15 Março 2016
Nesta semana, Hans Küng, sacerdote católico e teólogo suíço, completará 88 anos de idade. O quinto volume de suas obras completas, intitulada “Infalibilidade”, foi há pouco publicada pela casa editorial alemã Herder. Em consonância com a publicação de “Infalibilidade”, Küng escreveu o seguinte “apelo urgente ao Papa Francisco para permitir uma discussão aberta e imparcial a respeito da infalibilidade do papa e dos bispos”. O texto deste apelo urgente está sendo divulgado simultaneamente pelo National Catholic Reporter e pela revista The Tablet.
Hans Küng, cidadão suíço, é professor emérito de Teologia Ecumênica na Universidade de Tübingen, Alemanha. É presidente honorário da Fundação Ética Global (Global Ethic Foundation, www.weltethos.org).
O sexto volume de suas obras completas, intitulado Church Reform, está previsto para sair ainda este ano pela editora Herder.
Este artigo, cujo idioma original é o alemão, foi traduzido para o IHU por Isaque Gomes Correa, a partir da versão inglesa de Christa Pongratz-Lippitt publicada por National Catholic Reporter, 09-03-2016. A tradução do artigo foi revisada por Luís Marcos Sander.
Eis o artigo.
Dificilmente se pode conceber que o Papa Francisco se esforce em definir a infalibilidade papal como o fez Pio IX com todos os instrumentos à sua disposição no século XIX. É também inconcebível que Francisco esteja interessado em definir infalivelmente os dogmas marianos como o fez Pio XII. Seria, no entanto, muito mais fácil imaginar que o Papa Francisco dissesse, sorridente, aos alunos: “Io non sono infallibile” – “Eu não sou infalível” –, como fez o Papa João XXIII em sua época. Quando viu quão surpresos ficaram os alunos, João XXIII acrescentou: “Só sou infalível quando falo ex cathedra, mas isso é algo que eu jamais farei”.
Familiarizei-me com o assunto muito cedo em minha vida. Apresento aqui algumas datas históricas importantes que vivenciei pessoalmente e documentei fielmente no volume 5 de minhas obras completas:
1950: No dia 1º de novembro, diante de uma enorme multidão na Praça de São Pedro e apoiado por numerosos dignitários políticos e do alto escalão da Igreja, o Papa Pio XII proclamou definitivamente a Assunção de Maria como um dogma. “A imaculada Mãe de Deus, a sempre Virgem Maria, tendo terminado o curso de sua vida terrena, foi assunta em corpo e alma à glória celestial”.
Eu estava lá, na Praça de São Pedro, na época e devo admitir que aclamei com entusiasmo a declaração do papa.
Esta foi a primeira proclamação ex cathedra infalível feita pelo principal pastor e suprema autoridade magisterial da Igreja, que havia invocado o auxílio especial do Espírito Santo, tudo de acordo com a definição da infalibilidade papal formulada no Concílio Vaticano I, de 1870.
E esta seria a última proclamação ex cathedra até hoje, já que nem mesmo João Paulo II, que restaurou o centralismo papal e sempre gostou de publicidade, atreveu-se a agradar o público proclamando um novo dogma. Esta proclamação dogmática de 1950 foi feita apesar dos protestos das igrejas protestantes e ortodoxas bem como de muitos católicos, que simplesmente não viam provas na Bíblia para esta “verdade da fé revelada por Deus”.
Lembro-me de estudantes de teologia alemães, nossos hóspedes no Collegium Germanicum (Colégio Germânico) em Roma, debatendo no refeitório os problemas que tinham com o dogma nessa época. Poucas semanas antes, um artigo fora publicado pelo então principal patrologista alemão, o professor Berthold Althaner – especialista católico altamente reconhecido no campo da teologia dos Padres da Igreja –, no qual Althaner, listando muitos exemplos, mostrava que esse dogma sequer tinha base histórica nos primeiros séculos da Igreja antiga. O dogma remonta a uma lenda contida em um escrito apócrifo do século V repleto de milagres.
Nós, seminaristas do Collegium Germanicum na época, achávamos que os professores universitários “racionalistas” dos estudantes haviam ocultado deles a percepção geral da Pontifícia Universidade Gregoriana concernente a este dogma. A percepção geral na Gregoriana era de que o dogma da Assunção tinha se “desenvolvido” lenta e, por assim dizer, “organicamente” no transcurso da história dos dogmas, mas que já tinha sido afirmado em passagens bíblicas como “Ave (Maria) cheia de graça (bendita sois vós)”, “o Senhor é convosco” (Lucas 1:28), e, ainda que não fosse expresso “explicitamente”, foi, não obstante, incorporado “implicitamente”.
1958: A morte de Pio XII marcou o fim de um século de cultos marianos excessivos por parte dos papas Pio que começaram com a definição do dogma da Imaculada Conceição em 1854. O sucessor de Pio XII, João XXIII, não era inclinado a novos dogmas. No Concílio Vaticano II, em uma votação crucial, a maioria dos Padres Conciliares rejeitou um decreto mariano especial e, na verdade, advertiu contra uma piedade mariana exagerada.
1965: O Capítulo III da Constituição Dogmática sobre a Igreja é dedicado à hierarquia, mas, curiosamente, o parágrafo 25, que trata da infalibilidade, de forma alguma entra no assunto. O que surpreende mais é que, na realidade, o Concílio Vaticano II deu um passo fatal. Sem indicar razões, ele estendeu expressamente a infalibilidade, que havia sido restrita unicamente ao papa no Concílio Vaticano I, ao episcopado. O Concílio atribuiu a infalibilidade não só ao episcopado reunido em um concílio ecumênico (o magisterium extraordinarium), mas a partir de então também ao episcopado mundial (o magisterium ordinarium), ou seja, aos bispos em todo o mundo caso eles estivessem de acordo e decretassem que um ensinamento da Igreja sobre a fé ou a moral deveria se tornar permanentemente obrigatório.
1968: Ano em que a encíclica Humanae Vitae sobre o controle de natalidade foi publicada. O fato de essa encíclica ter sido lançada no dia 25 de julho – não só durante as férias de verão, mas também, além disso, em meio à luta do povo checoslovaco por liberdade – é geralmente interpretado como uma tática romana para que houvesse menos oposição a ela. Talvez, no entanto, ela tenha sido publicada nessa ocasião simplesmente porque o trabalho de elaboração deste documento delicado havia recém terminado. Independentemente de qual seja o motivo para a época da publicação, esta encíclica atingiu o mundo “como uma bomba”. Obviamente, o papa havia subestimado em muito a resistência a este ensinamento. Isolado como se encontrava no Vaticano, ele não tinha previsto que a opinião pública mundial reagiria de forma tão negativa.
A encíclica Humanae Vitae, que não só proibia como pecados graves a pílula e todos os meios mecânicos de contracepção, mas também o método do coito interrompido para evitar a gravidez, foi universalmente considerada um desafio incrível. Invocando a infalibilidade do magistério papal, respectivamente do magistério episcopal, o papa se opôs a todo o mundo civilizado.
Isso me alarmou como teólogo católico. Nessa época, eu já lecionava teologia na faculdade de teologia católica da Universidade de Tübingen há oito anos. É claro que protestos formais e objeções substanciais eram importantes, mas será que não tinha chegado a hora de analisar esta reivindicação de infalibilidade do magistério papal em princípio? Eu estava convencido de que havia necessidade de teologia – ou, para ser mais exato, pesquisa crítica do ponto de vista da teologia fundamental.
Em 1970, eu coloquei o assunto em discussão em meu livro “Infalível? Um questionamento”. Na época, eu não podia prever que esse livro, e com ele o problema da infalibilidade, afetaria crucialmente o meu destino pessoal e que iria confrontar a teologia e a Igreja com desafios centrais. Nos anos 1970, a minha vida e a minha obra estavam, mais do que nunca, entrelaçadas com a teologia e a Igreja.
1979-1980: A retirada de minha licença para lecionar. No volume 2 de minhas memórias, intitulado “Verdade disputada”, descrevo em detalhes como isso foi uma campanha secreta executada com precisão militar, que mostrou ser teologicamente infundada e politicamente contraproducente. Na época, o debate sobre a retirada de minha missio canonica e sobre a infalibilidade continuou por um longo tempo. Mostrou-se impossível prejudicar minha reputação entre os fiéis e, conforme eu havia profetizado, as controvérsias concernentes à reforma da Igreja em grande escala não cessaram.
Pelo contrário, durante os pontificados de João Paulo II e Bento XVI elas aumentaram maciçamente. Foi então que abordei a necessidade de promover o entendimento entre as diferentes denominações, o reconhecimento mútuo dos ministérios eclesiásticos e da celebração da Ceia do Senhor, a questão do divórcio, a ordenação de mulheres, o celibato obrigatório e a falta catastrófica de sacerdotes, mas sobretudo a liderança da Igreja Católica. A minha pergunta era: “Para onde vocês estão levando esta nossa Igreja?”
