Igreja. Embora com diferentes modulações: sinodais, episcopais, congregacionalistas, etc. "(P. Ricca).
O passado permanece o que é - lembrou Daniele Menozzi, professor da Universidade de Pisa. Mas a memória pode ser afinada e esclarecida. De Lutero e da Reforma, na Igreja Católica, herdamos um julgamento fortemente negativo, o início de um processo destrutivo que chegou ao iluminismo, à revolução, ao totalitarismo, ao comunismo, à descristianização e à ditadura do relativismo. Hoje, depois do Vaticano II, podemos reler a Reforma como “tentativa de adequar a Igreja medieval tardia ao Evangelho, de que se percebiam contradições, graças a uma abordagem mais direta e crítica da Escritura".
Um fenômeno de dimensão europeia, com quatro pontos cardeais, nenhum deles sobreponíveis: Wittenberg e Lutero (1517), com a afirmação da justificação não pelas obras, mas pela fé, alimentada pela Escritura; Zurique e Zwínglio, com a abolição da Missa e a leitura diária da Bíblia (o centro é o rito); Estrasburgo e Bucero, com atenção para o que acontece em Roma e em suas instâncias de renovação; Genebra e Calvino, com uma nova estrutura da Igreja capaz de autodeterminação através dos doutores, anciãos e diáconos.
Na Dieta de Augusta, de 1530, emergem as diferenças (Confessio augustana de Melantone, Fidei gratia de Zwínglio, Confessio tetrapolitana de Bucero). Todos convergem para a centralidade da Escritura, mas se dividem quanto a interpretação. E, como não se tratasse apenas de adequar a Igreja à Bíblia, mas também de adequar a sociedade à Escritura, as consequências sociais e políticas foram múltiplas e importantes. O que não se pode fazer é debitar aos primeiros reformadores a ideia de tolerância religiosa. Esta será uma conquista posterior. Como posterior será a compreensão da relação entre protestantismo e capitalismo. A verdadeira contribuição da Reforma para o Modernismo foi a ética do trabalho, desconhecida na Idade Média.
Por cerca de 60 anos, em paralelo com as últimas sessões do Concílio de Trento, as instâncias reformadoras ativas na Igreja Católica fiel a Roma entrelaçam-se e sobrepõem-se aos protestantes. Até os anos 30, de 1500, pode-se dizer que havia uma indistinção entre as muitas frentes que exigiam reformas. Basta lembrar a experiência religiosa de Gaspare Contarini (mais tarde Cardeal) que, em 1511, teve uma iluminação semelhante à da "torre" de Lutero.
Mais que de reforma pode-se falar de evangelismo: uma consciente assunção de comportamentos pessoais em conformidade com o Evangelho.
Multiplicaram-se as Companhias e as Confrarias do Amor Divino, a referência à vida de Jesus como modelo de vida (Erasmus). De enorme difusão foi O benefício de Cristo, escrito por Benedetto Fontanini, e divulgado pelos círculos de Juan de Valdés. Os camaldolenses Giustiniani e Quirini escreveram e divulgaram o Libellus a Leonem X, lembrando que as instâncias de renovação pessoal não podem ser dissociadas das reformas institucionais. O benefício, por exemplo, está ligado ao exercício efetivo do governo pastoral, com instâncias de controle como sínodos, concílios provinciais e ecumênicos.
Somente depois de 1540 pode-se falar de reforma católica, diferente da Reforma. Neste momento, sua realização torna-se objeto de confronto político no governo da Igreja de Roma. Todos querem a renovação, mas as declinações são duas e se contrapõem.
A primeira passa pela definição de alguns pontos da doutrina levantados pelos protestantes. Primeiro é preciso definir a ortodoxia e adequar o governo a ela. Uma ortodoxia não dialógica com os reformadores, de tipo confessional, é a medida da reforma católica.
A segunda tem como referência a renovação evangélica. É preciso operar uma reforma na Igreja Católica Romana, mas oferecendo aos protestante alguns elementos de diálogo e de trabalho comuns. Assim se expressava o Cardeal Pole: "Esperar como se somente a fé pudesse salvar e, por outro lado, operar como se a salvação consistisse somente nas obras".
O debate entre as duas linhas foi bastante acirrado, chegando ao confronto até no conclave, sobre quem governará a Igreja. Em 1549, para a sucessão de Paulo III, as candidaturas ao papado do Card. Moroni e do Card. Pole fracassaram por um triz. Contra eles apareceu um dossiê da Inquisição romana questionando sua correção doutrinal e convencendo os incertos. Os zelosos assumiram a liderança.
Em 1555 chegou ao pontificado o Card. Gian Pietro Carafa (Paul IV), que tinha relançado a Inquisição como ferramenta de censura e de governo.
A ortodoxia doutrinal tornou-se um instrumento político por meio do qual atacar os oponentes. O Card. Moroni conhecerá a prisão de Castel Sant'Angelo. A chegada dos intransigentes ao governo da igreja soa como controle dos acontecimentos radicais da Reforma.
Com a paz de Augsburgo, em 1555, o Império cede aos protestantes o controle sobre suas áreas de influência e priva os homens e as forças de diálogo de todo o conforto político. Assim se chega a terceira e última fase do Concílio Tridentino (1545-49, 1551-51, 1562-64). A orientação doutrinária reformista, que legitima também instrumentos repressivos, vai tomando devagarinho a dianteira. As reformas necessárias e oportunas procedem com base nas definições doutrinárias dos zelosos, em um enredo de refinadas doutrinas e de contraposição à Reforma. Com dois elementos que condicionarão a recepção: a atribuição ao papado da tarefa de verificar os decretos e a aliança com o poder político, para se contrapor aos Príncipes e Magistrados protestantes.
A ruptura no cristianismo ocidental se reverberou de forma dramática (guerras de religião) e criativa, em todas os setores da vida: da política à cultura, da língua ao saber popular.
No âmbito da semana dehoniana emergiram dois setores em particular: música e artes figurativas. "O valor da música na tradição luterana é equivalente àquele da teologia", disse o Padre Cristiano Bettega, responsável pela secretaria de Ecumenismo e Diálogo Inter-religioso da CEI. A música divulga a Palavra de Deus, cria associações, faz catequese, aplica o princípio do sacerdócio universal dos fiéis promovendo sua participação ativa no culto. Assim, foram colocadas as pré-condições para a formação de algumas das maiores obras de arte da história da música".
A forma mais clássica é o coral: melodias simples para cantar, com andamento silábico. O texto do canto, rigorosamente em alemão, estrutura-se no textos das Escrituras, colocando as rimas facilitadoras da memorização. Cerca de quarenta cantos foram compostos pelo próprio Lutero, legitimando o recurso a melodias e a cantos da tradição popular, como também ao gregoriano. Ele costumava dizer: "Não se pode deixar o diabo deter para si as músicas mais belas".
O principal instrumento musical protestante é o órgão que, ao lado do púlpito, tornou-se uma característica de toda igreja luterana. O som, a voz da assembleia e do coro e a Palavra levam o ouvinte-fiel para além do que sentem materialmente, transformando a música numa experiência do divino. A colossal obra de Bach combinava teologia, piedade cristã e filiação confessional. Nem todas as tradições protestantes tiveram a mesma atitude favorável. Calvino preferia o canto silábico da assembleia, mantendo a certa distância o fascinante poder da arte.
Coube ao Pe. Giuliano Zanchi, responsável pelo museu diocesano de Bergamo, expor sobre a arte figurativa na passagem da Reforma. O cristianismo herdou do judaísmo profunda desconfiança das imagens, e, da cultura platônica, a condenação sobre a dúplice falsificação do objeto replicado: a primeira acontece na passagem do mundo das ideias à realidade, a segunda, na passagem da realidade à sua imagem. Assim também a música, com seu poder misterioso e fascinante, se opõe à perfeita autoconsciência com a qual se deveria entrar em relação com o Abba de Jesus. Tudo isso, porém, não impediu o aparecimento da arte mural nas catacumbas e a progressiva estetização do cristianismo.
