28 Setembro 2018
'Ser Republicano no Brasil Colônia', de Heloisa Starling, investiga os germes do desejo por liberdade e igualdade.
O comentário é de Elias Thomé Saliba, historiador, professor titular da USP e autor, entre outros, de 'Crocodilos, Satíricos e Humoristas Involuntários', publicado por O Estado de S. Paulo, 23-09-2018.
Certas palavras sofrem um processo de inflação e, como no universo monetário, quanto mais as usamos, mais perdem seu valor. A palavra República é uma delas e, para deflacioná-la dos valores corroídos, nada melhor que a densa e pitoresca narrativa histórica realizada por Heloísa Starling, no recém-lançado Ser Republicano no Brasil Colônia.
“Nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum”, diagnosticou Frei Vicente do Salvador em 1627, assinalando o momento no qual a palavra – não necessariamente a coisa – desembarcava nestas plagas. Inicialmente utilizada na cultura política portuguesa, a palavra servia apenas para designar a gestão administrativa exercida pelas câmaras municipais. Foi a partir do final do século 17 que “República” começou a ser associada a “sedição”, que designava claramente um “ajuntamento de colonos armados e reunidos com a intenção deliberada de perturbar a ordem pública” Mas os significados mais autênticos, associados ao campo semântico da justiça, do bem comum, da liberdade e do bom governo – hauridos da antiguidade clássica e das tradições do pensamento político renascentista – aparecerão nos momentos mais conflituosos da história brasileira.
Reunindo a versatilidade de historiadora a uma sólida formação em ciência política, a autora revisita eventos, trajetórias biográficas, textos de obras, panfletos e doutrinas vinculados à Guerra dos Mascates (1710), à Revolta de Vila Rica (1720), ao movimento Carioca da Sociedade Literária (1794), às Conjurações Mineira (1789) e Baiana (1798), estendendo a incrível sondagem até a Revolução Pernambucana de 1817.
O livro esquadrinha os poucos textos doutrinários – alguns pouco conhecidos, outros inéditos – que sobreviveram às inúmeras e truculentas devassas e serviram para inflamar a imaginação republicana dos conjurados. Como um livrinho tão pequeno quanto uma caderneta de capa dura (fácil de esconder em qualquer canto) que consistia num resumo, em francês, das leis das colônias dos Estados Unidos da América Setentrional. Ou as próprias Cartas Chilenas, nas quais o efeito de credibilidade aumentava na mesma proporção em que o anonimato apagava as marcas ficcionais. Elas pretendiam estabelecer a imagem de uma monarquia marcada por abusos de autoridade, mas também foram lidas (e, não raro, declamadas) como panfletos que não apenas denunciavam a infiltração da corrupção no interior do sistema administrativo colonial, mas também debochava do poder, utilizando o riso como arma de mobilização política.
Difícil imaginar qualquer tipo de esfera pública neste universo colonial luso-brasileiro, onde ainda vigoravam tanto a proibição de livros imposta pelo Santo Ofício quanto outros mecanismos de censura e controle da circulação de ideias. A historiadora revela outros circuitos de informação e difusão de manuscritos, pasquins clandestinos (alguns encontrados até em sacristias) mas, sobretudo, de uma cultura auditiva que se espalhava por surpreendentes locais de sociabilidade. As Boticas, por exemplo – como a de Agostinho ou a de Amarante – que foram vitais para a circulação de informações e doutrinas que fermentaram durante a Conjuração do RJ, em 1794. Como as Boticas tinham exclusividade na produção e comercialização de drogas medicinais, a cidade inteira tinha que passar por elas e as pessoas ainda dispunham de tempo para conversas e comentários, resumos orais traduzidos de jornais franceses, além de mexericos e fofocas já que, afinal, os clientes tinham que esperar pelo preparo dos remédios!
Longe daquele público constituído apenas pelo intercâmbio de argumentos racionais – como na clássica conceituação de Habermas – a esfera pública à brasileira funcionava por meio de um compartilhamento das mesmas curiosidades e pelo fato de as pessoas se interessarem pelas mesmas coisas. É certo que não tínhamos um público formado apenas por leitores, mas também por uma curiosa rede de auditores, que passavam ao largo de um conceito abstrato e normativo de República, pois sincronizaram as ideias de liberdade, soberania e bem comum com seus próprios assuntos cotidianos. Em muitos casos, a liberdade republicana significava que o propósito de ser livre só poderia existir em público, ou seja, significava o desejo de reconhecimento, de aparecer e de se tornar visível para todos. “Apareça, não se esconda”, foi a divisa da bandeira da Conjura Baiana.
O paradoxo da história brasileira é que exatamente quando a República foi proclamada, inaugurou-se um processo de esquecimento desta rica e autêntica cultura republicana brasileira, que já vinha dos séculos 17 e 18. Parece que não sobrou sequer aquela “estranha potência das palavras”, na definição poética de Cecilia Meireles. Foi quando a República virou apenas uma alternativa viável ao status monárquico, relegando toda a tradição do “ser republicano” na colônia à mera condição de uma história esquecida. E se engalanou, enfeitando o passado com eufemismos. Num deles, República virou apenas forma de governo, sendo o seu contrário não a tirania, mas apenas a monarquia. Até a Conjuração Mineira passou a ser vista como levante antimonárquico e elevada a patamar de momento inaugural da luta pela nacionalidade – coisa que nunca foi – e rebatizada como “Inconfidência” – para eliminar de vez do imaginário brasileiro a ideia de conjuração.
A República foi “um esboço que não encontrou forma”, conclui a historiadora. E começou a ser conjugada (acompanhada de vários outros verbos) sempre no tempo futuro. Por razões sabidas por todos, inclusive por uma cúmplice piscadela daquele iluminado Frei Vicente, talvez, ainda hoje, continuamos a conjugá-la no futuro.
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Historiadora procura as origens da República no período colonial - Instituto Humanitas Unisinos - IHU