22 Julho 2017
O presidente francês é hoje o queridinho dos meios de comunicação e dos think tanks norte-americanos. Em 2016, a América do Norte de Obama encabeçava o soft power: hoje a América de Trump desperdiçou esse “privilégio” e Macron o recuperou.
A reportagem é de Eduardo Febbro, publicada por Página/12, 21-07-2017. A tradução é de André Langer.
A França tirou dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha o privilégio de ser a maior potência mundial do soft power, ao passo que a Argentina perdeu seu lugar na lista das 30 nações que lideram a classificação do soft power. Nestes dois curtos meses de mandato, a presidência de Emmanuel Macron, o anti-modelo absoluto de Donald Trump, empurrou a França para o topo das potências coloniais e militares que, paradoxalmente, melhor encarnam esse soft power que designa a capacidade de influência e de persuasão de um Estado, de seus atores políticos, econômicos e culturais no tabuleiro internacional.
A classificação foi elaborada pelo Centro de Diplomacia da Universidade da Carolina do Sul e pela consultora Portland e remete a um conceito inventado nos anos 90 pelo cientista político Joseph Nye, ex-subsecretário de Estado na presidência de Jimmy Carter e secretário-adjunto da Defesa de Bill Clinton. Até o ano passado, a França ocupava o quinto lugar nessa lista, atrás de Canadá, Alemanha, Grã-Bretanha e Estados Unidos. A renovação da imagem da França feita por Macron através da derrota do populismo cinza da extrema-direita nas eleições presidenciais, da habilidosa diplomacia presidencial, das narrativas políticas recombinadas e dos espantalhos que tem ao redor, Trump nos Estados Unidos e a Grã-Bretanha do Brexit, explicam esta distinção por demais paradoxal em seu conjunto.
É uma ironia que potências mundiais que têm milhares de tropas espalhadas (existem 30 mil soldados franceses em operações no exterior), que bombardeiam regiões como Iraque, Síria ou Mali, que assassinam à vontade com drones, que manipulam os mercados financeiros internacionais, que fazem o que querem com os preços das matérias-primas, que subvencionam desonestamente seus produtos, que viciam os mercados internacionais e que recorrem às piores artimanhas e a todo tipo de pressão para submeter os outros países possam ser campeões do “poder brando”.
No entanto, esta realidade central não retira nenhuma pertinência ao conceito de Joseph Nye, porque a partir dele os Estados reconfiguraram a percepção do seu poder de influência e, sobretudo, sua comunicação política. A classificação compreende 30 Estados “influentes” e nela, este ano, só figura um país latino-americano, o Brasil, que desceu do posto 24 em 2016 para o 29. Em 2016, a Argentina estava na trigésima posição, que agora perdeu para a Turquia. Chile, Argentina e México aparecem como outsiders na trigésima segunda, trigésima terceira e trigésima quarta posição, e representam, segundo o relatório, uma “promessa” de soft power para o futuro (página em inglês do relatório completo: http://softpower30. portland-communications.com/wp-content/uploads/2017/07/The-Soft-Power-30-Report-2017-Web-1.pdf).
O relatório aduz que o sucesso de países como a Argentina e o México depende de seus progressos “em áreas fracas, tais como: empresas e governabilidade”. Os autores explicam que, embora em 2016 a Argentina estivesse entre os 30 Estados soft power “apoiada pela eleição de Mauricio Macri e uma onda de positividade”, agora o país poderia “melhorar sua atratividade no plano econômico e cultural com um enfoque mais ativo da empresa e do governo” para “superar sua estagnação”.
Emmanuel Macron é hoje o queridinho dos meios de comunicação e, sobretudo, dos think tanks norte-americanos. O Ocidente inventa e distribui seus prêmios entre os amigos. A ideia do soft power nasce do livro Bound to Lead publicado nos anos 90 por Joseph Nye em oposição frontal ao “hard power” e as teorias declinistas que circulavam nessa época, promovidas especialmente por pessoas como Paul Kennedy. O poder brando opõe-se ao conceito de poder duro e seus eixos forjados na força e nas coalizões militares, políticas e econômicas. É seu exato contrário. Nos anos 1990, em pleno auge das teorias sobre o ocaso da potência norte-americana (os declinistas), Joseph Nye mudou o padrão da medida.
De acordo com o seu livro Bound to Lead, e o que publicou em 2004 (Soft Power) o soft power é, em seu conjunto, a influência cultural de uma sociedade, sua atratividade social, seu ímã. É, em suma, Steve Jobs, Hollywood, o rock, a literatura, a comida, as novas tecnologias, o Facebook ou o Vale do Silício. Nye teve a brilhante ideia de integrar esses valores na concepção do poder de persuasão e, a partir daí, afirmou que não havia nenhum ocaso, mas que, ao contrário, a potência, o poder, tinha mudado de canal.
Nye transformou para sempre a noção meramente binária do poder, o pau e o algodão. O cientista político explicou que, graças à sua diplomacia, ao prestígio, à capacidade de comunicar – o já famoso “story telling” –, aos discursos atraentes, à sua massa inigualável de ofertas culturais, os Estados Unidos não apenas mantinham todo o seu poderio intacto, mas que, além disso, graças ao seu soft power, eram perfeitamente capazes de atrair aliados e influenciar as decisões internacionais.
No relatório anual The Soft Power 30 a Universidade da Carolina do Sul e a consultora Portland colocaram assim a França no topo da classificação, na frente de Grã-Bretanha, Estados Unidos, Alemanha e Canadá. Em 2016, era a América do Norte de Barack Obama que liderava o soft power. Em 2017, a América de Trump desperdiçou esse privilégio e a França o recuperou com “o dinamismo trazido pela eleição de Emmanuel Macron”. Os autores do relatório baseiam-se em uma série de critérios e dados extraídos de seis categorias: governabilidade, cultura, educação, compromisso global, empresas, campo digital e em uma pesquisa que considera a percepção dos turistas.
Contudo, reconhecem que o salto francês é fruto de uma combinação de acidentes que vão desde o caos do Brexit, a vitória do tumultuado twitteiro boxeador ignorante de Donald Trump e sua pedra filosofal “A América grande outra vez” e a própria vitória de Macron nas eleições presidenciais de abril e maio de 2017. Neste sentido, no relatório, o próprio Joseph Nye comenta que “o desejo de Donald Trump de que os Estados Unidos sejam grandes outra vez continua a dinamitar o soft power norte-americano”.
A Argentina saiu em 2017 da classificação dos 30 onde figurava em 2016. Na seção dedicada ao país (Soft power and public diplomacy in Latin America: A view from Argentina), o autor, Tomás Kroyer (coordenador do Ministério de Relações Exteriores), mostra-se elogioso com o governo de Macri e com o que ele chama de “sua diplomacia de abertura” a todas as regiões do mundo, assim como com seus objetivos, os quais, escreve, “suscitaram um forte apoio em escala mundial durante os primeiros 18 meses do mandato”.
No entanto, há algum caminho a percorrer, assim como para o conjunto da América Latina. O capítulo sobre a Argentina é de um paternalismo consensual e baboso que se perde em generalidades, recomenda “a comunicação, a transparência e o diálogo” e a “integração das novas tecnologias”. Tomás Kroyer afirma que a Argentina está “no caminho certo” para alçar-se como “uma nação moderna, uma nação diplomática com vocação numérica do século XXI”. O senhor parece ignorar que essa tem sido a vocação do país e que, à exceção de episódios já distantes ou crises pontuais, nenhum país da América Latina perseguiu objetivos coloniais, estratégias de dominação militar ou se dotou de força suficiente para invadir o mundo. Em vez disso, sua história é a de uma vítima dos apetites coloniais do Ocidente.
O soft power é, no final das contas, a capacidade que um Estado detém para alcançar os seus objetivos, ou seja, impor seus interesses, sem fazer uso da força. Seria uma espécie de colonialismo soft, cuja prática é, desde o século XVII, uma das grandes especialidades francesas. Através do seu idioma, da sua cultura, do seu universalismo, da sua cultura igualitária, da filosofia das Luzes ou da ideologia revolucionária, a França propagou sua capacidade persuasiva, simultaneamente às suas expedições coloniais. O conceito ficou desde então gravado na narrativa nacional: “Le rayonement de France” (o resplendor).
Em seu inigualável Guia de Paris, publicado em 1867, Victor Hugo já distinguia a existência de um poder duro e outro brando, de um poder do dinheiro e outro das ideias. Ali, o autor de Os Miseráveis escreveu: “Ao redor de Paris, a monarquia passou o seu tempo construindo muralhas e a filosofia passou o seu tempo destruindo-as. E como fez isso? Através da simples irradiação das ideais. Não há potência mais irresistível. O resplendor é mais forte que uma muralha”.
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A França, com Macron, lidera o poder brando - Instituto Humanitas Unisinos - IHU