15 Mai 2017
“Se a teoria da evolução for verdadeira, hoje, a transformação da espécie é acelerada como nas velhas comédias de Larry Semon que faziam rir pela velocidade inatural com que os personagens se moviam. No fim do deserto, poderia haver uma ‘Não Terra’, pelo menos para nós como somos; uma ‘Não Terra’ para aliens nascidos com sabe-se lá quantos DNAs e filhos de sabe-se lá quantas mães, robôs e ciborgues ainda mais chatos do que aqueles dos contos de ficção-científica.”
A opinião é do escritor italiano Claudio Magris, ex-senador da Itália, ex-professor das universidade de Turim e de Trieste, e prêmio Príncipe de Astúrias de Letras de 2004. O artigo foi publicado no jornal Corriere della Sera, 12-05-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O indivíduo que se obstina contra o cego poder da totalidade histórica e do seu devir, iludindo-se de ter recortado para si uma esfera autônoma própria, se engana, porque os fios que costurou no seu tecido são manobrados pelo mundo, grande titereiro. Assim diz um incandescente fragmento de Hegel, editado e traduzido por Remo Bodei em um livro que, como muitos de seus outros, é uma excepcional interpretação filosófico-literária do nosso presente vertiginosamente mutante. Sobretudo à luz daquela grandiosa época cultural alemã, daquela era de Goethe, Hegel, Kant, Hölderlin que foi a última cultura universal, aquela que ajuda como nenhuma outra a entender a nossa época que a está destruindo, mudando a natureza do próprio homem.
Hegel, que não gostava das extravagâncias românticas nem dos escritores que faziam do niilismo a substância e a própria forma da sua arte, como o grande Jean Paul, certamente ficaria horrorizado com a cultura atual e veria nela o ovo de uma civilização que está prestes a romper e a criar que sabe-se lá qual outra. Mas – contra toda tentação regressiva de ceder ao medo do desconhecido – ele sempre reiterou a proibição de olhar para trás, de se voltar para o passado como a mulher de Ló. A Terra Prometida está à frente, no espaço e no tempo, e nos encaminhamos para ela através do deserto. Verdade do êxodo, do exílio.
Mas, se a nostalgia que se volta para trás é quase sempre enganosa – até porque o passado foi quase sempre horrível, falsamente idealizado por almas piedosas e temerosas –, talvez hoje a banalidade filisteia, em vez disso, induz a olhar sempre para a frente, quebrando continuamente as tábuas da Lei e destruindo o presente; transformando o próprio homem em um alien que não se reconhece mais.
Se a teoria da evolução for verdadeira, hoje, a transformação da espécie é acelerada como nas velhas comédias de Larry Semon que faziam rir pela velocidade inatural com que os personagens se moviam. No fim do deserto, poderia haver uma “Não Terra”, pelo menos para nós como somos; uma “Não Terra” para aliens nascidos com sabe-se lá quantos DNAs e filhos de sabe-se lá quantas mães, robôs e ciborgues ainda mais chatos do que aqueles dos contos de ficção-científica. Há bem mais de um século, Nietzsche dizia que estava chegando um século de barbárie, e que as ciências se colocariam a seu serviço.
Essa marcha do progresso se assemelha muito aos desfiles obrigatórios e entusiásticos de novos minissoldados ou de outros jovens pioneiros em uniformes de várias cores atrás das faixas de um ou de outro regime totalitário. É preciso atravessar o deserto, e o presente é sempre um deserto. Mas se, pela estrada, encontra-se um oásis com uma boa sombra, tâmaras suculentas e uma fonte d’água, por que não parar e talvez, se quisermos, montar as tendas? Não é apenas o Streben, o incessante anseio faustiano à ação, que pode salvar a vida. Fausto ri pouco, quase nunca, e, sem riso – rir apesar de, exorta a teologia –, talvez não haja salvação.
É o humor que pode olhar a vida na cara, a terrível vida verdadeira, tão dificilmente distinguível das suas máscaras e dos seus papeis. A vida nua, como intitula-se um profundo e fascinante livro sobre Pirandello de Enrico Cerasi, um jovem estudante de filosofia ao qual se devem afiados ensaios sobre a grande teologia alemã, sobre o mito no cristianismo, sobre a linguagem religiosa e sobre o niilismo, ensaios que constituem uma contribuição essencial sobre a crise de sentido na cultura contemporânea. Uma crise que diz respeito concretamente a todos nós, à nossa cultura e, antes ainda, à nossa existência; Cerasi a investiga a fundo, reconhecendo toda a sua extensão, mas sem considerá-la como fatal e definitiva.
O sentido trágico de Pirandello é bem diferente de todo relativismo estereotipado e nasce do fracasso da tentativa de superar o niilismo. O humor é trágico, mas desprovido de pathos; a crise radical da identidade não dissolve o ego, fá-lo viver e sobreviver em outras formas e modalidades, como Mattia Pascal em Adriano Meis. O humor permite não se curvar a nenhum pretenso absoluto; nem mesmo – e, talvez, muito menos – ao absoluto identificado na História e na necessidade da sua marcha.
Se o progresso ordena Mattia Pascal a marchar, Adriano Meis talvez pode marcar visita, fazer-se exonerar do serviço militar da História universal, ficar um pouco atrás ou, pelo menos, à parte. O humor é um solvente de toda ordem do dia. Se a Terra Prometida espera o homem novo, radicalmente transformado pela tecnologia no corpo, no cérebro e no coração, o humor pode fazê-lo esperar pelo menos um pouco.
O escritor que – embora tendo criado a sua obra-prima, “O homem sem qualidades”, há quase um século – fala com maior lucidez do nosso presente e do nosso futuro, daquilo que está acontecendo exatamente agora e que se perfila no futuro é Musil. A sua obra é incompleta e ilimitada, assim como a vida que se transforma continuamente e, por isso, às vezes, é difícil, porque fala de uma transformação do homem, de nós, ainda em curso e em devir.
Talvez, nenhum outro escritor, ainda hoje, depois de tantos anos, está tão projetado ao futuro, até porque Musil conhecia bem aquelas ciências – matemática e física – que estavam e ainda estão descobrindo, talvez até criando aspectos da natureza e do próprio homem cada vez mais desconcertantes e dificilmente acessíveis para aqueles que, ao contrário dele, não conseguem se orientar neste mundo absolutamente novo.
Não se trata de demonizar pateticamente a técnica, atitude equivocada e inútil, mas de dominá-la, em vez de ser dominado por ela. A velocidade dos e-mails, que permite contatos quase imediatos, é uma grande ajuda não só prática, mas em muitos casos também afetivo. No entanto, receber todos os dias 50 e-mails em vez dos cinco ou dez realmente necessários (como aconteceria com as velhas cartas) obstrui, sufoca e desumaniza a vida. A tecnologia oferece possibilidades extraordinárias, contanto que se faça um uso sensato dela; ir de avião de Milão a Londres ou a Nova York é útil, mas tomar o avião para ir de Trieste a Veneza seria imbecil.
Como qualquer outro meio, do passado e do presente, o Facebook oferece muitas oportunidades, mas também muitas bobagens e violências, e se trata, como em todas as coisas, de saber distingui-las. Quem não sabe fazer isso e é vítima do mecanismo como tal é uma obtusa ovelha que segue o que as outras fazem e está destinada a ser tosada.
O essencial é não ser como o aprendiz de feiticeiro que acabou tão mal, ou seja, ser críticos e não cegamente servos. Pode acontecer que o homem se transforme quase em outra espécie, mas, enquanto ainda é Homo sapiens, ele faz muito bem em construir o motor da Ferrari, mas não pode colocá-lo em um Fusca e acreditar que pode dirigir sem se esfacelar.
Infelizmente, a técnica e a ciência, como os ditadores, chamam todos a reuniões oceânicas de multidões aquiescentes e não suportam críticas, negando, assim, a si mesmas, o espírito crítico que é ou deveria ser o sal da própria ciência.
Em um belíssimo ensaio que acompanha o filme Nessuno mi troverà, de Egidio Eronico, Roberto Finzi – retomando o tema de um livro igualmente original e forte dele de alguns anos atrás – mostra que, quando Majorana – grandíssimo físico – ousa se interrogar sobre o sentido daquilo que ele e os outros grandes cientistas, junto com ele, estão fazendo, e não apenas em torno da bomba atômica, mas da ciência em geral, a comunidade científica reage como a Igreja reagia antigamente em relação a Galileu: não admite dúvidas sobre a própria atividade e, não podendo negar o gênio de Majorana, tenta neutralizá-lo, considerando-o um gênio psiquicamente perturbado ou afetado por delírios religiosos, o que, para muitos de seus colegas, é a mesma coisa.
A razão, em vez disso, pede para poder criticar não só o milagre de São Januário, mas também Hiroshima; não só a Inquisição, mas também os propósitos de criar a possibilidade de tornar acessíveis a todos os nossos pensamentos, tornando-nos, assim, todos escravos.
Em “O homem sem qualidades”, Musil também fala do impulso de “descer do trem do tempo”, da “impressão desagradável de já ter ultrapassado a meta e de ter tomado o caminho errado”. Com todo o respeito à marcha do progresso, sente-se também o impulso ou a necessidade de descer do trem-bala do tempo, de “subir em um trem comum de uma ferrovia comum”. Talvez, pode-se acrescentar, também de parar para beber alguma coisa no bar da estação, se o vinho for bom, até mesmo correndo o risco de perder a conexão.
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A acelerada corrida rumo à "Não Terra". Artigo de Claudio Magris - Instituto Humanitas Unisinos - IHU