21 Março 2016
O dia 19 de março de 2016 entrou para a história da comunicação da Igreja Católica. Foi quando o Papa Francisco inaugurou a sua conta pessoal no Instagram, @Franciscus.
A análise é de Moisés Sbardelotto, jornalista, mestre e doutorando em Ciências das Comunicação pela Unisinos e autor do livro E o Verbo se fez bit: A comunicação e a experiência religiosas na internet (Ed. Santuário, 2012).
Eis o texto.
O dia 19 de março de 2016 entrou para a história da comunicação da Igreja Católica. Depois das primeiras imagens filmadas de um papa, com Leão XIII (1896); da primeira emissão radiofônica papal com Pio XI (1931); do primeiro papa a falar na televisão com Pio XII (1949); do primeiro e-mail enviado por João Paulo II (1995); e do primeiro tuíte enviado por um papa com Bento XVI (2012), chegou a vez da primeira postagem de um papa na plataforma sociodigital de fotos Instagram. Foi o que aconteceu nesse sábado, quando o Papa Francisco inaugurou a sua conta @Franciscus.
A primeira imagem a ser postada na conta papal (veja abaixo) mostra o Papa Francisco ajoelhado, rezando, com a legenda “Rezem por mim” escrita em nove idiomas, do árabe ao latim, incluindo português. Na sua conta oficial no Twitter, o papa também anunciou essa nova presença com um tuíte: “Inicio um novo caminho, no Instagram, para percorrer com vocês a estrada da misericórdia e da ternura de Deus”.
Primeira foto postada na conta papal @Franciscus, no Instagram
Até o fim deste sábado, a conta pontifícia no Instagram já contava com mais de 1,1 milhão de seguidores (em crescimento quase exponencial), e a sua primeira imagem já tinha sido “curtida” mais de 185 mil vezes, tendo recebido mais de 25 mil comentários, de usuários de diversos países, em diversos idiomas. Ao longo do dia, Francisco postou outra foto e um minivídeo, que exibe o anúncio, em primeira pessoa, de sua entrada no Instagram e o momento em que ele posta a sua primeira foto.
Em seu site, o Instagram se define como “uma maneira divertida e peculiar para compartilhar a sua vida com os amigos por meio de uma série de imagens”. A empresa, que foi comprada pelo Facebook em 2012, explica que o Instagram é uma forma de construir “um mundo mais conectado através das fotos”. Essa missão, portanto, passa a ser assumida pelo pontífice. Sua entrada na plataforma, não por acaso, ocorreu depois de receber a visita do presidente-executivo e cofundador do Instagram, Kevin Systrom, no dia 26 de fevereiro, no Vaticano. Na sua conta pessoal, Systrom postou uma foto desse primeiro encontro com o papa, afirmando que havia falado com Francisco “sobre o poder das imagens para unir as pessoas nas diferentes culturas e línguas”. Celebrou-se, assim, um “compartilhamento” de intenções comunicacionais (“unir as pessoas”) entre a empresa e a Igreja.
Neste sábado, 19, Systrom esteve novamente no Vaticano, onde acompanhou a postagem da primeira imagem pontifícia no Instagram. Ele voltou a postar uma foto com o pontífice, escrevendo: “Assistir o Papa Francisco postar a sua primeira foto no Instagram hoje foi um momento incrível. @franciscus, bem-vindo à comunidade Instagram! As suas mensagens de humildade, compaixão e misericórdia vão deixar uma marca duradoura”. E é praticamente com as mesmas palavras que o papa se define na própria plataforma, em sua descrição pessoal, em inglês: “Eu quero caminhar com vocês pelo caminho da misericórdia e da ternura de Deus” ("I want to walk with you along the way of God's mercy and tenderness").
Uma “Contrarreforma digital”?
Seguindo as pegadas comunicacionais dos seus antecessores, Francisco dá mais um passo, em um movimento que vem se desdobrando ao longo dos anos por parte da Igreja, em termos de aproximação e inculturação digital. Tal movimento pode ser inserido naquilo que a teóloga Elizabeth Drescher, professora da Santa Clara University, a universidade jesuíta em pleno Vale do Silício, nos EUA, chama de “Reforma digital”.
Segundo a autora, em seu livro Tweet If You ♥ Jesus: Practicing Church in the Digital Reformation (Morehouse, 2011),
ao contrário das reformas eclesiais anteriores, a Reforma Digital é movida não tanto por teologias, dogmas e política – embora estes certamente estejam sujeitos a um questionamento renovado – mas sim pelas práticas espirituais digitalmente intensificadas de crentes comuns com acesso global entre si e a todas as formas de conhecimento religioso previamente disponíveis apenas ao clero, aos estudiosos e a outros especialistas religiosos. Isso coloca praticamente tudo em jogo – nossas tradições, nossas histórias, nossa compreensão do sagrado, até mesmo a estrutura e o significado dos textos sagrados que nós pensávamos que haviam sido assegurados em um cânone duradouro há muito tempo, no quarto século (p. 2, trad. nossa).
