09 Dezembro 2013
No período de Natal, nunca tinha sido tão pouco simpático o clima no Vaticano – principalmente para aqueles senhores que até agora detinham o poder e que acreditavam que os faustos da Basílica de São Pedro lhes serviam simplesmente como pano de fundo. Agora, no primeiro sábado do Advento, o papa sorridente pregou a "misericórdia". E, para mostrar que para os cristãos só importa o serviço ao próximo, vestiu-se como um pároco do interior: em vez dos habituais paramentos usados no Advento, bordados a ouro, Francisco tinha apenas um simples pluvial roxo, a cor prevista pelo calendário litúrgico para o mês de dezembro. E a cruz processional era de madeira.
A reportagem é de Evelyn Finger, Christiane Florin e Patrick Schwarz, com a colaboração de Marco Ansaldo e Wolfgang Thielmann, publicada no jornal alemão Die Zeit, 05-12-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
De madeira! Os fãs do glamour na Cúria, aquele gigantesco aparato administrativo do Vaticano, ficaram horrorizados. Onde vamos acabar, sussurravam alguns, se renunciarmos às insígnias do poder? Esses murmuradores, no entanto, já estão um pouco acostumados com o Papa Francisco: cruzes de ferro como se não houvesse um precioso tesouro da Igreja. A maleta preta velha e engordurada, como se o sucessor de Pedro fosse um simples empregado. Os velhos sapatos com cadarços, como se o representante de Deus fosse simplesmente um homem. Há apenas um ano – nas vésperas do Advento, com o antecessor Bento XVI –, a Basílica de São Pedro cintilava com diamantes, e o antigo papa estava ornado como uma... sim, como uma árvore de Natal.
Há nove meses, é o argentino de 76 anos Jorge Mario Bergoglio o líder espiritual dos católicos. Ele é o primeiro papa – isso não acontecia há muito tempo – que consegue irritar o mundo. O mundo pequeno, dentro dos muros do Vaticano. E o mundo grande do lado de fora.
Ele não só conservou os seus sapatos velhos. Ele também concedeu entrevistas que são entendidas pelos leigos. Ele foi para Lampedusa para se encontrar com os refugiados sobreviventes das travessias nos botes, entrando em contato com uma das muitas realidades urgente do nosso tempo. Ele contratou especialistas externos para lançar luz na escuridão das finanças vaticanas. Ele enviou questionários para todo o mundo para saber o que os católicos pensam sobre amor, sexo e coabitação.
E receitou um remédio a milhares de pessoas na Praça de São Pedro. Com a sua figura branca no alto da janela do Palácio Apostólico, ele gritou no Ângelus à multidão: "Agora eu gostaria de lhes aconselhar um remédio!". Depois, levantou uma caixa de medicamento, com a palavra "Misericordina". (Não era uma nova marca de remédios, mas sim a antiga palavra latina para "misericórdia".) Embaixo, na praça, irmãs distribuíram 25 mil dessas caixas, dentro das quais havia um pequeno terço. A multidão riu e aplaudiu. Um papa com senso de humor. Ou apenas marketing?
Contra essa última insinuação, falam as 256 páginas escritas pelo papa, uma carta apostólica, um novo "manifesto vaticano": a Evangelii Gaudium, "a alegria do evangelho". Não foi a competente Congregação para a Doutrina da Fé que escreveu esse grande volume, mas sim o papa pessoalmente. Em vez de desaparecer, no mês de agosto, para Castel Gandolfo, isto é, a residência de verão cercada por bosques nas colinas acima do Lago Albano, ele permaneceu nos 35 graus da quente Roma para escrever, contra a certeza de que uma Igreja com 2 mil anos de idade não pode mudar.
Renovação inadiável
Agora, não só os fiéis leem incrédulos que o papa está mais perto de "uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas ruas" em vez de "uma Igreja doente pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças". A sua Igreja, diz Francisco, ficou sem alegria e amor – é hora de uma "renovação inadiável". Do mandamento fundamental do amor ao próximo, o papa tira máximas revolucionárias no campo social: não à idolatria do dinheiro! Não à desigualdade social! Não à preguiça do coração! Acima de tudo, porém, ele declara guerra à dureza de coração, começando pela sua própria casa.
Aqui alguns cardeaisl começam a murmurar: este papa quer arruinar a Igreja! Ele repreende mais os pecados do clero do que os do mundo lá fora! Adorna a Igreja com galhos e ramos secos. Quer fortalecê-la com a fraqueza. No Vaticano, o Kremlin católico, os nomes "Francisco" e "Gorbachev" são pronunciados juntos cada vez mais frequentemente.
A revolução começa com o café da manhã na Casa Santa Marta, onde o papa mora. Na sala comum, ele não se senta sempre na mesma mesa. Ele vai buscar a sua refeição pessoalmente e se senta ao lado dos outros. Apenas para trabalhar ele sobe ao Palácio Apostólico, na Secretaria de Estado, onde estão grandes afrescos e antigos mapas-múndi que dão a impressão de se estar muito no alto. Dominadores do orbe terráqueo.
Mas ele se interessa por aqueles que estão embaixo.
Muitos católicos, cujo cotidiano tinha pouco a ver com o que um velho diz em Roma, mal podem acreditar: finalmente um papa quer saber algo das suas vidas. Finalmente, alguém com autoridade diz que excluir, denunciar e incutir temor não são virtudes cristãs.
Finalmente desmorona o sistema das punições para aqueles que pensam diferente e dos elogios daqueles que seguem rigorosamente as prescrições. Nenhuma proibição de ensino, de pensamento, de expressão. Muito ainda está só no papel, não na prática. Mas, depois de anos de nada, já basta a frase de que muitos padres nas igrejas tem uma "cara de funeral" para explodir a euforia nas pessoas. Justamente em nome da Boa Nova, diz ele, muitas pessoas se detêm no descontentamento, no lamento, na crítica ou no remorso. Justamente o homem que está no alto prescreve agora um riso libertador e anárquico.
Destruidor de tradições
O sorriso nos olhos de Francisco é o mais difícil para Cesare Bella. Ele é um artista do Studio Mosaico, um laboratório muito antigo ao lado da Casa Santa Marta. Bella e Francisco estão próximos, mas a sua relação ainda não é clara: enquanto o papa tende para o futuro, Bella tem uma tradição a defender. O seu trabalho consiste em fazer um mosaico que represente o papa, como é o costume há 500 anos. O quadro está quase pronto. E Bella se pergunta: ele vai ser do agrado desse destruidor de tradições?
Oito pessoas trabalham no Studio Mosaico. Quem trabalhava lá antes deles decorou as paredes da Basílica de São Pedro, todos os anjos e os gigantescos mosaicos com os santos, até a cúpula. Uma grande transfiguração de minúsculas pedras. No laboratório, sente-se o cheiro do pó das antigas peças conservadas em intermináveis fileiras de gavetas. Todas as vezes que um novo papa é eleito, coloca-se sobre o cavalete uma pesada laje de pedra redonda de 136 centímetros de diâmetro.
Em primeiro lugar, um dos artistas aplica o fundo dourado. Depois, se dedica ao hábito papal com a capa vermelha. No fim, um dos mestres começa a fazer o seu rosto. Para a pele de Francisco, Bella usou peças de mosaico opacas, de 100 anos de idade e com quase 1.000 nuances. E só para as pupilas utilizou 70 cores. E, para fazer isso, ele tinha apenas uma foto um pouco desfocada como modelo. Porque este papa – que não quer nenhum culto à personalidade e que precisamente por isso é apreciado – se deixa fotografar apenas a contragosto. Ele concedeu ao fotógrafo do Vaticano apenas dois encontros. E, a cada vez, depois de alguns minutos, dizia: "Agora chega".
No Studio Mosaico, dizem que lhes agrada o seu novo vizinho. Pelo bom humor que ele difunde. Porque cumprimenta os guardas suíços apertando as suas mãos, conversando com os policiais e porque não deixa que lhe tragam o café, mas ele mesmo o busca sozinho na máquina.
Esta semana, o papa vai ver o seu retrato, antes que ele seja colocado na Basílica de São Paulo, no fim da longa série dos seus 265 antecessores. Um friso de cabeças de substitutos de Deus! Uma galeria que vai do passado até o presente.
O que realmente interessa a esse papa de olhos sorridentes?
Essa é a pergunta do cardeal Gerhard Ludwig Müller, e ele não sorri pensando nisso. O bávaro vem da diocese de Regensburg, é o segundo mais poderoso da Igreja Católica – e o mais tenaz opositor de Francisco.
Perto das 12 horas de um dia da semana passada, o carro do papa passou pela praça da Cidade Leonina, ao lado da colunata da Basílica de São Pedro, na frente da residência privada de Müller. Pouco depois, Francisco estava sentado à mesa de jantar da casa de Müller, as freiras Huberta e Helgardis serviram bife à milanesa e batatas cozidas. No momento do café, o argentino Jorge Mario Bergoglio disse em bávaro perfeito: "I ko nimma".
Em honra ao seu anfitrião, ele tinha aprendido com Huberta e Helgardis algumas palavras de bávaro. Esse homem, ao que parece, quer contentar até mesmo o seu mais obstinado opositor. "Amai os vossos inimigos"...
Francisco e Müller. O papa e o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Os dois não se distinguem apenas pelo comprimento do seu título. Raramente o mais alto guardião de antigas doutrinas da fé, isto é, Müller, esteve em tão más relações com o anunciador de tal fé. Do ponto de vista do alemão, um latino-americano, bem-humorado e despreocupadamente, está demolindo um antiquíssimo edifício. Quanta desordem e insegurança Francisco trouxe ao mundo ordenado da dogmática romano-católica! Ele não mostra nenhuma deferência e nem mesmo um pouco de respeito pelo Santo Ofício, a base do poder de Müller, antigamente a autoridade da Inquisição, a qual, ainda com o Papa João Paulo II, tiveram que comparecer os "desviacionistas" de todas as partes do mundo para se defenderem, em uma luta sem esperanças, para que não lhes fosse retirada a permissão para ensinar.
Francisco é contra? Recentemente, ele aconselhou os visitantes que vinham da sua pátria para que não se preocupassem muito caso recebessem uma advertência de Roma. Leiam, ponham de lado e continuem no seu caminho, foi o seu conselho espirituoso.
Se Francisco quer uma Igreja pobre, Müller espera uma Igreja pomposa. Onde Francisco vê aliados, por exemplo entre os protestantes, Müller vê rivais ou renegados. Quando Francisco prega compreensão, diante dos divorciados em segunda união ou dos homossexuais, Müller insiste com as proibições. E enquanto Francisco prescreveu ao pródigo bispo alemão Tebartz-van Elst um período de suspensão, Müller troveja contra a mídia que massacram um honesto dignitário.
Mas o chefe e o ideólogo-chefe não estão tão distantes um do outro quanto no seu modo de olhar para os milhões e milhões de católicos em todo o mundo. Para Müller, a Igreja governa sobre o povo de Deus, diz-lhe o que é bom e o que é mau, o que deve ser feito e o que se deve evitar. Quão diferentemente se posiciona o papa! Para ele, a Igreja começa de baixo, e no alto deve dar uma boa prova de si mesma – antes o povo, depois os príncipes. Não o contrário.
A insurgência de Müller
Continuamente, Müller se insurgiu, empregou o resto de autoridade que lhe restava como prefeito tardiamente chamado, nomeado pelo papa bávaro no seu declínio. Quantas coisas Müller tentou a partir do conclave: antes o abraço, depois a arrogância, no fim a intriga. Assim, ele reconheceu a Francisco, de cima a baixo, o seu talento "pastoral" – o que significa algo como: o novo homem é um bom pastor, mas, contra os lobos deste mundo, deixem que a tarefa cabe a mim.
Mas o homem que vem de Buenos Aires, mais corajoso do que se esperava, não quer que o mundo seja envenenado por alguém que fareja ao redor apenas por inimigos. E assim continuam se chocando, de um lado o "papa do tango e do cinema", e de outro o guardião da fé da equipe de Ratzinger, um osso duro de aperto de mão mole.
O protegido de Ratzinger insiste quase desesperadamente na observância das regras. Se Francisco apenas deixa escapar que a misericórdia pelos divorciados em segunda união é um desejo seu, Müller responde disparando uma intervenção sua no L'Osservatore Romano, o Pravda do Vaticano: está absolutamente excluído que os divorciados em segunda união jamais possam receber a comunhão. Roma locuta, causa finita: uma vez que Roma falou, o caso está encerrado.
Em anos anteriores, tal anátema teria cortado qualquer protesto. Agora, ao invés, o protesto vem de cima. E alguns cardeais, que se situam logo abaixo daquele que está acima, põem em dúvida o poder de Müller. O primeiro a reagir foi o cardeal Reinhard Marx, de Munique. Nenhuma misericórdia pelos divorciados em segunda união? "O prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé não pode pôr fim ao debate". Pouco depois, alguns luminares um pouco menores ousaram se pronunciar, como o bispo de Trier, com declarações semelhantes.
Nessa perestroika da Igreja, não está totalmente claro quem é apenas um eloquente vira-casacas e quem agora diz livremente aquilo de que estava convencido há anos. O que está claro é que assim andam as coisas quando um reino está indo à ruína.
O ''governo suplementar'' de Francisco
Enquanto o inquisidor Müller ainda luta pela sua influência sobre o curso da Igreja, Francisco criou há muito tempo um "governo suplementar" ou, melhor, um "governíssimo". Ele é formado por diversas comissões recém-formadas.
Regularmente, ele reúne oito cardeais provenientes todos os continentes, um G8 católico, apenas um pouco menos internacional do que a cúpula de chefes de governo de todo o mundo. Nesta semana, justamente, ocorre a segunda reunião. O cardeal Marx, único alemão do grupo, teve que atualizar em tempo recorde o seu rudimentar italiano. Não há nenhum tradutor simultâneo e nem mesmo um secretário ao redor da mesa com os cardeais.Os assuntos abordados são explosivos demais.
O cenário tem a aparência de uma conspiração, só que o chefe também faz parte. Em algum lugar no Vaticano, há uma mesa, ao redor da qual se sentam os hóspedes e o anfitrião da casa. Nove cabeças parece que não são suficientes para governar um bilhão de católicos. O que era impensável no quartel general do governo vaticano com todos os seus dicastérios, eminências, excelências, prelados com títulos honoríficos e protonotários, aqui ocorre facilmente.
A constituição absolutista do Estado da Igreja – com o papa como poder legislativo, executivo e judiciário reunidos em uma pessoa só – sempre foi considerada a encarnação da negação do progresso: um novo começo no absolutismo pode ser extremamente corroborante e simples.
O arcebispo Müller – é quase desnecessário dizer – não faz parte do grupo. Enquanto o papa planeja a sua mudança, só resta a Müller o passeio ao longo da Via della Conciliazione até o Hotel Columbus. Essa rua é uma pista aberta na cidade, que leva da Praça de São Pedro até o Tibre, por 500 metros, uma imagem que ficou famosa pelas câmeras de televisão. Caminhando, Müller tenta convencer os jornalistas que confiam na sua própria visão das coisas e na sua obstinação.
Em nenhum outro lugar do mundo é possível encontrar amigos e inimigos em luta pelo poder em uma organização mundial reunidos em poucos metros quadrados. É isso que torna tudo tão apaixonante para os espectadores. E tão perigoso para os combatentes.
