03 Mai 2017
"Basta olhar a embriaguez eufórica de todos os fãs do liberalismo social [vii] após a vitória de Macron em 23 de abril e o aumento espetacular das bolsas de valores para entender claramente o que significa, politicamente, o triunfo de Emmanuel Macron: uma revanche de castas, dos poderosos do sistema", escreve Ignacio Ramonet, jornalista, em artigo publicado por Le Monde Diplomatique, 02-05-2017. A tradução é de Henrique Denis Lucas.
Eis o artigo.
A primeira surpresa foi... que não teve surpresa. Pela primeira vez as pesquisas não erraram. No Reino Unido com o Brexit ou nos EUA com Donald Trump, as pesquisas erraram feio. Na França, no entanto, com semanas de antecedência, as empresas de consultoria anunciaram que no primeiro turno das eleições presidenciais, em 23 de abril, os vencedores seriam, nesta ordem: Emmanuel Macron (‘Em Marcha!’) e Marine Le Pen (Frente Nacional) seriam os únicos a avançar para o segundo turno do domingo de 7 de maio. E que logo em seguida viriam, nesta ordem: François Fillon (‘Os Republicanos’), Jean-Luc Mélenchon (‘França Insubmissa’) e Benoît Hamon (Partido Socialista). Elas acertaram[I].
Tais resultados, em um país traumatizado pela crise social e pelos ataques jihadistas, são um verdadeiro terremoto e merecem vários comentários.
Primeiro, eles indicam o final de um longo ciclo da história política francesa, que começou em 1958 com o General de Gaulle, com a adoção da Constituição atual e o estabelecimento da Quinta República. Desde então, ou seja, há quase sessenta anos, pelo menos um dos dois grandes partidos franceses sempre tinha ido para o segundo turno: o gaullista (com diferentes apelos ao longo do tempo, RPR, UDR, UMP, LR) e o socialista. Desta vez, pela primeira vez, nenhum dos dois conseguiu superar os obstáculos da primeira rodada. Isso já é histórico e demonstra, como em outros países, o profundo desgaste das formações políticas tradicionais que dominaram a cena desde a Segunda Guerra Mundial.
Dos quatro candidatos que ficaram nas primeiras posições neste primeiro turno, apenas um, François Fillon, representa um partido tradicional; os outros três representam forças alternativas totalmente novas (‘Em Marcha!’) ou quase sem representantes na Assembleia Nacional (‘Frente Nacional’ e ‘França Insubmissa’).
A derrota é surpreendente, em particular, para o Partido Socialista, que está no poder desde 2012 e controla os três principais centros de decisão política: a Presidência da República (François Hollande), a Presidência do Governo (o primeiro-ministro Bernard Cazeneuve) e a Assembleia Nacional. O candidato socialista, Benoît Hamon - chefe local de um grupo de oposição ao presidente Hollande e que ganhou as primárias contra o ex-primeiro-ministro Manuel Valls, entre outros -, liderou uma campanha particularmente desastrosa, equivocada e errática.
Com algumas boas ideias (o Salário Mínimo Universal), mas com uma obsessão antirrussa histérica e uma recusa arrogante às parcerias com a grande força da esquerda, foi assim que a 'França Insubmissa' de Jean-Luc Mélenchon se posicionou. Hamon ficou com apenas 6,36% dos votos, o pior resultado em sessenta anos do Partido Socialista. E ainda pior é que os ambientalistas estavam com ele... Com um resultado tão desastroso, Benoît Hamon compromete o futuro do Partido Socialista, que, após o fracasso do impopular presidente François Hollande, corre o risco de ficar aos pedaços.
Outro caso trágico é o de François Fillon, candidato do ‘Os Republicanos’, o partido herdeiro do gaulismo e da expressão sociológica da ampla burguesia conservadora. Contra todas as probabilidades, Fillon tinha conseguido prevalecer nas primárias contra candidatos de peso como Nicolas Sarkozy (ex-presidente, de 2007 a 2012) e Alain Juppé (ex-primeiro-ministro), mas possuía um programa de punição social muito difícil. Naturalmente, essas primárias deveriam ser seu principal obstáculo e, depois de superado, todas as pesquisas mostravam que ele seria o futuro presidente da França. Mas aí começou o seu calvário.