O que Francisco faz, hoje, é somar-se a esse processo sociocomunicacional em que passam a emergir, segundo Drescher, “práticas de acesso, conexão, participação, criatividade e colaboração [de pessoas comuns], encorajadas pelo uso disseminado de novas mídias sociais digitais em todos os aspectos da vida diária, incluindo a vida de fé” (p. 4, trad. nossa). Nesse sentido, a inovação de Francisco é principalmente intraeclesial, pois, em termos comunicacionais mais amplos, ele apenas adere, inculturando-se, a um movimento sociocultural crescente, diante do qual a Igreja não pode ficar alheia.
Se, historicamente, a Reforma Protestante foi uma revolução religiosa que desencadeou uma revolução sociocultural, como afirma Leonardo Boff, podemos dizer que a “Reforma digital” se manifesta como uma revolução sociocultural que está desencadeando uma revolução religiosa.
Em seus documentos e reflexões, o Papa Bento XVI já buscava despertar a Igreja ao que acontecia no âmbito da comunicação, tendo sido o pontífice que mais refletiu sobre aquilo que podemos chamar de midiatização digital. Das suas oito mensagens ao Dia Mundial das Comunicações Sociais, quatro delas abordam especificamente a realidade do mundo digital. Segundo Ratzinger, é possível afirmar que a chamada “Reforma digital” guia “o fluxo de grandes mudanças culturais e sociais”, dando origem a “uma nova maneira de aprender e pensar” (2011). E a Igreja Católica buscou assumi-la conscientemente, aprendendo a aprender e a pensar de forma nova no contexto digital.
Diante da “Reforma digital”, portanto, a instituição eclesial se posicionava reagindo com o apelo a uma espécie de “Contrarreforma digital” por parte da Igreja como um todo. Tal “Contrarreforma” buscou convocar toda a Igreja a se apropriar da cultura digital na sua reflexão e na sua prática, que se explicitaram, com o passar dos anos, em inúmeras iniciativas de aproximação às plataformas sociodigitais.
Nessa convocação, primeiramente, Bento XVI exortou os jovens católicos “a levarem para o mundo digital o testemunho da sua fé”, pedindo-lhes para se sentirem “comprometidos a introduzir na cultura deste novo ambiente comunicador e informativo os valores sobre os quais assenta a vida de vocês” (2009). Depois, o papa emérito se dirigiu especificamente ao clero católico mundial, afirmando que quanto “mais ampliadas forem as fronteiras pelo mundo digital, tanto mais o sacerdote será chamado a se ocupar disso pastoralmente, multiplicando o seu empenho em colocar os media ao serviço da Palavra” (2010). Além disso, o chamado do então papa à “Contrarreforma digital” se voltou a toda a cristandade: “Quero convidar os cristãos a unirem-se confiadamente e com criatividade consciente e responsável na rede de relações que a era digital tornou possível” (2013).
Portanto, em todos os níveis, o papa emérito solicitava que a Igreja exercesse “uma ‘diaconia da cultura’ no atual ‘continente digital’” (2013). Com Francisco, esse desafio foi aprofundado também institucionalmente, com a constituição de um comitê voltado para a reforma das mídias vaticanas, dentro de um conjunto mais amplo de reformas dos órgãos da Santa Sé.
Tal comitê foi constituído em julho de 2014 e estava composto por seis especialistas externos e cinco membros internos do Vaticano. Para o presidente do comitê, o inglês Christopher Patten, em discurso aos bispos ingleses, “a ampla disponibilidade da conectividade da internet globalmente significava que o conteúdo midiático do Vaticano estava teoricamente mais disponível diretamente a um público mais amplo do que antes”. E indicava uma mudança de abordagem em relação à presença digital, que demanda “uma abordagem interativa, em que a informação não é meramente ‘disseminada’ a um público passivo, mas em que haja uma capacidade de ter um diálogo com o público, respondendo a questões e críticas, convidando as pessoas a um engajamento mais profundo” (trad. nossa).
Ou seja, a instituição eclesial reconhecia as mudanças comunicacionais no âmbito digital, assumindo que o “público” já não era “passivo”, e que havia a necessidade de apostar no “diálogo”, na “resposta”, no “engajamento mais profundo” com as pessoas. Do ponto de vista das estratégias da Igreja, o interlocutor ganhava centralidade e paridade na produção de conteúdos em nível social. Nas plataformas sociodigitais, como Twitter e Instagram, reforça-se a possibilidade de que os usuários em geral – indivíduos, grupos ou instituições – possam produzir conteúdos também religiosos de forma pública e em rede, sob a forma de textos, imagens e vídeos, distribuindo-os instantaneamente em nível global. Nessas interações, as práticas religiosas que vão surgindo em rede trazem consigo lógicas e dinâmicas midiáticas.
Nesse contexto, a instituição Igreja busca fortalecer a sua presença oficial nos ambientes digitais, a começar pelo próprio pontífice, seja no Twitter, seja no Instagram. Mas essa ressignificação digital do catolicismo não é neutra, nem automática. Para a sua ocorrência, a Igreja precisa atualizar seus processos comunicacionais internos e externos para dar conta de uma nova complexidade sociossimbólica que emerge a partir dos desdobramentos das práticas comunicacionais digitais – como o fato de “traduzir” o papa em mensagens com menos de 140 caracteres (como no caso do Twitter) ou em fotos e vídeos de menos de 15 segundos (como agora no caso do Instagram).
Experimentações e reinvenções do catolicismo em rede
No caldo cultural da midiatização, o catolicismo em geral passa a se embeber de processos midiáticos, também na internet. Em suas presenças institucionais oficiais em plataformas sociodigitais são comunicadas as versões autorizadas da tradição e da doutrina católicas, mas tal comunicação é feita em modalidades inovadoras: como deve agir um papa “instagrammer”? Como a Igreja deve “instagramear” um pontífice romano? A “tradição” que começa hoje passa por essa grande inovação comunicacional, ainda sem horizontes claros.
Isto é, passa-se de um “magistério” pontifício veiculado em longos documentos marcados pelo texto escrito para um novo código estruturado em imagens, também em movimento, mediadas por dispositivos tecnodigitais. Essa mudança de código cultural religioso envolve ainda uma mudança nos modelos de mundo em torno do catolicismo, pois diz respeito a um modo próprio de pensar e agir comunicacionalmente, não apenas lógico-dedutivo, mas principalmente marcado por sensações, afetos, sensorialidades despertados pela imagem. Assim, na era digital, a mudança do texto para a imagem, em geral, envolve outras formas de significar o mundo.
Contudo, em sociedades cada vez mais em midiatização, por outro lado, o fluxo comunicacional de sentidos não se deixa deter por estruturas quaisquer. Ao se posicionar em uma arena pública como a internet e suas redes, a Igreja se coloca em uma encruzilhada ainda mais complexa de discursos sociais outros, que não lhe pertencem e lhe escapam (como os milhares de comentários em uma única foto postada pelo pontífice, sem contar todas as repostagens dos usuários no próprio Instagram ou em outras plataformas, envolvendo a construção de outros sentidos sobre a mesma foto, além de toda a cobertura midiática sobre o evento).
Como afirma o teólogo jesuíta Antonio Spadaro, diretor da revista La Civiltà Cattolica, ao analisar a entrada de Francisco no Instagram, as fotos tiradas pelos fiéis narram o papa “em toda a sua força pastoral e simbólica. […] O papa do povo é contado pelo povo que capta não só os gestos, mas também o contexto dos gestos a partir de dentro. E, desse modo, justamente, o papa já está no Instagram para além de toda oficialidade” (trad. nossa).
Assim, as interações sociais em redes comunicacionais digitais produzem novas modalidades de vínculo em torno do catolicismo, seja da Igreja para com a sociedade, seja da sociedade para com a Igreja, seja ainda da sociedade para com a própria sociedade – favoráveis, desfavoráveis, resistentes, alternativas, contrárias, subversivas etc. – a partir e também para além daquilo que é ofertado pela instituição eclesial. Em ambientes midiáticos sem qualquer vinculação com a fé católica – como o Twitter ou o Instagram –, a Igreja e os diversos usuários passam a encontrar formas de dizer o catolicismo publicamente.
Nesse processo, experimenta-se e inventa-se o catolicismo em rede. Trata-se de “outro” processo midiático, que não pode mais ser gerenciado apenas pelas corporações midiáticas, e trata-se de “outro” processo religioso, que não pode mais ser controlado apenas pelas instituições religiosas. Gera-se, assim, um “parassistema” de processos comunicacionais, organizados midiaticamente a partir de “outro” ponto da sociedade, que pode, assim, criticar, rever, contestar, debater o catolicismo sem a mediação nem a intermediação institucional religiosa ou midiática.
São esses desdobramentos – de médio e longo prazo – que demandarão um acompanhamento atento, para perceber não apenas como o catolicismo se “incultura” na nova realidade comunicacional, mas principalmente como esta leva o catolicismo a se repensar e a se modificar – e que consequências isso poderá ter para a vida de fé e a própria catolicidade.
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@Franciscus, o papa no Instagram. Uma breve análise comunicacional - Instituto Humanitas Unisinos - IHU