Estas questões são tão relevantes hoje quanto o eram naquela época. O motivo decisivo para esta incapacidade de reforma em todos os níveis ainda é a doutrina da infalibilidade do magistério eclesiástico, que legou um longo inverno à nossa Igreja Católica. Como João XXIII, Francisco está fazendo o melhor que pode para soprar um vento fresco para dentro da Igreja hoje e vem se deparando com uma oposição massiva, como no último sínodo episcopal em outubro de 2015. Mas não nos enganemos: sem uma “revisão” construtiva do dogma da infalibilidade, dificilmente será possível uma verdadeira renovação.
O mais surpreendente é que o debate (sobre a infalibilidade) saiu de cena. Muitos teólogos católicos não têm mais examinado criticamente a ideologia da infalibilidade por medo de sofrer sanções ameaçadoras, como no meu caso, e a hierarquia tenta, até onde for possível, evitar o assunto, que é impopular na Igreja e na sociedade.
Quando era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Joseph Ratzinger só se referiu expressamente a ela umas poucas vezes. Apesar do fato de isso não ser dito, o tabu da infalibilidade bloqueou todas as reformas desde o Concílio Vaticano II, que teriam exigido a revisão de definições dogmáticas anteriores. Isso se aplica não só à encíclica Humanae Vitae contra a contracepção, mas também aos sacramentos e ao magistério católico “autêntico” monopolizado, bem como à relação entre o sacerdócio ordenado e o sacerdócio de todos os fiéis. E aplica-se igualmente a uma estrutura eclesiástica sinodal e à reivindicação do poder papal absoluto, à relação com outras denominações e religiões, assim como à relação com o mundo secular em geral. É por isso que a interrogação a seguir se faz mais urgente do que nunca: Para onde está indo a Igreja – que ainda se encontra fixada no dogma da infalibilidade – no começo do terceiro milênio? A época antimodernista iniciada pelo Concílio Vaticano I terminou.
2016: Estou em meu 88º ano de vida e posso dizer que não poupei esforços para reunir os textos relevantes, ordená-los por assunto e cronologicamente segundo as várias fases da confrontação e elucidá-los pondo-os em um contexto biográfico para o volume 5 de minhas obras completas. Com esse livro em mãos, agora gostaria de repetir um apelo ao papa que fiz repetidas vezes em vão durante a confrontação teológica e político-eclesiástica que se estendeu por décadas.
Peço encarecidamente ao Papa Francisco – que sempre me respondeu de forma fraternal:
“Receba esta documentação abrangente e permita uma discussão livre, sem preconceitos e aberta em nossa Igreja sobre todas as questões não resolvidas e suprimidas relacionadas com o dogma da infalibilidade. Dessa maneira, o legado problemático do Vaticano dos últimos 150 anos poderia ser enfrentado honestamente e ser resolvido em conformidade com a Sagrada Escritura e com a tradição ecumênica. Não se trata de um relativismo trivial que solapa o fundamento ético da Igreja e da sociedade. Mas também não se trata de um dogmatismo impiedoso, que mata o Espírito e se apega à letra, que impede a renovação completa da vida e do ensino da Igreja e obstrui um progresso sério no ecumenismo. Certamente não é o caso de eu querer pessoalmente ter razão. É o bem-estar da Igreja e do ecumenismo está em jogo.
Estou muito ciente do fato de que meu apelo ao senhor, ‘que vive entre lobos’, como observou recentemente um bom conhecedor do Vaticano, pode não ser oportuno. Em sua alocução de Natal, no dia 21 de dezembro de 2015, no entanto, confrontado com doenças e mesmo escândalos da Cúria, o senhor confirmou a sua vontade de reforma: ’Parece necessário dizer o que foi – e será sempre – objeto de reflexão sincera e de medidas decisivas. A reforma prosseguirá com determinação, clareza e firme resolução, porque Ecclesia semper reformanda [a Igreja deve ser reformada sempre]’.
Eu não gostaria de alimentar as esperanças de muitas pessoas em nossa Igreja de maneira irrealista. A questão da infalibilidade não pode ser resolvida de um dia para o outro na nossa Igreja. Felizmente, o senhor (Papa Francisco) é quase dez anos mais jovem que eu e, espero, irá sobreviver a mim. Com certeza o senhor vai, além disso, entender que, como teólogo no fim de seus dias, imbuído por uma profunda simpatia pelo senhor e seu trabalho pastoral, quis transmitir-lhe em tempo hábil este pedido de uma discussão livre e séria sobre a infalibilidade que está bem fundamentada neste volume: non in destructionem, sed in aedificationem ecclesiae, ‘não no intuito de destruir, mas de edificar a Igreja’. Para mim pessoalmente, esta seria a realização de uma esperança de que eu jamais desisti.”
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Infalibilidade. O apelo de Hans Küng ao Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU