24 Agosto 2018
'O Futuro da Fé' reúne conversas do pontífice com o sociólogo Dominique Wolton sobre variados temas.
A reportagem é de José Maria Mayrink, publicada por O Estado de S. Paulo, 23-08-2018.
O mais recente livro sobre os primeiros anos do pontificado de Francisco - O Futuro da Fé - lançado agora no Brasil, é uma transcrição de 12 longas entrevistas gravadas no Vaticano. O papa debateu com o sociólogo Dominique Wolton, diretor do Centre National de la Recherche Scientifique, problemas, desafios e metas da Igreja, em conversa descontraída e, ao mesmo tempo, séria e divertida.
De fevereiro de 2016 a fevereiro de 2017, os dois se reuniram na Casa Santa Marta, onde mora Francisco, para escrever essas páginas editadas em parceria com a Libreria Editrice Vaticana, após cuidadosa revisão. O papa leu e aprovou o manuscrito da obra, cujo título original é Pape François: Politique et Société - Rencontres avec Dominique Wolton. O conteúdo é basicamente do entrevistado, o sociólogo pergunta e comenta, como se fosse um jornalista.
Francisco responde com desenvoltura e espontaneidade, na medida do possível. Conforme explica, só se cala quando razões de força maior, questões sigilosas por exemplo, lhe recomendam silêncio. Sente-se à vontade na conversa, exceto quando os interlocutores são jornalistas. “Nunca senti angústia, mas, quando subo para o avião com os jornalistas, tenho a impressão de descer ao fosso dos leões.” O papa revela que começa rezando, depois se esforça para ser muito preciso.
Se não se aprofunda em algumas questões, talvez seja porque o entrevistador não tenha insistido. Não há referências maiores às relações do então superior provincial dos jesuítas e depois arcebispo de Buenos Aires com a ditadura militar argentina, mas Francisco denuncia o terror imposto pelo regime, ao falar de sua amiga Esther Balestrino de Careaga, uma paraguaia comunista e uma das fundadoras das Mães da Praça de Maio, após o sequestro de uma de suas filhas e de seu genro. “Devo muito a essa mulher, porque foi ela que me ensinou a pensar”, disse Jorge Mario Bergoglio, referindo-se aos anos 1970, quando era professor de Teologia e trabalhava em bairros de periferia. Esther foi presa em dezembro de 1977, torturada e assassinada. Seu corpo foi lançado no mar de um avião.
“Qual é seu maior defeito?”, perguntou Wolton. “Tenho certa tendência à facilidade e à preguiça”, respondeu Francisco, acrescentando que essa tendência faz parte de seu temperamento. Não seria algo bem latino-americano? “Sim, pode ser. Nunca pensei assim, mas pode ser. Mas não posso dizer isso, porque me arrancariam os olhos!” Seus compatriotas podem não gostar, mas Bergoglio garante não ter saudade da Argentina, pois se sente feliz em Roma. “Sou feliz, não por ser o papa, mas o Senhor me deu isso e rezo para não fazer besteiras...E faço!” Francisco diz que gosta de encontrar pessoas na Praça de São Pedro e que tem vontade de dar umas voltas por Roma e, se não faz isso, é para não criar problemas diplomáticos com o governo da Itália. O papa garante que não esperava ser eleito no conclave de 2013. Chegou com uma malinha e passagem de volta. “Nas casas de aposta de Londres, eu era o 42º ou 46º. Não havia a menor chance, eu nem pensava nisso, havia três ou quatro ‘grandes’ nomes...” Francisco acha graça na surpresa que causou, ao saudar com um familiar ‘boa noite’ a multidão que o aplaudia quando apareceu no balcão da Basílica de São Pedro. Ele não sabia o que dizer naquele momento. “Não pensei no que ia dizer. Vi as pessoas ali na frente... Fiquei um pouco temeroso. ‘Boa noite’ é o que dizemos quando cumprimentamos educadamente.”
O ex-arcebispo de Buenos Aires diverte-se com as piadas que correm a respeito dele. Por exemplo essa: prova da humildade do sucessor de Pedro é o fato de, apesar de ser argentino, ter-se imposto o nome de Francisco, em vez de se fazer chamar de Jesus II. O sociólogo Dominique Wolton embarca nas brincadeiras, mas o tom do diálogo é sempre sério, ao tratar de teologia, doutrina, pastoral e fé. Autor de mais de 30 livros, o francês se preparou cuidadosamente para entrevistar o papa. Leu seus escritos e discursos, pesquisou sua biografia.
“O ângulo escolhido, para esse livro, volta-se para uma das questões recorrentes da história da Igreja: qual é a natureza de seu engajamento social e político?”, adianta Wolton, ao falar do projeto de entrevistar Francisco. Foi tudo negociado, os encontros tiveram a chancela do Vaticano, sob orientação do entrevistado. Teologia da libertação, união civil de pessoas do mesmo sexo, guerra, pedofilia, aborto, ex-padres, mulheres diaconisas, nada foge da conversa. O papa condenou a pena de morte em 2016, dois anos antes de oficializar essa condenação em 2018. Sinaliza para outras mudanças, como, por exemplo, possíveis concessões na questão do celibato sacerdotal.
Diálogo, para Francisco, consiste na construção de pontes. Misericórdia é uma virtude que vai do coração às mãos, em gestos de amor e solidariedade. Política, no sentido querido por Deus, é prova de caridade, um serviço às pessoas, independentemente de crenças. O apoio ao ecumenismo e ao diálogo religioso, realidade nova e crescente desde o Concílio Vaticano II, tem-se traduzido por encontros com judeus, palestinos, muçulmanos, ortodoxos e protestantes. Ações concretas ilustram a orientação do papa. Dois exemplos: decidiu trocar o palácio apostólico por um apartamento modesto na Casa Santa Marta para ficar mais junto das pessoas e transformou a residência pontifícia de Castelgandolfo em museu, para lembrar que ali Pio XII escondeu perseguidos políticos na 2ª Guerra.
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Livro traz entrevistas do papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU