25 Agosto 2018
"Quando afundou, o Titanic transportava 2.208 pessoas, passageiros e tripulantes. Havia três padres católicos e cinco pastores protestantes entre eles. Todos morreram - uma lição sobre a tragédia do ecumenismo que, infelizmente, a Irlanda do Norte levou praticamente todo o resto do século XX para absorver", escreve John L. Allen Jr., jornalista, em artigo publicado por Crux, 15-08-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
Para qualquer um que já tenha visitado, Belfast é uma cidade cativante e encantadora. Infelizmente, seus principais motivos de fama são calamidades, acima de tudo "As Perturbações" - um período que vai do final dos anos 1960 até o Acordo da Sexta-Feira Santa em 1998.
No entanto, há também outro desastre para sempre ligado a Belfast - o Titanic. Foi aqui, outrora o “estaleiro do mundo”, onde o imenso navio de luxo foi projetado, construído e lançado ao mar antes de afundar em 15 de abril de 1912.
À primeira vista, a diferença entre esses dois capítulos duvidosos da história pode parecer ser que o primeiro tem claras implicações religiosas, enquanto que o último nada tem a ver com a religião.
O Titanic, afinal de contas, não foi vítima de terrorismo religioso ou conflitos sectários, mas da ganância avarenta da empresa que o gerou, a White Star Line, bem como da arrogância do presidente da companhia, Robert Irsay, e do capitão do navio, Edward Smith.
No entanto, após uma investigação mais aprofundada, há um claro sentido religioso para a história do Titanic, tanto em termos da natureza dolorosa da divisão protestante/católica daquele tempo, como também dos vislumbres de heroísmo que foram vistos quando o navio encontrou seu derradeiro destino.
Dependendo de como as coisas acontecerem, um dia pode até haver um santo do Titanic.
Ontem, eu, Inés San Martín e Claire Giangravé, do Crux, partimos para descobrir a dimensão religiosa da história, visitando o novo Museu “Titanic Belfast” nos antigos estaleiros da cidade, criado no próprio local onde o navio foi construído e lançado. (Pode-se até ficar de pé onde o arco da frente esteve uma vez e ter o que o nosso guia alegremente chamou de momento "Jack and Rose", se referindo ao famoso filme de 1997 de James Cameron.)
Quando afundou, o Titanic transportava 2.208 pessoas, passageiros e tripulantes. Havia três padres católicos e cinco pastores protestantes entre eles. Todos morreram - uma lição sobre a tragédia do ecumenismo que, infelizmente, a Irlanda do Norte levou praticamente todo o resto do século XX para absorver.
Os três padres eram:
Também se supôs que um quarto padre também deveria estar a bordo - o padre Francis (Frank) Browne, padre recém-nomeado que planejava ingressar na ordem dos jesuítas e exímio fotógrafo. Seu tio, o bispo Robert Browne, havia lhe dado uma passagem de dois dias no Titanic para navegar de Southampton, o primeiro porto de escala do navio, até Queenstown, o terceiro.
("Queenstown", a propósito, era o nome da cidade sob o domínio britânico da Irlanda. Depois de 1920, voltou a ser "Cobh".)
Padre Browne passou o tempo a bordo tirando fotos e conversando com outros passageiros. Ele encantou um casal americano que se ofereceu para pagar o resto de sua passagem para Nova York, e Browne pretendia aceitar. Seus planos foram interrompidos, no entanto, quando o navio atracou em Queenstown e o jovem padre recebeu um telegrama de seu tio.
A mensagem chegou ao ponto: "Saia desse navio agora".
Até hoje, não está claro se o bispo Browne simplesmente quis dizer que era hora do sobrinho começar a trabalhar, ou se tinha alguma ideia do que estava por vir. De qualquer forma, o padre Browne concordou, e foi assim que ele se tornou a última pessoa a tirar uma fotografia do navio enquanto ele navegava para o mar.
(Vale ressaltar que o bispo Browne mais tarde presidiria a missa fúnebre para as vítimas irlandesas do Titanic.)
Os outros sacerdotes pereceram, mas testemunhas contaram que eles ajudaram mulheres e crianças a entrarem em botes salva-vidas e recusaram ofertas de um espaço para si mesmos, depois oraram com as pessoas quando os botes salva-vidas acabaram. Seus corpos estão entre as centenas que nunca foram recuperados.
Byles, o padre inglês, estava a caminho de Nova York para presidir o casamento de seu irmão. Mais tarde, o irmão e sua esposa visitaram os sobreviventes do Titanic para entender como Byles havia passado suas últimas horas a bordo do navio.
Eles descobriram que quando ele rezou sua missa final, em 14 de abril, Byles havia pregado uma homilia sobre a nova vida na América que estava à frente para a maioria de sua congregação a bordo. Após a colisão, eles foram informados, que, por ser padre, foi oferecido a ele um assento em um barco salva-vidas duas vezes e ele recusou a ambas oportunidades.
Em vez disso, Byles seguiu para a seção de pilotagem, escoltando passageiros da terceira classe até o convés principal. A sobrevivente Bertha Morgan, que Byles ajudou a conseguir um assento, mais tarde lembrou de ouvi-lo rezando em voz alta quando seu bote salva-vidas se afastou.
No final, Byles rezou um Ato de Contrição diante de uma multidão de centenas de pessoas com a água do oceano a seus pés, oferecendo-lhes absolvição - um gesto notavelmente ecumênico para o início do século 20, tendo como pano de fundo uma fatalidade compartilhada.
Meses depois, William Byles e sua esposa viajaram para Roma e encontraram o papa Pio X durante uma audiência, que se referia ao padre afogado como um "mártir da Igreja".
Hoje, há uma vontade de ver Byles formalmente declarado como santo liderada pelo pároco de sua antiga paróquia na Inglaterra, o padre Graham Smith.
“Acredito que as ações do padre Byles nos mostram que atos heroicos de virtude realmente acontecem”, disse Smith em 2016 sobre o porquê decidiu abrir uma causa de canonização. "Ele é um exemplo de como a generosidade é possível mesmo em momentos de séria aflição".
Além dessas narrativas individuais, há também uma clara dimensão religiosa, tanto na forma como o Titanic começou, quanto como acabou.
No início do século 20 em Belfast, a divisão entre católicos e protestantes era onipresente. A linha da White Star na época tinha uma regra notoriamente rígida sobre a contratação de católicos, e, embora houvesse católicos que trabalhavam no estaleiro (eles não foram banidos completamente até a década de 1920), certamente não havia católicos na equipe de 22 homens que elaborou o grande navio ou nos níveis de gerenciamento de sua controladora.
As tensões religiosas que definiram a cidade também atingiram as equipes que construíram o Titanic. Os trabalhadores protestantes tinham o hábito de rabiscar “No Pope” (Sem Papa, em tradução livre) em letras grandes nos cascos dos navios em construção, e a lenda urbana em Belfast é até hoje, 106 anos depois, de que cada rebite batido no Titanic tinha “F… o Papa” estampado nele.
A divisão católica/protestante também ajudou a moldar quem viveu e morreu quando o Titanic afundou.
Em termos percentuais, o grupo a bordo com maior chance de sobrevivência ao naufrágio eram passageiros de primeira classe, a elite que pagou o equivalente a quase US$ 100.000 na moeda atual para reservar uma das “suítes de luxo”. Estes viajantes tendiam a ser britânicos e americanos, e quase exclusivamente protestantes.
Além da tripulação, as pessoas mais propensas a morrer eram os passageiros da terceira classe que tinham juntado as 6 libras que um bilhete custava, cerca de 500 dólares hoje, e que não estavam fazendo um cruzeiro por prazer, mas deixando suas casas para sempre buscando uma oportunidade no Novo Mundo.
Esses passageiros eram em sua maioria irlandeses e católicos, o que significa que a divisão religiosa a bordo do Titanic era literalmente uma questão de vida ou morte.
No entanto, em meio a essas lembranças do preconceito e de suas consequências desagradáveis, vale lembrar também que não foram apenas os padres católicos que se comportaram com virtude heroica. Cinco pastores protestantes também morreram, todos recusando ofertas para embarcar em botes salva-vidas, assim como seus colegas católicos.
Um desses, reverendo William Lahtinen, pastor luterano era finlandês imigrado nos Estados Unidos. Ele navegou de volta para a Finlândia após a morte de uma criança e estava tentando voltar para a América quando embarcou no Titanic em Southampton. Ele calmamente escolheu permanecer a bordo do navio, oferecendo oração e conforto para católicos e protestantes.
O pastor escocês John Harper teria nadado depois que o navio afundara, perguntando às pessoas se elas estavam salvas e se oferecendo para orar com elas. Quando ele fez essa pergunta a um rapaz, segundo a história, o jovem gritou "Não!", E então Harper tirou o colete salva-vidas e jogou-o para ele, dizendo: "Então você precisa disso mais do que eu".
(O jovem foi um dos poucos sobreviventes resgatados no mar; o corpo de Harper nunca foi encontrado.)
Em outras palavras, em termos religiosos, o Titanic aparece exatamente da mesma forma que é em todos os outros níveis - uma mistura berrante de heroísmo e covardia, abnegação e ganância, defeito e virtude. Talvez seja por isso que, como nosso guia nos lembrou, há uma “conexão profunda entre Belfast e este poderoso navio” - porque, se há algum lugar na Terra que possa entender que a religião pode trazer o melhor e o pior da humanidade, provavelmente é aqui.
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A dimensão religiosa por trás do Titanic - Instituto Humanitas Unisinos - IHU