A longa Controvérsia Iconoclasta (626-787) compôs-se a partir do valor da Encarnação da Palavra. O próprio Deus concordou em manifestar-se na humanidade de Jesus. Não é por acaso que a Reforma retomou algumas questões já discutidas: imagens, sacramentos, relíquias. A salvação pretendida por meio do culto às imagens, o pagamento dos sacramentos e a idolatria das relíquias provocou a rebelião radical.
Em 1522, os agostinianos de Wittemberg (convento de Lutero) destruíram os altares e retiram as pinturas. Em 1555, em Genebra, esmigalharam-se estátuas e imagens. Carlstadt propôs a extinção total do aparato artístico-estético da tradição cristã. Lutero foi mais cauteloso e se opôs à destruição. Para Felipe Melanchton as imagens não se queimam, se disciplinam.
Cranac e outros pintores iniciaram uma reproposição da arte figurativa que ganhou amplo espaço nas ilustrações da Bíblia. Mas, enquanto na Alemanha e no Norte da Europa as igrejas foram esvaziadas dos sinais artísticos, estes se multiplicam na área latina. Mas sempre com maior disciplina. Os sinais mais significativos vêm de Carlo Borromeo, Gabriele Paleotti e Federico Borromeo.
O primeiro, Borromeo, nos Libri instructionum fabricae et suppellectilis ecclesiasticae, traduziu para a "sacola estética" da igreja o novo rigor doutrinário tridentino: tudo devia convergir para a custódia eucarística, sendo a importância da Palavra diminuída (desaparecem os ambões para dar lugar aos púlpitos), e o Batistério, de edifício separado, passa para uma pequena área interna da igreja.
Paleotti, no Discurso sobre as imagens sagradas e profanas, inicia um rigoroso disciplinamento sobre a tradução em imagens das figuras e dos apelos da fé. Foi um grande estímulo para a retomada do classicismo.
Federico Borromeo fundou a Academia Ambrosiana com a tarefa de formar pintores, escultores e artistas chamados a nutrir a arte sacra (De pictura sacra). Os itinerários divergem entre disciplina artística e religião, como a genialidade do artista se afasta dos cuidados mecânicos do artesão. Divergências estas das quais ainda sofremos as consequências.
Ao padre Alfio Filippi coube fazer uma precisa reconstrução da nova estação ecumênica, depois dos séculos de ceticismo. Começada no início do século XX em âmbito anglicano e protestante (a primeira conferência missionária em Edimburgo foi em 1910), e consolidada com a instituição do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), em 1948, o impulso ecumênico foi assumido pela Igreja Católica no Vaticano II, multiplicando os diálogos bilaterais e multilaterais.
Três exemplos de consenso: a Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação, assinada entre a Igreja Católica e as Igrejas Luteranas em 1999; a Concórdia de Leuenberg, de 1973, entre as Igrejas reformadas e luteranas (comunhão de púlpito e altar); o documento de consenso sobre Batismo, Eucaristia e Ministério (BEM) aceito pelo CMI, em Lima, em 1982.
Este foi um caminho de grande relevo, mas que não produziu mudanças significativas nas Igrejas, e hoje é novamente posto à prova pelo força expansiva das comunidades evangelicais e pelos temas controversos da ética (origem e fim da vida, sexo e homossexualidade) e dos ministérios (ordenação de mulheres).
Nas últimas décadas sedimentaram-se alguns critérios de orientação amplamente compartilhados pela Igreja Católica. Há uma compreensão da graça que sustenta o diálogo entre as confissões cristãs, convictas de uma leitura positiva de toda a história. Para o Concílio, não se parte do pecado original, mas da bênção original da criação e do plano positivo de Deus para a salvação comum. A divisão das Igrejas foi uma tragédia, mas hoje é retomada pelo seu dado de fato. Olha-se para frente, não para trás.
Muitas coisas são compartilhadas: da Escritura ao exercício da caridade, das virtudes teológicas à espiritualidade vivida. São reconhecidos o primado do batismo e a dimensão aberta à reforma permanente da Igreja. Retomar as controvérsia já não serve diante da urgência da evangelização. De particular importância é o reconhecimento de uma hierarquia de verdades. A verdade afirmada é tanto mais valiosa quanto mais próxima ao mistério central da fé, isto é, mais próxima à pessoa de Jesus Cristo. Também o dogma conhece um desenvolvimento.
Com esta atitude fica mais fácil o reconhecimento da identidade confessional dos outros. Seja no que tange as Igrejas Orientais, como no que tange as Ocidentais. Além disso, há um milênio de história comum, que pode servir de referência para o futuro. O século XX, além disso, foi o século dos mártires (e o XXI não será menos), testemunhas pertencentes a todas as confissões cristãs.
Um patrimônio este, que o padre Fernando Garrapucho, professor de ecumenismo em Salamanca (Espanha), manifestou também em nível pessoal. O exercício do diálogo muda a própria sensibilidade espiritual. Torna-se evidente que somente unidos poderemos dar um testemunho credível do Evangelho, e, nisto, a Igreja Católica tem uma particular responsabilidade, seja pelas suas dimensões, seja pelo seu papel de equilíbrio entre as diferentes tendências.
Experimenta-se um grande sofrimento pela desconfiança mútua . "Há ansiedade e dor pelos erros históricos que causaram as divisões. Em Istambul, sobre o altar de Santa Sofia, chorei, lembrando a excomunhão de Humberto de Silva Cândida. É doloroso ver as consequências históricas da crueldade com que tratamos os outros, e com a qual fomos tratados". Acaba-se tornando-se críticos também diante da própria Igreja. Clericalismo e tradicionalismo mostram sua essência assustadora. O ecumenismo é um estímulo para ir além da preguiça intelectual. Olhando para trás, temos a alegria de um percurso sem confrontos, em comparação com os quatro séculos precedentes. Encontramos novamente a fraternidade, e também o gosto da própria tradição confessional.
A Igreja do futuro será diferente, mais evangélica, se ousarmos seguir o caminho que temos pela frente. A vida cristã é mais importante do que a eclesiologia. A teologia segue a vida, e não o contrário. E, como recordavam os precursores do caminho, na unidade se entra de joelhos e em oração.
O largo rio dos últimos séculos arrastou e modificou materiais e orientações. Basta ver a percepção compartilhada da justificação pela graça ou o papel do Batismo. Mas há muitos outros exemplos, cujo significado mudou sob nossos olhos. Um deles é com relação ao sacrifício de Cristo. O filósofo e teólogo Giovanni Ferretti, ex-reitor da Universidade de Macerata, falou sobre isso.
Ferretti comentou sobre sua dificuldade em compreender o significado do sacrifício de Cristo como expiação vicária, e a satisfação da justiça de Deus. E da resposta, divertida e emblemática, do biblista padre Dupont: "Polemizamos durante séculos com os protestantes, e agora não sabemos mais o que é o sacrifício".
O precipitar-se da justiça punitiva de Deus sobre Cristo que sofre por nosso amor os tormentos da cruz, infligido-lhes por Deus, em nosso lugar, torna-se cada vez mais difícil de aceitar. Para a cultura moderna e contemporânea, a categoria de sacrifício torna-se incompatível com a consciência ética compartilhada.
Além disso, a crítica bíblico-exegética e a reflexão teológica mostraram a dependência da categoria sacrifical de uma cultura não propriamente evangélica. De Nietzsche a Horkheimer e Adorno até Jean-Luc Nancy há convergência na denúncia da mentalidade sacrificial, no sentido de uma sistemática transvaloração do sofrimento em realidade positiva, isto é, em sacrifício, como um ato religioso por excelência: "A falsidade consiste nisso: na pseudoativação de um significado afirmativo à abnegação e ao esquecimento de si" (Adorno).
A superação da mentalidade sacrificial será uma perda ou uma oportunidade para a fé? R. Girard, M. Zambrano, R. Mancini reconhecem uma chance, falando antes de um dom. "No sacrifício, o que é doado é ao mesmo tempo destruído, oferece-se uma negação, uma renúncia, uma morte. No dom, ao contrário, oferece-se algo vivo, vital, que nutre a vida e o bem do destinatário".