Gänswein, um servidor dividido entre dois senhores
As poltronas do Palácio Apostólico ainda têm encostos e braços dourados, e as paredes exibem um damasco vermelho. Mas o homem que recebe aqui fala de uma vida que o divide em dois. Georg Gänswein leva uma vida que era inimaginável até a retirada do Papa Bento XVI, e que hoje lhe parece dilacerante. Durante o dia, ele serve o novo papa; à noite, o antigo; e são dois senhores tão diferentes que um servidor nunca conseguiria imaginar.
Para ele, a retirada de Bento XVI foi como uma amputação, diz. E também em outras descrições escorre sangue, como quando Georg Gänswein descreve como a sua vida mudou desde que o seu chefe anterior se aposentou.
Durante oito anos, Georg Gänswein foi o monsenhor mais famoso do Palácio Apostólico. Como secretário do papa, ele regulava pessoalmente o acesso das pessoas a Bento XVI e aos seus negócios. Admiradores e escarnecedores o chamavam de "o George Clooney do Vaticano". A combinação de traços masculinos e olhar malicioso lhe valeu uma capa da edição italiana da revista Vanity Fair.
Acima de tudo, porém, Gänswein era o intendente da comitiva de Bento XVI. Joseph Ratzinger, com a ajuda de Gänswein, tinha que levar o papado a um novo florescimento intelectual e estético – justamente o oposto do igualitarismo e do relativismo. De 2005 a 2013, Gänswein deu tudo – e recebeu muito: "Ich habe acht Jahre Blut gelassen und auch Blut geleckt, manchmal".
In vita et in morte: Georg Gänswein jurou fidelidade a Ratzinger na vida e na morte. Agora diz: "Eu tenho a impressão de viver em dois mundos. Tenho que ser sincero comigo mesmo: é realmente doloroso me adaptar ao novo papel".
O novo papel: trata-se também de questões problemáticas. Os opositores de Georg Gänswein dizem que o próprio secretário enfraqueceu ao máximo Bento XVI, indo além das suas competências, e decidiu "segundo o pensamento do papa", sem esperar a sua aprovação formal. Que absurdo: as coisas já estavam muito caóticas no Vaticano quando ele ainda estava sendo conduzido com firmeza. Protecionismo, intrigas, lutas de poder culminaram em tal desordem a ponto de privar Bento XVI de suas últimas forças. E, com a sua retirada, ele assinalou: até mesmo um papa pode capitular. Talvez desse modo ele abriu a porta para a mudança.
Pouco tempo antes de se retirar, Bento XVI promoveu o seu monsenhor Georg Gänswein a arcebispo e prefeito da Casa Pontifícia. Francisco pediu-lhe para continuar na sua função relativa ao cerimonial, o que lhe dá a possibilidade de aparecer ao lado do papa. "Se essa é a sua vontade, eu aceito em obediência", respondeu Georg Gänswein.
Agora, ele ocupa duas funções, mas não tem mais uma situação estável. Nenhum título pode iludi-lo, nem consolá-lo pela perda da posição no centro do reino mundial romano-católico. A sua vida "não está mais constantemente em sintonia com a batida do seu coração".
"Aquele novo" agora à frente da casa faz principalmente muitas coisas novas. Gänswein não pode gostar disso. Talvez ainda mais do que o seu chefe, o secretário era o sumo sacerdote da tradição, via nela não uma imposição formal, mas sim uma condensação de sabedoria eclesial. O fato de Francisco não querer deixar a todo o custo o hotel pelo palácio apostólico, porque quer viver "entre as pessoas" e porque o escuro corredor que leva aos quartos pontifícios lhe gera melancolia, tudo isso irritou muito Gänswein.
Ele não viu só uma ruptura da tradição, mas também uma afronta ao antecessor, a todos os antecessores. Bento XVI não era um homem modesto? Ele não reivindicou o apartamento papal por egoísmo, mas só porque ele expressa a posição do Santo Padre na Igreja. Mas agora a polêmica está resolvida, diz Georg Gänswein.
Às vezes, o novo papa e o ex-secretário brincam sobre os motivos psíquicos que Francisco adotou para evitar ocupar o prédio. Um pouco de inquietação, no entanto, ainda domina a relação entre os dois. "Todos os dias eu espero do novo (papa) algo diferente, e me pergunto o que haverá de diferente naquele dia", diz Georg Gänswein.
O secretário se sente ligado à sua antiga promessa: ele está do lado de Bento XVI. Depois das 21 horas, Gänswein cuida dele, do correio, das coisas pendentes, está lá para aquele idoso que Gänswein continua chamando de "Santo Padre".
"Há um só papa", diz Gänswein. É uma afirmação que ressoa como um chamado à ordem que ele faz a si mesmo.
Invadindo a casa do novo papa
Pietro Zander, o arqueólogo-chefe da "fábrica da catedral", também tem uma recordação positiva do papa emérito. Diante dos jornalistas, ele não quer expressar estimativas precisas do recente e notável aumento de visitantes nas audiências gerais na Praça de São Pedro. Mas, neste momento, as multidões são o maior problema de Zander. Os fiéis invadem a casa do novo papa!
Antes, a Praça de São Pedro estava pela metade; hoje, as pessoas lotam até mesmo atrás, até a Via della Conciliazione. A rua é uma espécie de canal de escoamento para pessoas mais ou menos religiosas que querem dar uma olhada no papa. Eles chegam até a frente da casa do arcebispo Müller. Lá, lhe viram as costas.
A audiência geral ocorre sempre às quartas-feiras. Os empregados de Zander impedem o acesso dos carros já na terça-feira à noite e já nem tiram as barreiras na praça. Quando Zander fala de "fundamentos abalados", ele se refere precisamente a pedras, e não a "certezas". A sua preocupação se relaciona com as massas que, depois das audiências, se reúnem em São Pedro. A basílica suporta no máximo 30 mil pessoas por dia. Já a sua respiração é uma "catástrofe para a conservação", diz Zander. Mas ele não pode fechar o portal da igreja sobre o túmulo de Pedro. Uma basílica trancada seria um sinal fatal.
O que fazer então? Zander sorri. Eles chegaram a considerar a ideia de deslocar as audiências gerais para outro lugar, talvez em um estádio, mas logo desistiram da ideia. Ao invés, introduziram uma segunda audiência, aos sábados. Provavelmente, já estão rezando para que isso seja suficiente.
A cúpula que ouve as bases
O povo da Igreja ama Francisco, e ele retribui. Desde que decidiu questionar os seus fiéis, justamente sobre casamento, família e moral sexual, o seu zelo reformador chegou até o mais pequeno vilarejo. Um desejo do povo da Igreja promovido do lato – nunca houve um plebiscito assim.
O papa quer saber, por exemplo, o que os fiéis em situações familiares difíceis esperam da Igreja, que atenção pastoral poderia ser possível para as pessoas coabitantes do mesmo sexo, se alguém se sente "ferido" pela Igreja.
Diversas centenas de homens castos irão discutir sobre as respostas das perguntas de Francisco, no outono do próximo ano, em um sínodo dos bispos. Nos ordinariatos episcopais alemães, os superiores já reclamam, pois a ideia gera manchetes para o papa, certamente, mas apenas trabalho para as dioceses. Quem vai apresentar, e de que lugar da Igreja, e que opiniões? Quem deve subdividir e revisar as respostas? Como a conferência episcopal pode chegar a um resultado unitário?
A maior parte das dioceses alemãs colocou na internet, sem entusiasmo, o que se exigia de Roma. O prazo para as respostas já está fixado para esta ou para a próxima semana.
A Igreja Católica regulamenta até agora quando é permitido fazer sexo, com quem e com que propósito com muita precisão. Os mais altos membros da hierarquia, papas e prefeitos trabalharam muito sobre o "baixo ventre" do seu povo. Mas tudo isso não serviu para nada: as pesquisas mostram que na Alemanha 90% dos católicos vivem de modo diferente do permitido pelo Vaticano.
Representantes daqueles 10% que admitem se ater às regras são convidados aos programas de entrevista como seres exóticos. Até mesmo o papa se impôs a castidade, mas claramente ele duvida que homens que vivem como célibes sejam os melhores conselheiros para todas as situações existenciais, particularmente em matéria de amor.
É improvável que Francisco irá alinhar a sua doutrina de acordo com os resultados do questionário – o que esconde um potencial de decepção à la Obama. Um papa não é alguém que presta serviços, e o cristianismo não é um menu que podemos compor sozinhos. Mas a pesquisa de Francisco mostra que ele tem alta consideração pelo povo, e pouca pelo alto clero. Uma vez ele definiu a Cúria como "lepra".
Nos documentos da Congregação para a Doutrina da Fé, raramente aparecem as pessoas de carne e osso. Ao invés, nas suas pregações, Francisco elogia as pessoas simples do povo. Raramente ele se esquece de citar a sua avó Rosa. Se ele fala de misericórdia, conta sobre pessoas misericordiosas que encontrou pessoalmente. Geralmente são mães. Esse homem não tem só uma carreira eclesiástica, também tem uma biografia. E não tem medo das mulheres, muito menos das jovens e bonitas.
Invenção revolucionária
A sua invenção mais revolucionária é um grupo de conselheiros, composto por sete leigos e um padre, que trabalha constantemente com ele. Os conselheiros distantes do clero são aqueles que devem reorganizar as finanças do Vaticano e restabelecer a credibilidade depois do escândalo Vatileaks. Falta de transparência e lutas de poder tinham provocado o escândalo que, no fim, levou à retirada do antigo papa. Documentos secretos haviam sido roubados diretamente da escrivaninha de Bento XVI. Agora é necessário tornar tudo transparente.
Aqueles que começam a se ocupar com esse trabalho acabam se deparando com questões de poder: acima de tudo, decidir se a Igreja deve ser rica ou pobre, se deve receber ou dar. E também: é lícito fazer o bem com dinheiro sujo? As origens da riqueza católica, às vezes, são pouco claras. A condução dos negócios do banco vaticano não é nada santa.
Fazem parte do grupo de peritos financeiros de Francisco um auditor espanhol, um especialista de seguros alemão, um administrador francês, um ex-ministro das Relações Exteriores de Singapura e uma jovem mulher: a italiana Francesca Immacolata Chaouqui, especialista em comunicação, emprestada pela empresa de consultoria empresarial Ernst & Young.
O fato de que nem na hierarquia da Igreja se saiba exatamente o que Francesca está procurando nos orçamentos do Estado da Igreja e também o fato de ela ter um aspecto sedutor deram origem a intervenções depreciativas de todas as espécies na internet e na imprensa.
Antes, as mulheres que se aproximavam do papa, na melhor das hipóteses, eram cozinheiras ou secretárias. Chaouqui, 30 anos, é advogada formada e tem responsabilidades diretivas no governo-sombra do papa. A sua tarefa, assim como a dos outros leigos, é esclarecer ao papa o capitalismo das suas instituições.
Francesca certamente é competente nessa área. Durante a crise financeira, ela foi consultora, como especialista em comunicação da empresa de consultoria Orrick, Herrington & Sutcliffe, do banco Lehman Brothers.
Tempos atrás, para fazer carreira no Vaticano, eram menos necessárias as competências e mais uma obediência cega. Agora, leigos que se qualificam pela sua competência controlam os antigos poderosos. Francisco expôs os seus projetos revolucionários ainda no conclave. Por isso foi eleito.
Envenenamento?
Inquietos, os seus defensores se perguntam agora: quanto tempo resta para esse papa?
Francisco tem apenas um pulmão. Antes do Natal, vai completar 77 anos. Há alguns personagens nos seus inoperantes escritórios no Vaticano que esperam apenas que lhe falta de ar. Os tradicionalistas zombam dele pelo fato de que, em Lampedusa, ele transformou um barco velho em altar – mas, ao mesmo tempo, o temem. Ele criticou o catolicismo pintado de dourado. Agora, os amantes da pompa e da glória esperam nos seus nichos que chegue a sua hora.
Imediatamente circularam em Roma rumores que afirmam que Francisco vive perigosamente. Ele corre muito risco, diz-se, ao se preocupar mais com grupos de esquerda do que com círculos de direita em Roma. E que ele é realmente um temerário se quiser fazer limpeza no banco vaticano. Ele será encontrado um dia envenenado na Casa Santa Marta? Ou morto no Tibre?
Fala-se surpreendentemente muito sobre o possível fim não natural do papa nestes dias no Vaticano – embora em geral de forma negativa: "Eu não digo que amanhã alguém possa colocar algo no seu chá...", diz um religioso do alto escalão, para falar longamente em seguida dos inúmeros opositores que se sentiram abandonados ou postos em segundo plano.
E também não irrompem paralelos com João Paulo I? Aquele pontífice não dogmático, seguindo o rígido Paulo VI, foi chamado de "o papa sorridente". João Paulo I – recém-eleito, mas sem uma presença midiática e totalmente indefeso – também tinha se proposto a fazer limpeza na Cúria e no banco vaticano, quando tudo acabou de repente. Trinta e três dias depois de assumir o cargo, o novo papa estava morto.
Trinta e cinco anos depois, um novo papa com a inocência de um sonâmbulo se move através desse aparato de corte. No entanto, um "insider" do Vaticano diz: "O envenenamento não é mais necessário. Depois da retirada de Bento XVI, também se pode recomendar a retirada de um papa...".
Solidariedade
Francisco ainda exala a energia do "novo começo", nenhum traço de cansaço na função. No entanto, até agora, ele não conseguiu criar nada de durável. O papa instaurou um vínculo de ternura com o seu povo de Igreja, mas em tempos de impaciência tal atitude gentil poderia em breve ser suspeita de pura aparência. Em breve, não lhe bastará mais fazer perguntas. Ele terá que dar respostas, impor inovações. Chega de discriminação contra as mulheres, os homossexuais e os protestantes! Se ele não ousar nada nessa direção, um grande sentimento se reduz rapidamente a muito pouco.
O papa já deu início a alguns projetos práticos. Por exemplo, ele criou um fundo de solidariedade pelas vítimas de catástrofes, que se chamará "Misericórdia". Francisco quer que a Igreja não seja o último, mas sim o primeiro refúgio para os pobres. As igrejas e os conventos devem abrir as suas portas aos refugiados, conceder a sua proteção – mesmo diante do direito de asilo europeu. E para um homem chamado Konrad Krajewski o papa inventou uma tarefa.
Krajewski é o novo esmoleiro papal, um alto funcionário. O seu escritório está na sombra da Basílica de São Pedro. Os antecessores de Krajewski alocaram fundos para pessoas carentes permanecendo sentados nas suas escrivaninhas. Agora, no entanto, o polonês de 50 anos não deverá esperar dentro, porque a vida está fora, a pobreza está fora.
À noite, os sem teto de Roma dormem sob a colunata recentemente restaurada que circunda a Praça de São Pedro. À noite, assim quer o papa, Krajewski gira pela cidade com um pequeno Fiat branco para ir ao encontro dos pobres e desabrigados, acompanhado por quatro guardas suíços, que falam quatro línguas. E distribui o dinheiro do papa.
E como Roma é muito grande para percorrer com um único carro todas as semanas, ele agora envia mais de 100 cheques, no máximo de mil euros, para os párocos da cidade, para que eles também ajudem os pobres.
"O papa quer que nós não fiquemos esperando as pessoas, mas que vamos ao seu encontro", diz Krajewski. "Ele me disse que a minha conta corrente está bem quando está vazia".
Francisco quer tornar a Igreja novamente crível. A conta vazia – para o papa, esse é o seu capital.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Francisco, o ''alegre anunciador'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU