14 Dezembro 2016
A cobertura dos meios de comunicação católicos ainda é grandemente modelada por uma mentalidade e uma eclesiologia marcadas pela “hierarquiologia”
O artigo é de Massimo Faggioli, historiador e professor da Villanova University, nos EUA, publicado por La Croix International, 13-12-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
A recente cobertura feita pelos meios de comunicação em torno do Papa Francisco centrou-se sobre uma iniciativa de quatro cardeais que expressaram publicamente suas ‘dubia’ (dúvidas) relativas à exortação apostólica Amoris Laetitia.
Grande parte da atenção midiática buscou perceber até que ponto os católicos comuns compartilham das preocupações dos cardeais segundo os quais o papa está alterando fundamentalmente a doutrina da Igreja.
Poucos jornalistas da grande mídia que trabalham cobrindo a Igreja e o Vaticano tentaram ir além do curto-circuito entre a liderança da Igreja e a imprensa católica.
Por exemplo, os jornalistas católicos enfrentam o dilema entre praticar o “jornalismo de acesso” (dando voz ao sistema como é) e o “jornalismo de responsabilização” (questionando a instituição e seus sistemas). Eis também uma questão eclesiológica que vai além de um certo estilo de cobertura das notícias católicas.
Dean Baquet, diretor executivo do New York Times, afirmou recentemente que tem havido um problema na cobertura da religião por parte da imprensa desde a eleição de Donald Trump.
“Quero ter certeza de que somos muito mais criativos em torno das vitórias neste país, para que entendamos a raiva e a desconexão que as pessoas sentem. E acho que uso a religião como um exemplo porque fui criado como católico em Nova Orleans”, disse Baquet em entrevista à National Public Radio [rádio pública nos EUA].
“Penso que as casas de comunicação de Nova York e Washington não entendem muito bem o tema religião”, falou.
“Temos uma escritora fabulosa no ramo, mas que está completamente sozinha. Nós não entendemos o assunto religião. Não compreendemos o papel da religião na vida das pessoas. E acho que podemos fazer algo muito, muito melhor”, acrescentou ele.
O que Dean Baquet diz é especialmente verdadeiro para o catolicismo. Vimos isto no debate recente em torno de um documento papal sobre a família e o matrimônio. Este, certamente mais do que a maioria dos outros documentos, deveria atrair a atenção da imprensa para além dos prédios eclesiásticos do catolicismo romano, europeu e do hemisfério norte; deve além das classes alta e média católicas.
Em vez disso, alguns relatos sobre como Amoris Laetitia está sendo recebida parecem vir direto da idade média, onde o sucesso ou o fracasso de um papa eram mensurados pelo número de cardeais que lhe prestavam “obediência” comparado com aqueles que se aliavam ao antipapa.
Em outras palavras, a cobertura midiática católica ainda é grandemente modelada por uma mentalidade e uma eclesiologia marcadas pela “hierarquiologia”. Esta é a palavra que o Pe. Yves Congar, dominicano francês e o mais importante teólogo do Concílio Vaticano II, empregou para descrever a visão pré-conciliar da Igreja.
Claramente existem diferentes eclesiologias que modelam o trabalho de reportagem de vários meios de comunicação católicos. A eclesiologia implícita do La Croix International, por exemplo, é uma eclesiologia conciliar da Igreja no mundo global moderno.
Muitas vezes, porém, a tendência é a de clericalizar desnecessariamente a Igreja. E isso é algo que não pode ser atribuído somente aos jornalistas. A dimensão do papado hoje, uma dimensão moderna, amiga da imprensa, mudou fundamentalmente a forma como o Bispo de Roma serve à Igreja. Sem dúvida, ela tornou a Igreja mais centrada no papa na relação de como era antes do Vaticano II.
Se olhamos para o sítio eletrônico oficial da Santa Sé, fica claro que o sistema comunicacional do Vaticano baseia-se numa eclesiologia que tem o papa no centro. Mas os jornalistas não são obrigados a seguir a eclesiologia do sítio do Vaticano. Nesse sentido, a nova série televisiva “The Young Pope” (estrelando Jude Law como o jovem Pio XIII, nascido nos EUA) entende muito bem que o estilo comunicacional de um papa vem de – e expressa uma – certa eclesiologia.
Voltando à iniciativa dos quatro cardeais... Ela com certeza é válida. Mas igualmente digna de virar notícia é a recepção que o magistério do Papa Francisco sobre a família e o matrimônio está tendo entre as famílias católicas e fiéis casados, bem como entre todos aqueles católicos que – graças à experiência pessoal – estão igualmente (se não mais) equipados do que os quatro cardeais para fazer um juízo a respeito do documento papal.
O problema é que, nos últimos tempos, o catolicismo polarizou-se em campos ideológicos separados e opostos (mais evidente nos países anglo-saxões). Isso tornou questões éticas e metodológicas particulares da cobertura midiática religiosa mais sérias, visto que um tipo de defesa sempre faz parte da mensagem.
Não é de surpreender que aqueles indivíduos dos meios de comunicação católicos conhecidos pela falta de simpatia para com o Papa Francisco têm feito uma cobertura substancial à iniciativa dos quatro cardeais. É seguro dizer que essa iniciativa foi pensada especialmente para esse tipo de imprensa católica. E não é muito diferente quando olhamos para a lista dos acadêmicos que assinaram uma carta em apoio aos quatro cardeais. [1]
Parte deste problema polarizador é a invasão da cultura das mídias sociais no campo do jornalismo, incluída a cobertura da Igreja Católica.
“Essa nova ecologia dos meios comunicacionais ameaça a unidade da Igreja e substitui noções eclesiais católicas de comunicação por um modelo secular importado de identidade cultural que reduz o ritual e a doutrina a ferramentas para marcar diferença”, observa Vincent Miller, presidente da Cátedra Gudorf de Teologia Católica da Universidade de Dayton, Ohio.
“Como um extremo decorrente, a unidade se reduz a um mero resultado interno da marcação externa da diferença”, diz.
O que vem sendo aceito e, às vezes, tem sido típico do jornalismo católico é uma mentalidade paracismática, devido a uma cultura midiática que fomenta a criação de comunidades virtuais desconexas da experiência concreta da Igreja em suas diversidades tangíveis.
Sejamos honestos: as mídias sociais tendem a criar sectarismo.
Uma coisa é quando o sectarismo é promovido para, digamos, apreciadores de vinho. Mas quando ele é promovido nos meios de comunicação católicos, o problema assume uma dimensão totalmente diferente.
O catolicismo sempre foi um sistema complexo em termos culturais, sociológicos e institucionais. A ênfase do período pós-Vaticano II na eclesiologia da “recepção” do ensino católico tornou o sistema ainda mais complexo (quer dizer, a recepção pelos fiéis católicos; a recepção institucional e magisterial; a recepção ecumênica e inter-religiosa).
Em certo sentido, a nossa cobertura das notícias católicas ainda segue amplamente uma eclesiologia pré-recepção e pré-Vaticano II. No entanto, melhor seria voltar ao modo como a Igreja era percebida antes do Concílio Vaticano Primeiro (com suas declarações sobre a primazia e a infalibilidade papal), quando uma voz muito maior foi dada, por exemplo, a universidades católicas ou a experiência vivida dos leigos.
Ainda há o problema em compreender a dimensão vertical da Igreja; isto é, os níveis diferentes de sua entidade. O Papa Francisco falou sobre isso em um de seus discursos mais importantes, proferido durante o Sínodo dos Bispos de 2015, quando identificou a Igreja como uma “pirâmide invertida” em que “vértice encontra-se abaixo da base”.
Mas tem também a questão de cobrir a Igreja em sua dimensão horizontal, em sua universalidade que cobre o mundo inteiro. Ou – nas palavras do famoso teólogo jesuíta Karl Rahner – a Igreja do Vaticano II é uma “Igreja mundial”, que não é só europeia, ocidental ou encontrada no hemisfério norte.
Eis algo particularmente importante quando falamos do ensino da Igreja sobre o matrimônio e a família.
Os nossos meios de comunicação estão se esforçando para lidar com as novas tecnologias da informação e comunicação. E os meios comunicacionais que estão cobrindo o catolicismo estão também tentando se ajustar a uma nova eclesiologia global e não clerical.
Agora o Papa Francisco está lançando uma nova luz sobre a necessidade de cobrir a Igreja Católica em sua “catolicidade” real.
Nota da IHU On-Line:
[1] O autor cita o artigo presente aqui.
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As dúvidas dos quatro cardeais e a eclesiologia dos meios de comunicação - Instituto Humanitas Unisinos - IHU