Por: João Vitor Santos | 18 Março 2017
O entardecer da quinta-feira, 16-3, veio acompanhado de queda de temperatura e chuvisqueiro, recordando a atmosfera do inverno no Pampa. Ambiente mais intimista, ideal para mergulhar na cultura pampiana, embalado pelas milongas reproduzidas por Demétrio Xavier. O músico porto-alegrense orientou a audição comentada que analisou a influência do bioma Pampa na cultura desse povo que vive ao sul do continente. “Eu não tenho muito o que dizer do bioma, do ponto de vista do que o limita legalmente, mas destaco que esse lugar é a intersecção, o que liga os países platinos”, destaca o especialista na música crioula do Uruguai e da Argentina. A atividade, dentro do espaço do IHU ideias, promovido semanalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, integrou o ciclo Os biomas brasileiros e a teia da vida. A programação do ciclo se estende até 14 de junho.
Demétrio Xavier: "O Pampa é a vacuidade, o vazio. Tem algo de não lugar”. (Foto: João Vitor Santos | IHU)
Conhecer a cultura do Pampa é muito mais do que falar do gaúcho brasileiro. É para reforçar essa perspectiva que Demétrio busca na poesia do folclorista Augusto Meyer as primeiras ideias do significado da palavra. “A expressão ‘alma pampiana’ que ele utiliza, por exemplo, está associada à alma dos povos indígenas que viviam nessa região, no que hoje é a área da Argentina”, destaca. Seja no texto de Meyer ou nos versos da música Arriba Quemando el sol, da chilena Violeta Parra, Demétrio demonstra como esse bioma é associado ao vazio, à imensidão. “O Pampa é a vacuidade, o vazio. Tem algo de não lugar”, pontua. Ideia que também aparece na obra do poeta e violonista argentino Atahualpa Yupanqui, quando diz que o “o Pampa é o céu ao contrário”. “Ora, mas o céu ao contrário é o inferno”, brinca Demétrio. “Mas ele está se referindo ao reflexo do céu que aparece noutro pampa, o salítrico (região do Chile). Uma pampa bem diferente da imagem que conhecemos dos campos daqui”, explica.
Toda essa geografia acaba tendo reflexos na alma do habitante dessa região. É o que Yupanqui trata no poema Tiempo del Hombre. “Esse é o homem do Pampa, assombrado pela sua magnitude. Ele não tem terra, até porque não era sua a propriedade, e diz que sua terra é o pampa por onde se desloca”, recorda Demétrio, que ainda busca essa referência no nomadismo dos povos originais que tinham o horizonte e a imensidão como casa. “Yupanqui fala em chegar a alguém pelo caminho mais largo, podendo ser visto de todos os lados”, exemplifica ao falar da alma do habitante do Pampa, ainda passando pelos versos de Pa’ Dolores e Huella de Santos Vega.
Depois de cerca de uma hora e meia de muita prosa e música, o público pede para Demétrio encerrar a audição com mais uma milonga. Ele escolhe uma música que representa bem a beleza e a simplicidade do folclore de quem vive no Pampa. Os versos de sua autoria surgem da conversa com o velho senhor, personagem pampiano, que vive na cidade de Guaíba e que traz na memória um município muito menos cidade e mais estância. “Contava a ele sobre uma conversa que ouvia de dois jovens. Eles falavam de lobisomem e me impressionou como pareciam crer naquilo”, recorda. Nesse diálogo, o gauchão franze a testa, olha firme e desfere: “Olha Demétrio, se existe o nome, existe também a 'cousa'”.
O músico conta que se surpreende com a inferência do velho amigo. Ainda titubeia, meio sem jeito, quando o gaúcho segue a explicação, lembrando de um tempo que nem ele viveu. “’Tu já viu como sempre tem cerração na Sanga do Pedro Lira’, me disse ele com tom intrigante”, conta Demétrio. O músico explica que ainda existe essa sanga, um pequeno riacho, que, decerto, leva o nome do antigo proprietário das terras. Embora cientificamente se saiba que não é possível uma neblina perpétua, Demétrio reconhece que é frequente a cerração na Sanga do Pedro Lira. “É assim que nascem esses versos”, conta. Assim, nos versos e na música, Demétrio deixa o convite para essa aproximação de um causo de um personagem tão típico num ritmo caracteristicamente pampiano.
Músico porto-alegrense, especializado na música crioula do Uruguai e da Argentina. Atuando no Rio Grande do Sul e nos dois países platinos, enfatiza sua pesquisa na obra do argentino Atahualpa Yupanqui, tendo traduzido e gravado, em versão bilíngue, seu poema maior, “O Pajador Perseguido”. Venceu a Califórnia da Canção Nativa, festival de música gaúcha, em 2009, com uma poesia musicada por Marco Aurélio Vasconcellos, “A Sanga do Pedro Lira”. Conduz na FM Cultura de Porto Alegre o programa Cantos do Sul da Terra, dedicado à música e à literatura do sul do continente e indicado em 2012 para o Prêmio Press.
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Pampa: do vazio de tudo ao céu ao contrário - Instituto Humanitas Unisinos - IHU