19 Novembro 2016
“Se a verdade pode designar uma ‘essência’ pensada fora do tempo, também é verdade que ela se manifesta em um corpo e no tempo, e que são esses elementos que a qualificam. Sem ela, porém, o Amor misericordioso correria o risco de ser um sentimento fraco.”
O comentário é do teólogo e monge beneditino francês Ghislain Lafont, professor emérito de teologia da Pontifícia Universidade Gregoriana e Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma. O artigo foi publicado no sítio Settimana News, 12-11-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A maneira com que a Amoris laetitia aborda as questões da família pode ou, talvez, deve levar a rever o porte das afirmações do magistério eclesiástico sobre essas matérias e, portanto, favorecer uma revisão ou uma reinterpretação da questão da infalibilidade? Hans Küng acredita nisso, porque – como sabemos – ele escreveu nesse sentido ao Papa Francisco.
Parece-me, de modo mais geral, que, em vez de uma questão específica, o Papa Francisco, com as suas atitudes, com a espontaneidade das suas palavras, mas também com os seus discursos preparados e as suas cartas endereçadas, coloca o teólogo diante da temível tarefa de rever – será preciso ver até que ponto – a teologia fundamental. A minha impressão é de que, ao propor a "misericórdia" como nome de Deus, à luz da qual é preciso viver e interpretar a nossa fé e o nosso comportamento cristãos, Francisco nos convida a empreender um deslocamento significativo.
Ele não é o primeiro. Antes dele, Santa Teresa do Menino Jesus propunha a visão de Deus como "Amor misericordioso", e isso lhe rendeu o título de Doutora da Igreja. Estudando a figura do Papa João XXIII, eu me perguntava se, um dia, o mesmo título não poderia ser atribuído também a ele, já que ele deu ao amor aquele primado até então reconhecido à verdade (cf. G. Lafont, "Giovanni XXIII. L’impatto del suo carisma sulla vita e la teologia della Chiesa nei secoli avvenire", in La Chiesa: il travaglio delle Riforme, San Paolo, Cinisello Balsamo 2012, p. 124-148).
Se falamos de "Amor misericordioso", de fato, privilegiamos elementos de sensibilidade espiritual, gestos simbólicos, uma acolhida afetiva e uma resposta cordial, privilegiamos elementos de morte e de ressurreição (dar e receber a vida), eu diria de "poética" em vez de "lógica" da existência...
O pecado, antes de ser uma transgressão da lei de Deus (o que certamente é), torna-se sobretudo uma ofensa ao Amado, o que se torna insuportável (como suportar ofender a Deus?) mas, ao mesmo tempo, superável, porque pode ser uma oportunidade de verdadeiro arrependimento e de perdão; etiam peccata (também os pecados), dizia Santo Agostinho...
A verdade, nessa perspectiva, torna-se um elemento de medida e de retidão no impulso do Amor. Corresponde àquilo que, em Deus ou no homem, envolve permanência, estabilidade, ser. Mas a verdade não existe à parte de ou fora do Amor. Ela não tem o caráter de uma ideia platônica, de uma lei imutável inscrita em um Livro ditado pela Divindade Suprema, de um conceito separado do seu contexto imaginativo, afetivo, passional.
Se a verdade pode designar uma "essência" pensada fora do tempo, também é verdade que ela se manifesta em um corpo e no tempo, e que são esses elementos que a qualificam. Sem ela, porém, o Amor misericordioso correria o risco de ser um sentimento fraco.
Devo mencionar aqui um texto admirável de Olivier Clément, sobre a palavra "natureza", que, com toda a razão, está muitas vezes no centro das controvérsias contemporâneas: "Aquilo que nós chamamos de ‘natureza’, na realidade, é uma mistura relativamente plástica de vida e de morte, em que o homem pode intervir para melhorar as possibilidades e as chances da vida. Ele pode fazer isso porque é uma pessoa que, enraizada no Cristo vencedor da morte, transcende a ‘natureza’ e se liberta parcialmente das suas restrições. O critério para um cristão, portanto, não é a natureza, mas a pessoa e o amor" (O. Clément, Corps de mort, corps de gloire, DDB, Paris 1995, p. 100).
Eu diria, nuançando um pouco: "Se o critério, para um cristão, é a ‘natureza’, que o seja dentro da pessoa e do amor; e o conflito, quando houvesse um, deveria ser resolvido no nível da pessoa e do amor".
Nessa perspectiva, parece-me que noções como a de "dogma" ou de "infalibilidade" correspondem a uma temporada do pensamento em que a verdade, isto é, a expressão intelectual da coisa como ela é ou do dever como ele se impõe, foi primordial. Isso correspondia facilmente à ideia de um Deus único, que marca todas as coisas com a sua exclusividade, de modo que a demanda inevitável é a perfeição: Bonum ex integra causa, malum ex quocumque defectu; uma fórmula que – se a levarmos a sério – é profundamente desencorajadora, porque nos deixa no constante sentimento da impotência culpada: "Ai de mim! Não consigo!".
Certamente é muito importante, para que se possa viver, poder conhecer a verdade. Devemos buscá-la (os filósofos, os literatos, os teólogos, eu mesmo não fazemos senão isso!). Devemos recebê-la de Deus, quando Ele no-la revela. E é normal que o magistério de Deus nos seja comunicado por homens que receberam, a esse respeito, um carisma profético.
Mas também é igualmente bom que aquilo que é comunicado e a forma humana da comunicação ocorram com o passo do amor, portanto da paixão, do tempo, do dom... É impossível não referir aquilo que o Papa Francisco nunca deixa de repetir: fazer discernimento.
O ecumenismo, por exemplo, só tem sentido como reaproximação de visões diferentes, provocado pela urgência de amor: "Que sejam um!", mas não de uma unidade rígida (que torna tudo igual!), mas sim de um reconhecimento recíproco. Os acordos cristológicos entre Igrejas cristãs, alcançados nos últimos anos, são a manifestação disso.
E o dogma, então? E a infalibilidade? Quero dizer, um pouco paradoxalmente, que eu reconheço no Syllabus (1864), nas encíclicas Pascendi (1907) e Humani generis (1950), no documento Ordinatio sacerdotalis... pronunciamentos autênticos e solenes, que orientaram a fé e a práxis no tempo em que foram publicados e, em parte, eu os reconheço como pronunciamentos "definitivos", na medida em que cada documento subsequente deveria levar em conta aquilo que "de verdade" eles continham.
Mas a leitura que se faz desses documentos não seria verdadeira se fosse desvinculada do momento histórico em que eles apareceram, das categorias então disponíveis, do temperamento, da teologia e da história humana dos papas que os publicaram.
Se eu conservasse abertos no meu escritório o decreto Lamentabili de Pio X e o livro de Marco Liverani, Oltre la Bibbia. Storia antica d’Israele (Bari, Laterza, 2007), eu não faria isso para julgar o segundo à luz do primeiro, mas para "imaginar" uma leitura possível hoje da história sagrada, uma leitura que "discerne". E o decreto Lamentabili me lembra que há uma "medida" à qual é preciso ter atenção. Nesse sentido, confesso que não me convencem muito as tentativas de saber se este ou aquele pronunciamento do magistério é infalível, definitivo, irreformável... (são "exercícios de ginástica" recentes na história da Igreja!).
Basta dizer que esses pronunciamentos são "verdadeiros", isto é, que têm o caráter ao mesmo tempo firme e frágil de todo pronunciamento expressado com palavras humanas em um dado momento histórico para ajudar a alcançar o Amor misericordioso. Permitam-me dizer que eu não canonizo os textos do Papa Francisco, não faço deles "documentos do magistério", mas textos "verdadeiros", que me inspiram, mas em relação aos quais eu me sinto livre. O seu advento, que é um evento, é uma rara bênção para mim, um pouco como o evento Teresa de Lisieux, o evento Dietrich Bonhoeffer, o evento João XXIII. Mas, no quadro do Amor misericordioso, eu devo conservar a minha liberdade de julgamento e de ação.
O primado do Amor misericordioso, de fato, não leva ao relativismo, mas leva à responsabilidade, e talvez seja por isso que ele nos dá medo. Eu não me lembro mais do nome de um dos críticos de John Henry Newman que contava o seu desejo de receber, todas as manhãs, junto com o Times, um decreto da Santa Sé para ser lido tomando café da manhã! Seria evidentemente mais fácil. Seria humano? Seria agradável a Deus?
As palavras e os gestos, postos sob o impulso do Amor misericordioso penetrado pela verdade evangélica, são arriscados, como tudo o que tem a ver com o amor: por parte dos papas assim como por parte dos cristãos. Não são infalíveis, mas, em sua maioria, senão sempre justamente, são "verdadeiros".
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Verdade, misericórdia e infalibilidade. Artigo de Ghislain Lafont - Instituto Humanitas Unisinos - IHU