A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 18º Domingo do Tempo Comum, ciclo C do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de Lucas 12,13-21.
“...a vida não consiste na abundância de bens” (Lc 12,15).
Na sua itinerância, Jesus se depara com situações inesperadas e que não tem nada a ver com o sentido de sua missão. Mas, como bom pedagogo, Ele aproveita de todas elas para mover as pessoas na direção do verdadeiro sentido da existência.
Como sabemos, as heranças sempre suscitam problemas e conflitos. E alguém, que devia se sentir prejudicado, pede a mediação de Jesus para conseguir uma melhor partilha dos bens.
Na sua resposta, destaca-se a liberdade de Jesus frente a esse tipo de questões, não só porque corta a petição pela raiz, mas pela parábola que narra a seguir. Nem Ele se considera “árbitro” em questões de herança, nem está preso pela cobiça. O que escutamos d’Ele é o ensinamento de um mestre livre que quer mostrar o caminho da verdadeira “riqueza”.
Todos temos experiência da perene e escorregadia tentação – uma mentira perigosa que aparece como verdade - de solucionar as inseguranças e medos de nosso eu através dos impulsos à cobiça que se aninham em nosso coração. Para Jesus Cristo, a primeira e maior tentação do coração humano é a “cobiça de riqueza”. Uma vez presos à cobiça, caminhamos, irremediavelmente, para a solidão, para o auto centramento e desprezo dos outros.
Na parábola de hoje, o rico fazendeiro, em seu monólogo, revela o seu ideal de vida: acumular, ter vida longa, vida assegurada... Em seu horizonte de vida há uma terrível solidão: parece não ter esposa, filhos ou amigos. Não pensa nos camponeses que trabalham em suas terras. Seus verbos preferidos: acumular, armazenar e aumentar seu bem-estar material. Só se preocupa em “amassar riquezas para si”; todo o relato insiste no uso dos pronomes possessivos: minha colheita, meus celeiros, meus bens, minha vida... Ele não se dá conta de que vive fechado em si mesmo, prisioneiro de uma lógica que o desumaniza, esvaziando-o de toda dignidade.
Aumenta seus celeiros, mas não sabe ampliar o horizonte de sua vida.
Aumenta sua riqueza, mas diminui e empobrece sua vida. Acumula bens, mas não conhece a amizade, o amor generoso, a alegria e a solidariedade. Não sabe compartilhar, só monopolizar.
Que há de humano neste tipo de vida? A vida deste rico é um fracasso e uma insensatez, pois sua falsa segurança na posse dos bens vem abaixo. Quem vive centrado em si mesmo, perde a vida; quem vive para o eu, não é rico diante de Deus.
No percurso da vida humana surgem oportunidades em que a pessoa abre os olhos e se diz a si mesma, com enorme espanto: “na realidade, não fiz outra coisa que viver para mim mesmo”. Com as riquezas, com os saberes, com os próprios recursos ou o que for, ela se dá conta de que viveu “entesourando para si” e, de repente, essa forma de viver se revela como infecunda e sem sentido. É um momento privilegiado que pode ser muito duro e, ao mesmo tempo, muito fecundo, quando consegue sair dessa “situação viscosa” e centrar sua segurança em deixar-se conduzir pela mão providente de Deus (“ser rico para Deus). Sentirá a experiência de que foi tirada de sua “pasta egoica” pela mão de Deus e brotará em sua vida uma nova melodia de saída de si em direção à fraternidade, à partilha, ao encontro com o outro...
A eterna tentação da cobiça esconde uma necessidade, mais ou menos doentia, de segurança. Dado que o ser humano não pode renunciar à segurança, a questão é saber onde ele coloca sua segurança.
Ao longo de nossa existência, é provável que o “lugar” onde a situamos vai se modificando: os pais, os amigos, os grupos, a profissão, a saúde, o dinheiro, as posses, as crenças, o prestígio...
O problema não se enraíza no fato de sentir necessidade de segurança, mas na ignorância à hora de querer afirmá-la. Colocar a segurança em qualquer realidade passageira é garantir a decepção, a frustração e o sofrimento. Essa é a primeira ignorância, porque nos faz tomar como “seguro” o que é transitório.
No evangelho deste domingo, Jesus usa a palavra “néscio” para referir-se a quem atua assim. Tal termo vem do verbo latino “nescio”, que significa literalmente “não sei”. “Néscio” é quem confunde o ter com o ser. “Néscio” é aquele que não sabe o que faz, aquele que vive perdido e ofuscado na ignorância e, em último termo, na inconsciência. Isso é viver identificado com o “ego”, na falsa ilusão de que essa é sua verdadeira identidade.
Agimos mal, a partir da cobiça, dos apegos a coisas e bens, da segurança em acumular... porque desconhecemos nossa riqueza interior, nossos recursos mais nobres, nossos dons mais originais... Perdemos o caminho do coração e “ajuntamos tesouros aqui na terra, onde a traça e a ferrugem destroem...”
No fundo, o evangelho deste domingo nos situa diante do grande dilema do “sentido de nossa existência”: para que vivemos? Sobre que valores queremos construir nossa vida?...
O ser humano não é só um “animal racional”, ou um “animal afetivo”, mas é também um “animal de sentido”, o que é uma definição muito mais profunda.
Ele precisa de um “sentido” para viver. E precisa disso tanto ou mais que os bens materiais necessários para sua vida. Sem sentido, sua vida se torna simplesmente sofrível, insuportável.
Uma pessoa espiritualmente anêmica enche sua existência com coisas e posses, mas isso não faz mais que aumentar sua sensação de vazio existencial.
De fato, para viver uma existência verdadeiramente humana, é preciso cumulá-la de sentido, evitando que ela caia no vazio ou no absurdo.
O ser humano tem necessidade de uma causa pela qual viver, de canalizar todas as suas forças, seus desejos, energias, impulsos vitais e recursos internos e externos em direção a um horizonte de sentido no qual acredita intensamente (“ser rico para Deus”) E nele investir tudo o que é e possui, com intensa paixão.
Aqueles que são movidos por uma forte paixão, apostam que o ser humano tem potencial criador e foi feito para voar alto, para tentar, mil e uma vezes, alcançar cumes distantes.
Todo o percurso dos Evangelhos visa despertar em nós o “espírito de busca”, latente em todo ser humano. E a busca mais humanizadora é aquela do sentido, que brota com força do mais profundo de cada um, como um impulso vital que o move a construir uma existência inspirada e carregada de significado. O sentido aponta rumos e abre caminhos, alimenta a liberdade e ativa a criatividade.
“Viver a fundo” é não passar pela superfície da vida, acumulando bens e permanecendo refém de uma triste mediocridade. Há fomes existenciais, desejos mobilizadores e sonhos originais querendo encontrar canais amplos para jorrar. É preciso reaprender o caminho da própria interioridade para ativar a capacidade de amar, de vibrar, de buscar...
Deixemo-nos inspirar pelo Mestre da Galileia!
O que ainda existe para ser descoberto em sua vida?
Há espaço para o novo? Ou está tudo amarrado, costurado nas bordas, selado contra qualquer surpresa?
- Onde você investe os melhores recursos de sua vida? Você encontra motivações para viver com mais inspiração?