A dimensão prospectiva, a imaginação sobre o futuro da Igreja, foi tarefa para o monge Ghislain Lafont. Ele partiu da prioridade do reino de Deus sobre a Igreja. Esta deve ser colocada dentro do Reino. "Hoje, começamos a entender melhor que a ressurreição de Jesus não encerra a história, mas é o ponto de partida para a difusão do Evangelho e de seu poder de transformação. Em vez de olhar para trás, em direção a uma perfeição estabelecida pelo Cristo vencedor, mas, infelizmente, perdida, interpretamos o tempo como uma transformação progressiva da criação, graças às forças naturais, mas também à ação invisível do Espírito de Deus espalhado no mundo pelo Cristo ressuscitado.
A nova inteligência do tempo, onde tudo se move, abre prospectivas críticas sobre as mediações da verdade e da salvação, como tinham sido pensadas, estruturadas e vividas na era do "intemporal" e do "estável". A promessa do Reino estimula a transformação da esperança. Uma esperança para todos. Daí a ênfase do Papa Francisco sobre a misericórdia, que não é uma excentricidade pessoal, mas o resultado de um longo caminho de Igreja.
Na base da misericórdia, os valores da justiça e da verdade são reordenados. Já Bento XVI derrubou a ordem das virtudes teologais. A promulgação de suas encíclicas foi, de fato: Caritas in veritate, Spe salvi e Lumen fidei (que traz a assinatura do seu sucessor). A verdade já não tem papel decisivo, porque é poliédrica, é o encontro de muitas verdades que convergem na tarefa do discernimento eclesial.
A Igreja do amanhã viverá a "permissão da diversidade", em contextos minoritários, em grande parte no Sul, provada pelas perseguições. "Acredito possamos levantar a hipótese de que a transição da invocação dominante do" Deus eterno e omnipotente", para o "Deus bom e misericordioso", está no coração da mudança histórica que estamos vivendo".
O princípio fundamental da hermenêutica do cristianismo de hoje é a misericórdia, como aquele excesso de amor que Jesus testemunhou. "A misericórdia será a expressão do que São Boaventura chama de excessus amoris: excesso de amor". A misericórdia é a abundância do amor. Não é absolutamente bonismo, mas a oportunidade dada a todos para retomarem o caminho de Cristo, o impulso do Espírito que transforma o pecado perdoado em instrumento para uma vida justa.
Essa visão arrasta consigo a necessidade de continuar o processo conciliar, de moderar o centralismo da Igreja Católica e de conter o excesso de “sagrado” das figuras ministeriais e do sacerdócio em particular. Até chegarmos a escolhas possíveis e hoje controversas, como a participação da Igreja local na escolha de seus bispos e o espaço no serviço ministerial para homens casados, os viri probati.
Em ambiente de religiosos, como os dehonianos, nascidos no século XIX, em contexto não ecumênico, antes ao contrário, fortemente ancorado na centralidade do Ministério petrino, celebrar o aniversário da Reforma pertence ao tema da "traição fiel".
A fidelidade ao caminho da Igreja permite uma renovada fecundidade do carisma, e torna possível responder ao ataque mais radical e direcionado à vida consagrada. Trata-se da obra de Lutero: De votis monasticis judicium (1521). Como monge, o reformador vai ao coração do testemunho monástico. Os votos são estranhos ao Evangelho, presumem uma perfeição idólatra, opõem-se à fé, à liberdade evangélica, aos mandamentos de Deus e à razão. Uma argumentação fechada, cuja fragilidade aparece agora, graças à santidade reconhecida na história, às mudanças eclesiológicas do Vaticano II, e ao fato de que hoje, a vida em comum, é reconhecida por todas as confissões como instituição de vida evangélica.
A vida consagrada, também graças às críticas de Lutero, é uma espécie de hermenêutica eclesial das acta et passa Christi, particularmente em relação à forma de vida que ele escolheu para si. E, sorrindo, padre Garrapucho lembrava que uma das fórmulas caras aos dehonianos (Ut unum sint) é a mesma oração que informa o caminho que o Espírito sugere às Igrejas, diante da enorme tarefa de evangelização que se abre para todos.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Reforma, ecumenismo, futuro da igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU