27 Outubro 2018
No final da década de 1960, a ditadura militar no Brasil prendeu e aprisionou muitos artistas e intelectuais por suas crenças políticas. Eu era um deles. Os militaristas estão de volta.
O artigo é de Caetano Veloso, compositor, cantor, escritor e ativista político, publicado por New York Times, 24-10-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
“O Brasil não é para iniciantes”, dizia Antonio Carlos Jobim. O artista, que escreveu “Garota de Ipanema”, foi um dos músicos mais importantes do Brasil.
Quando contei a um amigo norte-americano sobre a atual situação que passamos no Brasil, ele respondeu: "Nenhum país está livre disse". No fundo, lhe dou razão. Talvez nossa pátria não seja tão especial.
Neste momento, meu país está provando que é uma nação entre tantas outras. O Brasil está enfrentando uma ameaça da extrema direita, uma onda de conservadorismo populista. Nosso novo fenômeno político, Jair Bolsonaro, que deve vencer a eleição presidencial no domingo, é um ex-capitão do Exército que admira Donald Trump, mas parece mais com Rodrigo Duterte, das Filipinas. Bolsonaro defende a venda irrestrita de armas de fogo, propõe a presunção de autodefesa do policial que atira num “suspeito” e afirma que prefere um filho morto a um filho homossexual.
Se Bolsonaro vencer a eleição, os brasileiros podem esperar uma onda de medo e ódio. De fato, já vimos sangue. No dia 7 de outubro, um partidário de Bolsonaro esfaqueou meu amigo Moa do Katendê, um músico e mestre de capoeira, por causa de um desentendimento político no estado da Bahia. Sua morte deixou a cidade de Salvador em luto e indignação.
Recentemente, eu me peguei pensando nos anos 1980. Eu estava gravando discos e tocando para multidões sabendo das necessidades de meu país. Naquela época, nós brasileiros estávamos lutando por eleições diretas após 20 anos de ditadura militar. Se alguém tivesse me dito então que algum dia iríamos eleger para a presidência pessoas como Fernando Henrique Cardoso e depois Luiz Inácio Lula da Silva, teria soado como uma ilusão. Porém, de fato aconteceu. A eleição de Fernando Henrique em 1994 e, em seguida, a de Lula em 2002 teve um enorme peso simbólico. Eles mostraram que éramos uma democracia e mudaram nossa sociedade, ajudando milhões a escapar da pobreza. A sociedade brasileira ganhou mais autorrespeito.
Apesar de todo o progresso e da aparente maturidade do país, o Brasil, a quarta maior democracia do mundo, está longe de ser estável. Forças sombrias, de dentro e de fora, agora parecem estar nos conduzindo a uma onda de regresso.
Devemos ir além das manchetes e olhar por trás das cortinas, com retratam as sinceras reflexões de Frank Bruni sobre política, cultura, educação superior e outros assuntos a cada semana.
A vida política aqui está em declínio há algum tempo, começando com uma recessão econômica, depois uma série de protestos em 2013, o impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016 e um enorme escândalo de corrupção que colocou muitos políticos, incluindo Lula, na cadeia. Os partidos de Fernando Henrique Cardoso e de Lula ficaram gravemente desestabilizados, e a extrema direita encontrou uma oportunidade.
Muitos artistas, músicos, cineastas e pensadores se depararam com um ambiente onde ideólogos reacionários, que, através de livros, sites, artigos e notícias têm denegrido qualquer tentativa de superar a desigualdade, ligando políticas socialmente progressistas a uma espécie de pesadelo venezuelano, gerando um certo medo de que os direitos das minorias irão corroer os princípios religiosos e morais, ou simplesmente doutrinando as pessoas para brutalidades através do uso sistemático de linguagem depreciativa.
A ascensão de Bolsonaro como uma figura mítica cumpre as expectativas criadas por esse tipo de ataque intelectual. Não é uma troca de argumentos: aqueles que não acreditam na democracia estão agindo de maneira desleal.
Os principais veículos de notícias procuraram minimizar os perigos, chegando a trabalhar para Bolsonaro descrevendo a situação como um confronto entre dois extremos: o Partido dos Trabalhadores potencialmente nos levando a um regime autoritário comunista, enquanto Bolsonaro lutaria contra a corrupção e tornaria a economia voltada para uma abordagem amigável ao mercado.
Muitos na imprensa tradicional ignoram o fato de que Lula respeitou as regras democráticas e que Bolsonaro defendeu repetidamente a ditadura militar dos anos 1960 e 1970. De fato, em agosto de 2016, enquanto votava contra Dilma, Bolsonaro fez uma demonstração pública de dedicar sua ação a Carlos Alberto Brilhante Ustra, que administrou um dos centros de tortura nos anos 1970.
Como figura pública no Brasil, tenho o dever de tentar esclarecer esses fatos. Eu sou um homem velho agora, mas eu era jovem nos anos 1960 e 1970, e eu lembro. Então tenho que me pronunciar.
No final dos anos 1960, a junta militar prendeu muitos artistas e intelectuais por suas crenças políticas. Eu era um deles, junto com meu amigo e colega Gilberto Gil.
Gilberto e eu passamos uma semana numa cela nada agradável. Então, sem nenhuma explicação, fomos transferidos para outra prisão militar por dois meses. Depois disso, foram quatro meses de prisão domiciliar até, finalmente, o exílio, onde ficamos por dois anos e meio. Outros estudantes, escritores e jornalistas foram presos nas celas onde estávamos, mas nenhum foi torturado. Durante a noite, porém, podíamos ouvir os gritos das pessoas. Eram de presos políticos que os militares pensavam estar ligados a grupos de resistência armada ou jovens pobres que foram presos por roubos ou por venda de drogas. Esses sons nunca saíram da minha mente.
Alguns dizem que as declarações mais brutais de Bolsonaro são apenas da boca para fora. De fato, ele parece muito com muitos brasileiros comuns e está demonstrando abertamente a brutalidade superficial que muitos homens acham que precisam esconder. O número de mulheres que votam nele é, em cada pesquisa, muito menor do que o número de homens. Para governar o Brasil, ele terá que enfrentar o Congresso, a Suprema Corte e o fato de que as pesquisas mostram que a maioria dos brasileiros dizem que a democracia é o melhor sistema político de todos.
Eu citei acima a frase de Tom Jobim, “O Brasil não é para iniciantes”, para trazer um tom mais leve à minha visão desses tempos difíceis. O grande compositor estava sendo irônico, mas ele falou a verdade e sublinhou as peculiaridades de nosso país, um gigante no Hemisfério Sul, racialmente misturado, e o único que fala português nas Américas. Eu amo o Brasil e acredito que ele pode trazer novas tons para a civilização. Acredito que a maioria dos brasileiros também pensam da mesma forma.
Muitas pessoas aqui dizem que estão planejando viver no exterior se o capitão da reserva vencer. Eu nunca quis morar em outro país além do Brasil, e mantenho esse posicionamento. Fui forçado ao exílio uma vez, algo que não irá se repetir. Eu quero que minha música e minha presença sejam uma resistência permanente a qualquer característica antidemocrática que venha de um provável governo Bolsonaro.
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Tempos sombrios para o meu país. Artigo de Caetano Veloso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU