A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 2º Domingo do Tempo de Quaresma, ciclo C do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de Lucas 9,28-36.
“Jesus levou consigo Pedro, Tiago e João, e subiu à montanha para rezar” (Lc 9,28)
O tema do Ano Jubilar (“Peregrinos de esperança”) vem confirmar que somos todos peregrinos, pessoas num processo dinâmico de crescimento e amadurecimento. Cada um de nós deve marchar corajosamente seguindo seu próprio ritmo, escalar suas próprias montanhas, ter um horizonte inspirador.
Às vezes, parece-nos mais seguro continuar na velha e conhecida trilha ou ser parte do rebanho. A estrada menos trilhada parece ser a mais arriscada.
No entanto, somos todos peregrinos, cada um a caminho do próprio destino. A estrada não é igual para todos. Cada um de nós é dotado de um potencial imenso e único.
Vivemos uma itinerância que começa dentro de nós mesmos, nas estradas e trilhas da nossa espiritualidade; um percurso revelador, que deixa transparecer nossa verdadeira identidade. Todo caminho nos “trans-figu-ra”, porque desperta nossa essência, ativa nossos melhores recursos, faz emergir nossa nobreza interior.
Uma eterna tentação também habita o ser humano: é mais cômodo e seguro ficar sentado à beira do caminho. Mas, ficar sentado é estagnar, é não crescer, é perder o caminho e se acomodar. É aceitar ser menos. É conformar-se em ter a mediocridade como horizonte; é ter vida “des-figurada”.
Quem caminha quer ser mais. Seu horizonte é o seu sonho, o seu ideal, a sua esperança.
É corajoso e persistente. Faz amigos e companheiros de caminhada. Vida “trans-figurada”.
A transfiguração não é condição de um “iluminado”, mas a realidade de toda pessoa que é capaz de “sair de seu próprio amor, querer e interesse” (S. Inácio).
Transfigurar é descentrar-se e expandir-se na direção do outro.
O tempo litúrgico da Quaresma vem nos arrancar de nossa mediocridade e de nossa acomodação; ele nos sintoniza com Aquele que é o Peregrino por excelência. Por ser Peregrino, Jesus vive sempre “trans-figurado”.
Mas os evangelistas querem destacar um momento mais denso na vida transfigurada de Jesus. Por isso, o evangelho deste segundo domingo da Quaresma nos move a “subir” com Jesus ao Monte Tabor, para ali vislumbrar a verdadeira identidade d’Ele e também a nossa.
A experiência de Montanha, portanto, significa experiência de trans-figuração, ou seja, nos revela nosso ser essencial, nos faz ir além de nossa aparência para captar nossa riqueza interior, nosso eu original.
Como aconteceu a Pedro, Tiago e João, Jesus também nos tira do caminho e nos leva consigo para nos fazer testemunhas e partícipes de seu encontro com o Pai, deste fato central em sua vida: experimentar-se como Filho Amado.
Tal relato nos convida a estar atentos diante da presença próxima e amorosa de Deus, como filhos e filhas amados(as), e a experimentar o encontro com Ele que nos “transfigura”.
A experiência de intimidade com o Pai está narrada com todos os elementos das teofanias bíblicas: subida ao monte (lugar em que Deus habita), vestimentas resplandecentes e personagens centrais da história do povo que nos conectam com a Lei e os Profetas. Mas estes elementos da teofania não nos devem tirar a nossa atenção do foco. A importância e a grandiosidade da proximidade de Deus não está na “roupagem” brilhante, mas na profundidade da experiência de Jesus, que se vê e se sente a si mesmo profundamente amado como Filho. Ele é o Filho amado do Pai, de seu Abbá. É desta experiência que os três discípulos são testemunhas. É ali, ao descobrir Jesus como Filho amado de Deus, que eles se sentem chamados a escutá-lo; ali também brota uma atração irresistível de permanecer com Ele, na montanha.
Pedro, em nome dos outros, se sentiu atordoado e pensou que já tinha chegado à hora final da Lei, do mundo e da história. E, no meio do espanto, disse: “façamos três tendas!”. Tendas, para que fiquem acampados e assim possam conservar o brilho de Deus para sempre; tendas de campanha que logo se tornarão imensos mosteiros, catedrais, basílicas gloriosas, para descansar, para admirar.
Mas, a questão verdadeira foi e continua aberta. Há um “Pedro” que continua sonhando com “templos suntuosos” e “vestes resplandecentes”, enquanto Jesus continua dialogando em meio à nuvem, com Moisés e Elias, sobre a forma de subir a Jerusalém, realizando o grande “êxodo”, o caminho que conduz à nova humanidade.
O Monte da Transfiguração é “parada inspiradora”, lugar da escuta e do discernimento, ambiente privilegiado para iluminar a opção do caminho a ser realizado.
Nesse sentido, o evangelho da transfiguração nos ajuda a descobrir nossa capacidade de escuta. Quantas vezes entramos no mais profundo de nosso ser (Tabor) para que ressoe em nós a mesma voz que Jesus ouviu: “És meu filho amado; és minha filha amada”?
Como escuto? Que palavras fazem que meus ouvidos se ampliem, para ouvir melhor? A quem fecho meus ouvidos? Que ruídos me impedem escutar atentamente o que de verdade vale a pena?
Se não fazemos silêncio em nossa vida, como vamos poder escutar as provocativas palavras que o Abbá nos diz ao coração? Se não cuidamos da experiência de sermos filhos e filhas de Deus, de onde tiraremos a força para viver cada dia?
Esta experiência de interioridade nos trans-figura, nos transforma radicalmente. Fomos criados à imagem e semelhança do bom Deus; só no silêncio podemos escutar cada dia a Palavra que nos ajuda a viver uma contínua conversão, a crescer como filhos e como irmãos, especialmente das pessoas mais pobres.
Nossa vida não se resume a pura aparência ou exterioridade, mas podemos dizer que trazemos a trans-figuração em nosso DNA.
A oração é o caminho deste retorno para dentro de nosso ser. Temos necessidade de um mundo interior, de um gosto pela “solitude” (solidão habitada), de um tempo de silêncio, de uma experiência de deserto...
Há situações humanas ante as quais nos encontramos despojados de nossos papéis, nossos títulos, nossos instrumentos de trabalho, nossas justificações, nossos disfarces... e não tem outro remédio a não ser acudir às nossas reservas mais profundas para encontrar, não tanto uma explicação, mas uma força e um sentido.
Ao experienciar-nos enraizados(as) em Deus, tornamo-nos fonte de felicidade, de paz e de alegria.
Somos gerados(as) no Amor e para o Amor.
O Amor fundante de Deus perpassa todo o nosso ser e plasma um coração novo, um novo modo de ser, de perceber, de relacionar-nos e de sentir, infundindo-nos uma visão nova de nós mesmos, dos outros, da realidade e de Deus. A pessoa é transformada por dentro.
Isto nos torna herdeiros da “imagem e semelhança” de Deus, que se revelou a Moisés como “EU SOU”.
Todo ser humano, na sua identidade original, é uma faísca irrepetível do “EU SOU”, que reveste com Seu brilho o “eu sou” de cada pessoa.
Cada “faísca” traz, em si, a luz e o amor, o brilho e a vida da Trindade, que a torna única e vive uma relação pessoal no Mistério do Amor. A oração passa a ser o lugar da construção da própria identidade.
Por isso, S. Paulo fala que a “nossa vida está escondida com Cristo em Deus” (Col. 3,3).
Para meditar na oração:
Inspirados pela transfiguração de Jesus, somos movidos a fazer o mesmo caminho de subida à montanha, para saber quem Ele é, para abandonar nossas tendas ilusórias, para segui-lo, sabendo que o brilho divino de seu rosto está presente em todos os homens e mulheres, e em especial nos marginalizados e explorados.
A oração é o ambiente propício de revelação de nosso Tabor interno, lugar da intimidade com o Senhor, onde cessa todo palavreado crônico, toda imagem egóica, todo pensamento interesseiro... Aqui brota um “sentimento” oblativo, despojado, simples..., através do qual Deus comunica sua Vontade.
- Sua oração: palavreado mecânico, repetitivo, auto-centrado..., ou esvaziamento de si na gratuidade?