21 Dezembro 2012
Assim a diocese se torna polis (de todos), a comunidade do bem. Para Martini, um modelo de sociedade com "um ethos próprio vivido na cotidianidade" e também aberto a comunidades cada vez mais amplas.
A opinião é do escritor italiano Claudio Magris, ex-senador da Itália, ex-professor das universidade de Turim e de Trieste, e prêmio Príncipe de Astúrias de Letras de 2004. O artigo foi publicado no jornal Corriere della Sera, 16-12-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Gregório Magno dizia que não teria entendido as coisas essenciais da vida sem os seus irmãos, sem outras pessoas que, mesmo sem se darem conta, lhe haviam feito entrever aspectos e valores da existência que, de outra forma, talvez teriam lhe escapado. O "discernimento", escreve Martini referindo-se às palavras de João Paulo II no congresso de Palermo, certamente, é acima de tudo pessoal, mas também comunitário, resultado de um diálogo que não ofusca as diferenças individuais, mas as enriquece em uma integração recíproca.
Nas páginas do livro "Lasciateci sognare". Discorsi per la città di Carlo Maria Martini [Deixem-nos sonhar. Discursos para a cidade de Carlo Maria Martini], assim como em toda a obra e a vida de Carlo Maria Martini, emerge, dentre os tantos problemas que elas enfrentam, o nexo dramático, mas sólido, entre a solidão do indivíduo tão frequentemente angustiado diante da morte e do sofrimento, e o sentimento da sua pertença, embora muitas vezes ofuscada e difícil, a uma comunidade – do círculo dos laços pessoais à esfera do trabalho, da cidade ao país, à humanidade e, para Martini, àquela Igreja universal que, antes de ser uma instituição religiosa, é a coralidade do gênero humano em Deus, conhecido ou não conhecido.
Provavelmente foram também os estudos bíblicos, dos quais ele é mestre, que deram a Martini esse sentimento fortíssimo do ser humano, de um lado perdido na ansiedade, na injustiça e no sofrimento, e de outro inserido em um tecido universal, que lhe permite chamar alguém, mesmo das profundezas do medo.
As páginas de Martini conhecem o "buraco negro" da desorientação não menos do que conhecem os profetas do niilismo, mas não fazem disso um ídolo, um absoluto negativo em que intelectualmente também pode ser cômodo se refugiar. Há também nessas páginas um sentido muito forte da Cidade, ou seja, da Civitas, da civilização, do caminho comum dos seres humanos, capturado nas suas contradições muitas vezes trágicas e dificuldades, mas nunca perdido de vista. Martini, escreveu o padre Sorge, tem um "pensar grande".
A diocese se torna, então, uma polis, a cidade de todas as pessoas e do seu bem comum na dialética das diversas orientações, projetos e interesses; um modelo da sociedade civil que constrói "um ethos próprio (...) vivido na cotidianidade" e aberto a comunidades mais amplas. Não é por acaso, por exemplo, que nestas páginas se proclama estrenuamente a necessidade de uma Europa realmente unida, na consciência de que a autêntica união não é negação das diversidades, mas sim a sua salvaguarda.
Assim, as Igrejas locais são chamadas a um "cordial enraizamento" nas diversas culturas em que atuam, distinguindo-se claramente de toda organização política própria e ajudando-as a entender que a própria identidade nunca é um fechamento rancoroso e asfixiante. Evangelizar a Cidade, o País, a Europa, o mundo não significa em primeiro lugar converter, mas lançar – como na parábola do semeador – nos corações das pessoas e no mecanismo das instituições as sementes evangélicas desse consciente valor da vida compartilhada.
O crente – que segundo Martini sempre deve ouvir aquele não crente que também existe nele como em toda pessoa – é chamado a ser principalmente "pensando", sublinha Martini, citando Norberto Bobbio, por ele muito amado, ou seja, dar-se conta das dificuldades com que o amor cristão deve se confrontar, especialmente em uma época de desconcertantes mudanças, ora libertadoras, ora destrutivas.
Homem de fronteira, definiu-o Massimo Cacciari. Como todo verdadeiro homem de fronteira, Martini sabe entender quando as fronteiras devem ser ultrapassadas e quando devem ser defendidas, quando é preciso ser um passeur e quando é preciso ser um sentinela. Como os seus predecessores Ambrósio ou Carlos Borromeo, Martini é defensor civitatis e, nessa defesa do humano, ele reivindica o grande papel da cultura e, especialmente, daquela clássica, que não é refinamento antiquário, mas sim, juntamente com a Bíblia, fundamento da nossa civilização e inteligência do humano, em nada contraposta aos saberes científicos que mudam o mundo e a visão do mundo, mas capaz de olhá-los sem medo e sem idolatrias, e de lhes dar um sentido.
Essa cultura, baseada na imensa sabedoria grega e na insuperável arte de governo da antiga Roma, além da Bíblia, não se opõe a nenhum saber mais modesto mas autêntico de quem não teve a possibilidade de se dedicar a profundos estudos, mas sim àquela que os alemães chamam de Halbkultur (literalmente "meia cultura"), presunçosa e vulgar, que muitas vezes triunfa no teatrinho pseudointelectual. Os "não pensantes", para citar ainda a passagem de Bobbio tão cara a Martini, encontram-se muitas vezes entre aqueles que tagarelam sobre cultura.
Defensor civitatis, Martini sabe bem que a Cidade – ou seja, a sociedade, a realidade – também é um inferno escuro de violência, de solidão, de sofrimento sem nome. Ele conhece – sublinha Ferruccio Parazzoli – as "cidades terríveis" como os grandes escritores que caíram nos infernos contemporâneos. Ele olha na cara da negação, mesmo a mais dura, assim como Cristo a olhou no Getsêmani, pedindo por um instante para escapar da sua Paixão.
Essas páginas são ricas em temas, problemas, análises, desafios que investem contra a nossa vida. A realidade joga sobre o pastor, assim como sobre todas as pessoas, dificuldades, desencantos, catástrofes e derrotas; a sua resposta todas as vezes é firme e aberta, um "bom combate", para usar a expressão de São Paulo, pronto para aceitar o desafio e para aceitar o novo, mas irremovível na defesa dos valores essenciais e inegociáveis. A ética não é uma sondagem estatística dos costumes que prevalecem naquele momento.
O episcopado de Martini se cruza com as tempestades de uma ardente temporada histórica de transformações e convulsões, da corrupção ao terrorismo, do desconforto social muitas vezes dramático com relação às ondas de imigrantes e com as suas crenças e tradições diferentes, das repercussões da queda do comunismo ao terremoto da política italiana, do domínio de uma desenfreada e autodestrutiva corrida para um lucro irreal a uma crise econômica que empobreceu o país.
"Esse homem misterioso que falava com excessiva lentidão", escreveu Ferruccio de Bortoli, sabia "rasgar o véu da sofrida resignação". Na ação e no pensamento de Martini, a fé mais sólida se une a um pragmatismo aguerrido, soldando assim a ética da convicção à da responsabilidade. Admiráveis, apenas para citar alguns exemplos, são as páginas sobre a relação entre a reafirmação básica da família e a tutela de outras formas de convivência afetiva, ou aquelas, ao mesmo tempo firmes e abertas, sobre a queda das evidências éticas elementares.
As dificuldades, muitas vezes amargas para os cristãos, certamente não são diluídas, mas Martini não quer cristãos ansiosos ou embrutecidos. Assim como o indivíduo, a Igreja também deve aceitar os desafios do tempo, justamente porque o cristianismo é a fé que mais se inclinou, inclinando-se Deus também, na historicidade e na precariedade do tempo.
Isso levou Martini a criticar abertamente, com dureza, muitas carências, falhas, infidelidades da Igreja e a se pôr às vezes contra a Cúria vaticana sobre alguns temas essenciais: a liberdade de crer e de escolher segundo os ditames da própria consciência, o risco de viver, o diálogo ecumênico, fundamental para aqueles que, como ele, se alimentaram por toda a vida do pensamento e da cultura judaica, pastor de Milão, mas também cidadão de Jerusalém.
Em Martini, vive o espírito do Concílio, apreendido também na grande escola inovadora da Igreja alemã, que, com Augustin Bea, Joseph Ratzinger e outros, foi, há mais de meio século, portadora das instâncias mais avançadas e audazes do próprio Concílio, colocando-se às vezes em contraste com a Cúria romana de então.
O rigor filológico do grande estudioso, que não transigiu sobre uma vírgula do texto, torna-se rigor moral diante de toda violação. O método indutivo da pesquisa, que remonta à verdade partindo de baixo, é por si só, observou Marco Garzonio, livre investigação, oposta ao método dedutivo que faz dogmaticamente descer ao alto a verdade sobre o real.
Martini não se deixou desconcertar, como talvez aconteceu com Ratzinger, por alguns desvios desorientados e insensatos da assembleia e pulsionais que acompanharam mal o espírito inovador daqueles anos, intimidando às vezes alguns dos seus próprios protagonistas. Sem desgarrar por um milímetro dos princípios da fé e da moral cristã, ele não permitiu que nenhuma confusa desordem o retrocedesse da sua firme e pacata abertura.
Ele conheceu, antes e depois da sua morte, muitas lívidas hostilidades por parte da ala conservadora da Igreja, talvez enfatizadas também pela vulgata midiática, mesmo que ele tenha se definido como "tradicionalista". De fato, a autêntica tradição, como escrevia Rodolfo Quadrelli, forte ensaísta e poeta católico adverso a todo progressismo de estilo, é a continuidade da Igreja que cresce criativamente fiel a si mesma, sem se desnaturalizar e se enrijecer.
Negam essa tradição criativa tanto aqueles que querem encerrar a Igreja no passado, como se depois estivesse morta e esclerosada, quanto aqueles que querem fazer com que ela comece a partir dos fermentos do Concílio, como se antes ela estivesse em catalepsia. Martini sabia que o Concílio havia impresso na Igreja um novo e grande impulso, uma força peculiar para falar ao mundo.
Martini era mestre de laicidade, ou seja, daquela capacidade de distinguir entre o que se pode crer e o que se pode demonstrar; laicidade hoje ameaçada pelo fundamentalismo clerical e pelo fundamentalismo laicista igualmente intolerante. A partir desse espírito autenticamente laico, nasceu uma das mais fortes preocupações expressas por Martini: a preocupação com a sobrevivência do ethos político, cada vez mais anulado pela política-espetáculo, pela indecência descarada, pela exibida negação das mais elementares virtudes civis.
Hoje, está no poder uma classe social coloidal não mais definível socialmente, senão com aquele termo com o qual Marx designava o subproletariado oprimido e explorado a ponto de perder a consciência de si mesmo, proletariado intelectual, moral e politicamente "mendicante" (Lumpenproletariat) palavra que hoje se adapta muito bem para definir uma classe média geral gelatinosa que não pode ser classificada nem como baixa, nem como média, nem como alta, uma vaga e indiferente "gente".
A colaboração de Martini ao jornal Corriere, nos últimos anos e naqueles distantes da época mais difícil do Corriere – aqueles "cacos luminosos de cultura e de graça dos seus artigos", como lhes chamava o diretor de então, Alberto Cavallari –, foi uma prova desse compromisso civil.
Evangelizar a nossa sociedade, no sentido próprio e no sentido lato, é uma tarefa tão árdua que parece um sonho até para Martini, embora, como ele especifique, certamente não entendido como fuga para a fantasia. "Deixem-nos sonhar", diz o título deste livro, título inadequado para o livro em si mesmo, que não é a invocação de uma alma bela a ser deixada em paz nas suas nobres aspirações distantes da realidade, mas é um bom combate de olhos olhos bem abertos para a realidade, para mudá-la, e não apenas para sonhar em mudá-la, para evitar que adormeçamos diante do mal.
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Martini, um sonho de olhos bem abertos. Artigo de Claudio Magris - Instituto Humanitas Unisinos - IHU