O jornal satírico "Le Canard enchaîné" publicou uma série de revelações sobre os "empregos fictícios" que Fillon, como deputado (e que a lei, até certo ponto, permitia), deu a sua esposa e filhos. Começou então uma campanha de agressão midiática contra ele, extraordinariamente violenta. Durante semanas a fio, a mídia o criticou e arruinou sua imagem. Na verdade, em comparação com a Espanha, a corrupção de Fillon não foi tão grave. Cabe perguntar a que se deve tanta raiva contra o candidato da direita tradicional. Para abrir as portas a Emmanuel Macron, que tem forte apoio da maioria dos oligarcas que detêm a mídia dominante? Para punir a aposta de Fillon de estabelecer, na política internacional, uma aliança com a Rússia?
Outra lição que fica dos resultados do primeiro turno relaciona-se ao partido Frente Nacional (FN), de extrema direita. Este partido vem ganhando, ultimamente, no primeiro turno, quase todas as eleições na França. Mas o sistema de dois turnos obriga os partidos a continuar com as alianças no segundo turno. E a Frente Nacional é um partido órfão, que quase não tem aliados [ii], não podendo constituir uma grande coligação, e fica desprovido das reservas de votos necessárias para superar o obstáculo do segundo turno. Por exemplo, nas eleições regionais de dezembro de 2015, a FN foi o partido mais votado (27,73%) da França no primeiro turno, mas no segundo turno, sem aliados, não conseguiu conquistar a liderança de nenhuma região.
Em 23 de abril, a líder Marine Le Pen não conseguiu lançar seu partido ao topo e ficou em segundo lugar com um milhão de votos a menos que Emmanuel Macron. Foi uma grande decepção para o seu eleitorado. Enquanto a grande mídia, em uma mobilização a favor da Macron, agitou o espectro de uma possível vitória da FN em 7 de maio, é praticamente impossível que isso aconteça. O risco de ver Marine Le Pen ganhar o segundo turno é mínimo em um país onde, em 23 de abril, 80% dos eleitores não votaram nela. Embora este partido, a favor da crise, tenha tentado se reconverter disfarçando suas características neofascistas mais visíveis e adotando as características do populismo de direita, mantém seu DNA racista, antissemita e xenófobo. Sua provável derrota (mais uma...) certamente levará a uma crise existencial.
Embora a FN tente tirar isso a limpo nas eleições legislativas de 11 e 18 de junho, em que o segundo turno terá menos impacto por haver quatro forças [iii] (ou mesmo cinco, contando com o Partido Socialista) que se enfrentam, como se prevê, no segundo turno, em dezenas de confrontos triangulares e até mesmo quadrangulares... [iv]
Apesar de não conseguir ir para o segundo turno, o outro vencedor destas eleições é, sem dúvida, Jean-Luc Mélenchon, líder do 'França Insubmissa'. Em 2012, Mélenchon recebeu 4 milhões de votos (11%). Desta vez, atingiu 7 milhões (19,6%). Ficou a apenas seiscentos mil votos do segundo turno... E para maior clareza da discussão: isso é uma pena. Considerado "o melhor orador da política francesa", o líder rebelde fez uma campanha inteligente, intensa, brilhante e criativa. Com as inovações tecnológicas globais, como os hologramas, que lhe permitiram estar 'presente' em seis cidades ao mesmo tempo... E desenvolveu um programa preciso e claro [v] sobre todos os temas que interessam hoje a uma sociedade tão duramente atingida pelo desemprego, pela marginalização social e pela violência dos ataques jihadistas. Ele apostou na 'transição ecológica' e soube compreender e expressar a indignação de muitos franceses fartos da politicagem e que, como em alguns países da América Latina, clamam: “Que caiam todos!”.
O peso dos eleitores 'insubmissos' será decisivo no segundo turno. E é também muito provável que essa poderosa força eleitoral permita que Jean-Luc Mélenchon tenha um resultado importante no "terceiro turno", ou seja, as eleições legislativas previstas para 11 e 18 de Junho. Como quarta força política no país, o 'França Insubmissa' poderia constituir um grupo parlamentar de apoio indiscutível com um papel decisivo na nova Assembleia.
Uma última consideração sobre Emmanuel Macron (39 anos), vencedor de 23 de abril e provável novo presidente da França. Com sua pouca experiência - foi assessor do presidente Hollande e Ministro da Economia por pouco tempo -, sentiu que o sistema político tradicional estava apodrecendo e se arruinando. Saiu do governo, abandonou Hollande e lançou, para a descrença geral, o Movimento 'Em Marcha ! ' (que tem suas próprias iniciais...) quando parecia que não havia espaço para uma nova força política.
Na verdade, o sucesso de Macron deve-se mais às circunstâncias do que a seus próprios méritos. Uma série de acontecimentos imprevistos foram eliminando seus principais rivais em potencial. Dentro do Partido Socialista, seu concorrente mais perigoso, Manuel Valls, foi eliminado nas primárias. E o candidato nomeado, Benoît Hamon, considerado esquerdista demais e como um "traidor" para Hollande, não podia seduzir os socialistas e, portanto, não era um oponente nocivo para Macron.
Em seguida, na formação de direita ‘Os Republicanos’, o candidato que mais poderia atrapalhar, Alain Juppé, perdeu. E o vencedor, François Fillon, foi destruído pelos escândalos de corrupção. Ainda por cima, o presidente François Hollande anunciou que não iria concorrer à eleição.
Que adversários sobraram para Macron? Essencialmente, dois: Marine Le Pen e Jean-Luc Mélenchon. Nem o poder financeiro, nem o poder corporativo e nem o poder da mídia aceitavam, por várias razões, estes dois candidatos. Assim, a partir de fevereiro, todo o peso formidável dos poderes fáticos ficou a serviço de Emmanuel Macron. Particularmente, a mídia hegemônica - nas mãos de alguns poucos oligarcas multimilionários - lançou-se em uma campanha frenética a favor do líder do 'Em Marcha !', dando a ele, também, um considerável apoio financeiro. Assim, Macron, orador medíocre com um programa ainda mais confuso para disfarçar seu caráter furiosamente ultraliberal, foi se impondo nas pesquisas como o provável vencedor.
Se sua vitória no primeiro turno, como acabamos de discutir, deve-se em parte às circunstâncias e à eliminação conjuntural de seus rivais, por outro lado, é também resultado do que Macron representa. Em um sistema em colapso em que os partidos tradicionais estão sendo varridos [vi], o líder do 'Em Marcha!' declara-se abertamente 'pró-europa', neoliberal e defensor do livre comércio. Defende claramente a 'uberização' da economia e aposta no sócio-liberalismo. Seu projeto, em vias de realização, responde ao velho sonho das elites burguesas em tempos de crise: constituir uma formação política que poderia ser chamada de Grande Centro, integrando a esquerda da direita, o próprio centro e a direita da esquerda. Em poucas palavras, como diria o Conde de Lampedusa: mudar tudo para não mudar nada.
Basta olhar a embriaguez eufórica de todos os fãs do liberalismo social [vii] após a vitória de Macron em 23 de abril e o aumento espetacular das bolsas de valores para entender claramente o que significa, politicamente, o triunfo de Emmanuel Macron: uma revanche de castas, dos poderosos do sistema.
Mas uma restauração é apenas um respiro em meio a uma crise. O povo ainda não deu sua última palavra.
Notas:
[I] Os resultados oficiais são os seguintes: Emmanuel Macron 24,1%; Marine Le Pen 21,3%; François Fillon 20,01%; Jean-Luc Mélenchon 19,58%; Benoît Hamon 6,36%.
[II] Em 29 de abril, foi anunciado um acordo para o segundo turno entre Marine Le Pen e Nicolas Dupont-Aignan, líder de um pequeno partido soberanista "Debout la France' (Levantar a França), que obteve apenas 4,7% dos votos no primeiro turno. É a primeira vez que a Frente Nacional faz um acordo eleitoral com outra força política. Marine Le Pen anunciou que, se ganhar as eleições de 7 de maio, nomearia Dupont-Aignan como primeiro-ministro.
[iii] En Marche!, Front National, Les Républicains y France Insoumise.
[IV] A lei eleitoral na França afirma que, nas eleições presidenciais, apenas os dois candidatos com maior número de votos passam para o segundo turno. Já nas eleições legislativas todos os que tiverem pelo menos 12,5% dos votos passam para o segundo turno, ou seja, teoricamente, até oito candidatos...
[v] Para mais informações, acesse aqui.
[VI] Em 23 de abril, metade do eleitorado votou a favor de líderes 'antissistema' que pedem a saída da França da União Europeia ou pelo menos a renegociação dos tratados europeus.
[VII] Na Espanha, por exemplo, o jornal 'El país', órgão oficial do liberalismo social, publicou no dia seguinte à vitória de Macron no primeiro turno, um editorial cujo título significativo era "A esperança Macron" (24 de abril de 2017).
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França, nova etapa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU