O parasita: serviço da dívida pública drena R$ 75 bilhões dos cofres da União em março de 2025. Entrevista especial com Paulo Kliass

​O montante do dinheiro destinado ao rentismo em apenas um mês equivale à “economia” do corte de gastos das políticas públicas voltadas aos setores mais empobrecidos da população

Vídeos: Stevanovicigor/Canva e Allanswart/Canva | Edição: Mônica Lima

16 Junho 2025

A racionalidade econômica que está por trás do pagamento elevado de juros da dívida pública “é a continuidade da reprodução da desigualdade social, econômica e regional que o Brasil atravessa há décadas”, adverte o economista Paulo Kliass. Segundo o entrevistado, existem “as medidas de controle de redução do gasto público em áreas que atendem à grande maioria da população por meio das políticas públicas e sociais. Por outro lado, não há nenhum tipo de controle sobre o valor de recursos que vai atender o pagamento de juros”. Um lucro que tem endereço certo: resguardar os altíssimos rendimentos especulativos de quem está no “topo da pirâmide da desigualdade”.

Como o governo refém do financismo e rentismo da Faria Lima, entre abril de 2023 e março de 2024 “o Brasil já gastou R$ 935 bilhões para o pagamento de juros da dívida pública”, pontua Kliass. Para o especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal, a taxa básica de juros – Selic – no atual patamar tem consequências desastrosas, afetando “radicalmente a desigualdade, no sentido negativo, uma vez que a taxa de juros nas alturas compromete de maneira bastante acentuada as despesas financeiras do orçamento público”.

Paulo Kliass destaca que “apenas em março de 2025 o governo destinou R$ 75 bilhões para o pagamento de juros da dívida pública. Isso significa que há duas vezes e meia, em apenas em um mês, aquilo que o governo pretende gerar como corte, contingenciamento, ao longo de 2025, que são R$ 30 bilhões”, visando zerar o déficit fiscal e deixando de investir em “setores essenciais, que estão na marginalidade, quase na miséria”, coloca.

Ao comentar os resultados da redução da desigualdade apresentados na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD em maio passado, Kliass pontua que essa redução marginal esconde outro problema: “o brutal nível de concentração de renda”. Segundo aponta, a pesquisa não incorpora a análise de informações de patrimônios financeiro, imobiliário e empresarial. Quando esses dados são computados, sinaliza o economista na entrevista concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, “o que se percebe é um quadro ainda de maior agravamento desse processo trágico e violento do aprofundamento da desigualdade”.

Paulo Kliass (Foto: Filipe Calmon – ANESP)

Paulo Kliass é graduado em Administração Pública pela Fundação Getulio Vargas – FGV/EAESP, mestre em Economia pela Universidade de São Paulo – USP e doutor na mesma área pela Université de Paris 10. Desde 1997, é integrante da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental, vinculada ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.

Confira a entrevista.

IHU – O que a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), publicada recentemente, aponta sobre a desigualdade brasileira?

Paulo Kliass – Os dados divulgados pela última edição da PNAD, em maio de 2025, apontam para uma ligeira redução dos níveis de desigualdade no Brasil. Ainda que sejam mudanças bastante marginais, residuais, o resultado aponta uma melhora nos níveis de desigualdade. O problema maior é que esse tipo de informação acaba não tratando um problema que é central, estrutural da economia e da sociedade brasileira: o brutal nível de concentração de renda, para não dizer de patrimônio, porque a PNAD não trabalha com patrimônio, apenas com a informação dos rendimentos.

De qualquer maneira, ainda que haja uma redução pequena da desigualdade, a renda, por exemplo, dos 10% mais ricos do Brasil, é 13,4 vezes maior do que a renda dos 40% mais pobres. Ou seja, a condição de vida e, portanto, de renda daqueles que se situam no topo da nossa pirâmide da desigualdade é acentuadamente melhor, não apenas dos 10% mais pobres, mas do que os 40% mais pobres. Eles são 13,4 vezes menos recebedores de rendimentos em relação àqueles do topo.

IHU – Gabriel Galípolo já foi visto como uma alternativa socialmente mais responsável à frente do Banco Central. No entanto, todos seus gestos até agora apontam para uma continuidade da condução de Campos Neto. Um exemplo é a elevação para 14,25% da taxa Selic. Como isso afeta a desigualdade brasileira e que efeitos têm na população mais empobrecida?

Paulo Kliass – A posse do presidente Lula em janeiro de 2023 ocorre já na vigência de uma importante mudança que havia sido feita na institucionalidade do Banco Central na gestão do Bolsonaro e Paulo Guedes: eles encaminharam e o Congresso aprovou uma Lei Complementar que oferecia mandato aos presidentes e aos diretores do Banco Central. Isso fez com que o Lula começasse a sua gestão com nove membros da diretoria do Banco Central, portanto, integrantes do Comitê de Política Monetária – Copom, indicados por Bolsonaro. Essa sistemática previa que com o tempo eles fossem sendo substituídos, mas a substituição da maioria dos diretores só veio acontecer no início do terceiro ano do presidente Lula. Ele conseguiu colocar Gabriel Galípolo como presidente e iniciou o governo em 2025 com sete indicações do total de nove diretores.

Lula passou dois anos, em 2023 e 2024, criticando abertamente o Roberto Campos Neto, principalmente pela política de juros elevados, com a Selic bastante alta, e a expectativa que se tinha com a mudança para o Galípolo é que isso teria uma alteração. Lembremos que o presidente Lula fez questão se pronunciar, dizendo que dava todo apoio ao Galípolo. Ele trouxe nessa entrevista os ministros Fernando Haddad e Simone Tebet, que ficaram apenas como figurantes, mas ele apareceu dando todo seu apoio ao novo presidente do Banco Central.

O que aconteceu a partir de então foi uma grande frustração com relação à expectativa da mudança. Gabriel Galípolo mantém exatamente a mesma política que vinha sendo desenvolvida na gestão anterior, do Roberto Campos Neto, com tendências, inclusive, de agravamento no arrocho à política monetária. Ele já conduziu três reuniões do Copom: a primeira em janeiro, quando aumentou a Selic em 1%; a segunda em março, com mais 1% de aumento; e a terceira em maio com 0,5% de aumento.

Dreno financeiro: parasitas da dívida recebem remuneração recorde

Então, a Selic agora, a níveis de 14,75%, voltamos à taxa de 2006. Uma situação impensável com consequências bastante desastrosas do ponto de vista de uma política econômica progressista ou desenvolvimentista. Ela afeta radicalmente a desigualdade, no sentido negativo, uma vez que a taxa de juros nas alturas compromete de maneira bastante acentuada as despesas financeiras do orçamento público. Nos últimos doze meses, por exemplo, já são R$ 935 bilhões do orçamento para o pagamento de juros da dívida pública. Esse tipo de gasto vai endereçado para o topo da nossa pirâmide, enquanto a grande maioria da população não tem acesso a esse tipo de ativo e a sua remuneração.

Por outro lado, a taxa referencial de juros nas alturas provoca uma ainda maior elevação dos custos dos empréstimos e do crédito de uma maneira geral. Ela é a base para a formação da taxa de juros dos mercados bancário e financeiro. Isso fica ainda mais agravado pelo fato de que o governo até agora não utilizou a opção dos bancos comerciais públicos, como o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal, o Banco do Nordeste ou o Banco da Amazônia para reduzir os spreads [diferença entre a taxa de juros cobrada pelos bancos nos empréstimos e a taxa de juros paga para os investidores] nas operações com a população, as famílias e as empresas, e com isso obrigar o oligopólio bancário privado a também reduzir esse tipo de taxa.

IHU – Quanto à dívida pública, há um detalhe de rubrica contábil que inviabiliza que os recursos destinados a esse fim sejam incorporados às políticas de controle de gastos, aos cortes orçamentários, pois não se trata de despesa primária. Que tipo de racionalidade econômica está implicada nessa estratégia?

Paulo Kliass – As estratégias mais gerais daquilo que hoje chamamos de austeridade fiscal remontam a mais de quatro décadas. Na década de 1980, tem início um processo de renegociação das dívidas dos países do terceiro mundo, que eram basicamente dívidas junto a bancos internacionais privados. A chamada crise da dívida, à época, passa a ser coordenada por instituições multilaterais baseadas na capital dos Estados Unidos.

Esse processo, que é os primórdios daquilo que passamos a chamar de neoliberalismo, recebeu o título de Consenso de Washington. Era a ideia de estimular a privatização das empresas estatais nesses países, a liberalização mais completa da economia, principalmente na parte de comércio internacional e de fluxo de capitais, e também o maior controle da austeridade fiscal. A ideia era evitar que esses países tivessem outras dificuldades com o pagamento do compromisso das suas dívidas externas e, com isso, se propôs que a contabilidade separasse despesas financeiras e despesas não financeiras, daí essa diferença em despesas primárias e não primárias. A intenção era estimular esses governos a não terem superávit primário fiscal, fazendo com que esse saldo positivo nas contas públicas, por meio da compressão de despesas de natureza social e investimento, gerasse um saldo positivo que fosse suficiente para pagar os juros pelo lado primário, que são as despesas financeiras.

Consenso de Washington: Brasil fez a lição de casa

No caso brasileiro, essa medida foi levada à risca. Nós temos um processo de privatização das empresas públicas que começa com Fernando Collor, já em 1990, e tem continuidade desde então. Há um processo de abertura desenfreada no governo Collor e o aprofundamento da liberalização generalizada, inclusive com a ausência de todo e qualquer controle do fluxo de capitais entre o Brasil e o restante do mundo. E também a institucionalização das regras de austeridade. Ainda que a austeridade fiscal já tivesse sido implementada desde então, no ano 2000 temos a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal, que estabelece regras bastante rígidas, draconianas, para a gestão fiscal da União, dos estados e dos municípios.

Nesa diferença entre primário e não primário, existe um foco permanente para obtenção de resultados que eles chamam de “positivos”; significa a obtenção de redução das despesas do ponto de vista de políticas como saúde, educação, previdência, assistência social, segurança, saneamento, investimentos e salários de servidores. Para isso então tem teto, limite e contingenciamento, ao passo que as despesas financeiras – o pagamento de juros da dívida pública – segue absolutamente sem controle, livre para subir o quanto quiser. Tanto que os aumentos mais expressivos em termos das rubricas orçamentárias são os aumentos que foram verificados nas despesas financeiras, no pagamento de juros.

Reprodução de desigualdade

A racionalidade econômica que está por trás disso é a continuidade da reprodução da desigualdade social, econômica e regional que o Brasil atravessa há décadas. Tem as medidas de controle de redução do gasto público em áreas que atendem à grande maioria da população por meio das políticas públicas e sociais. Por outro lado, não há nenhum tipo de controle sobre o valor de recursos que vai atender o pagamento de juros, a uma parcela bastante reduzida da pirâmide da desigualdade, o topo dessa pirâmide. Por exemplo, nos últimos doze meses, o Brasil já gastou R$ 935 bilhões para o pagamento de juros da dívida pública, entre abril de 2023 e março de 2024.

Esse número tende a aumentar à medida que há um aumento da Selic, que é a numeração referencial para a rolagem da dívida. Isso provoca um quadro de desequilíbrio do ponto de vista do uso acentuado dos recursos. Uma alternativa seria romper com a lógica, por exemplo, com a divisão das despesas primárias e não primárias e incorporar essa despesa com juros no cálculo. Com isso, deve acabar aquela falsa narrativa de que o setor público está equilibrado, está gerando superávit ou coisa do gênero. Na hora em que se soma como precisam ser somadas as despesas financeiras, o que está acontecendo é um grande déficit.

No entanto, isso não é um problema. Os grandes meios de comunicação acabam reproduzindo uma abordagem das finanças públicas como se fosse o comportamento das pessoas, das famílias ou mesmo das empresas. Não é assim que funciona. O fato de um setor público de um Estado como o Brasil apresentar déficit não é nenhuma catástrofe. A grande maioria dos países capitalistas contemporâneos apresentam déficit fiscal. O que em alguns momentos é a solução para a retomada do crescimento e do desenvolvimento.

IHU – No site Outras Palavras, há um artigo seu assim intitulado: “Bolsa Família e Bolsa Banqueiro”. Do que se trata uma e outra coisa? Quais os efeitos dessa dicotomia nas condições de vida da população brasileira?

Paulo Kliass – Esse artigo é um retrato de como funciona o quadro de agravamento das desigualdades sociais e econômicas que caracterizam, infelizmente, a sociedade brasileira. O que me levou a escrever o texto naquela semana foram as notícias que começaram a ser veiculadas, e depois confirmadas, de que a área econômica do governo estava buscando encontrar mecanismos para “resolver” a questão do equilíbrio fiscal primário por meio de redução de valores de rubricas orçamentárias nas áreas de políticas sociais e públicas que atendem à maioria da população.

Arrocho no BPC e no Abono Salarial

O governo já havia anunciado outras medidas que vão nessa linha, por exemplo: a redução do acesso ao Benefício de Prestação Continuada – BPC com um discurso, do ponto de vista institucional, de que haveria mau uso e “usuários malandros”, quando sabemos o que acontece é completamente o oposto. O BPC é dirigido aos setores mais carentes e miseráveis da sociedade. Quem tem acesso a ele são famílias com uma renda per capita de ¼ de salário mínimo – uma família que tem uma pessoa que recebe um salário e sustenta as outras três. E nessa família há ou pessoas com deficiência ou idosos com mais de 65 anos que nunca contribuíram para a Previdência Social. Isto é uma realidade bastante comum na base da nossa sociedade. Não existe essa coisa de abuso ou malandragem, o BPC é voltado para corrigir injustiças sociais profundas e dar minimamente condições econômicas para que essas famílias consigam sobreviver.

Além disso, o governo reduziu os direitos do Abono Salarial, que é conhecido como 14º salário. Um benefício que contribuiu para minimamente a maioria da população trabalhadora conseguir fechar o ano, porque os níveis salariais estão bastante reduzidos.

Naquele momento, incluía também no pacote, uma redução das regras de reajuste do salário mínimo, em contradição com aquilo que havia sido a promessa do presidente Lula durante a campanha de 2022. Ele dizia que voltaria ao que tinha estabelecido em seus primeiros dois mandatos, que era um reajuste incorporando a inflação do período e mais o crescimento do PIB. Portanto, um reajuste real. Ele foi convencido, aparentemente pela equipe econômica, pelo ministro Fernando Haddad, e está valendo para esse ano de 2025, é que o reajuste se reduzisse simplesmente a um avanço real de 2,5%. Então, o PIB pode crescer o que for, mas o reajuste do salário mínimo real fica limitado ao máximo de 2,5%.

Arrocho no Bolsa Família

E agora, as novidades, infelizmente, são de redução do próprio Bolsa Família. Portanto, terão menos recursos por um tempo menor, com um argumento de que se deveriam estimular as pessoas a deixarem de receber o Bolsa Família. Antes as famílias recebiam por dois anos e agora será por apenas um ano. Então, é a continuidade da lógica de que o ajuste fiscal primário necessita ser feito à custa da redução de instrumentos de políticas públicas dirigidos para a grande maioria da população, sobre a falácia de que isso se trata de gastança, quando os números não se sustentam de maneira alguma essa interpretação. Por isso, coloquei do lado do Bolsa Família o Bolsa Banqueiro.

Contingenciamento para os pobres, superfaturamento para os ricos

Por um lado, tem o pagamento sem nenhum controle, limite ou contingenciamento de valores extremamente expressivos. Apenas em março de 2025 o governo destinou R$ 75 bilhões para o pagamento de juros da dívida pública. Isso significa que há duas vezes e meia, em apenas em um mês, aquilo que o governo pretende gerar como corte, contingenciamento, ao longo de 2025, que são R$ 30 bilhões para alcançar a meta de zerar o déficit primário. Retira-se R$ 30 bi de setores essenciais, que estão na marginalidade, quase na miséria e, por um único mês, o governo dá duas vezes esse valor – R$ 75 bilhões – para o pagamento de juros da dívida pública.

Se quisermos estender isso no horizonte e pensar nos últimos doze meses, esses valores se aproximam de R$ 1 trilhão, isto é, R$ 935 bilhões e isso não é considerado um gasto irreal, desigual que precisa ser submetido a algum tipo de corte como contingenciamento.

IHU – No dia 22 de maio foi anunciado o aumento do IOF para cobrir a despesa da União e fechar o ano no azul, mas depois houve um recuo em partes. Qual impacto esta medida pode ter para a maior parte da população?

Paulo Kliass – No dia 22 de maio assistimos a um espetáculo que deveria envergonhar qualquer governo que pretende, minimamente, defender os interesses da maioria da população e um projeto de retomada do crescimento, do desenvolvimento social, econômico e ambiental.

O ministro da Fazenda Fernando Haddad e a ministra do Planejamento Simone Tebet, ladeados de secretários, apresentam o relatório bimestral da evolução das receitas e despesas primárias do governo. O foco dessa entrevista coletiva foi a identificação daquilo que o governo, pelos menos na área econômica, considera os principais responsáveis de um suposto desajuste orçamentário e fiscal. Por um lado, há os benefícios da Previdência Social, o Regime Geral da Previdência Social, e, por outro, o Benefício de Prestação Continuada. Esse foi o foco da intervenção do Haddad.

Na verdade, é uma repetição desse discurso que as elites econômicas e o pessoal do sistema financeiro já metralham os grandes meios de comunicação há muitos anos, eu diria há algumas décadas, dizendo que o gasto público é responsável pelo desequilíbrio fiscal, pela inflação, etc. Esse governo acaba reproduzindo esse discurso e anunciando medidas de contenção de políticas sociais nessa linha. Por outro lado, para tentar mostrar algum tipo de neutralidade, anunciam algumas medidas para a elevação das receitas, principalmente com o aumento do Imposto Sobre Operações Financeiras – IOF. Esses aumentos no IOF anunciados são bastante residuais, são pouco substantivos das necessidades do que seja a aplicação de política tributária com interesse de reduzir a desigualdade tributária, mas de alguma maneira seria uma forma de compartilhar, com outros setores, que não são os pobres e os miseráveis, algum tipo de esforço para fechar 2025 dentro dessa meta de zerar o déficit fiscal.

Ministério da Fazenda a serviço da Faria Lima

É interessante observar que essa meta de zerar o déficit fiscal foi uma armadilha autoimposta pelo governo para si mesmo. Ninguém exigiu do presidente Lula ou da sua equipe que o déficit fiscal fosse zerado. Mas como o governo apresentou essa proposta na Lei de Diretrizes Orçamentárias em 2024 e o ministro Fernando Haddad há todo momento faz questão de incorporar essa persona do “bom moço”, de atender sempre e plenamente aos interesses do sistema financeiro e da Faria Lima, nada disso foi alterado. Bastava o governo dizer: infelizmente, pelo decorrer dos meses, não vamos conseguir fechar o ano no equilíbrio e vamos ter um déficit. Isso não é um problema. Só é um problema para um governo que acha que a sua missão maior é atender aos interesses da Faria Lima e não cumprir com as obrigações políticas e constitucionais de resolver o problema das desigualdades profundas que o Brasil atravessa.

A continuidade dessa medida no dia 22 de maio é que foi a coisa mais trágica. O governo foi “obrigado”, optou por recuar por conta da gritaria que a Faria Lima estabeleceu com relação a essa medida, que é bastante residual e não vai afetar em maneira nenhuma as taxas de lucros e os rendimentos desses setores privilegiados.

Enquanto os ministros Haddad e Tebet faziam a exposição, os setores privilegiados já começaram o seu lobby, foram junto ao Palácio do Planalto e ao ministro-chefe da Casa Civil Rui Costa e exigiram que o governo recuasse. Foi a coisa mais vergonhosa possível: enquanto a medida era anunciada, o governo já tinha decidido recuar. Fizeram sair, inclusive, uma edição especial do Diário Oficial da União retirando uma parte dessa elevação do IOF, que seria aplicado sobre as aplicações dos fundos financeiros internacionais, mostrando que quando os trabalhadores e aposentados e a grande maioria da sociedade exige e pressiona o governo, nada é atendido. Agora, em uma medida como essa, basta os representantes da Faria Lima e do grande capital financeiro telefonarem para o ministro da Casa Civil que automaticamente seus pleitos são atendidos.

IHU –  O governo recuou na proposta da IOF e essa semana apresentou uma nova Medida Provisória. Como o senhor avalia essa medida que propõe acabar com a isenção das aplicações em LCIs (Letras de Crédito Imobiliário) e LCAs (Letras de Crédito Agrícola), elevar a alíquota sobre as bets de 12% para 18% e dispõe de mudanças na cobrança de Imposto de Renda sobre aplicações financeiras?

Paulo Kliass – A medida provisória que o governo encaminhou para substituir o decreto que tratava do IOF é uma tentativa de recompor a expectativa de receita tributária para assegurar o déficit fiscal primário zerado ao longo de 2025, como o próprio governo havia proposto. Nada disso seria necessário se o governo houvesse, lá no ano passado quando encaminhou o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias que valeria para 2025, previsto o que era absolutamente razoável: algum grau de déficit primário.

Pela primeira vez, com essa medida provisória o governo procura recompor a receita tributária sugerindo propostas para atividades financeiras e de setores econômicos e sociais que até então não eram isentos desse tipo de tributação, portanto, eram muito pouco tributados. É o caso da lei de Letras de Crédito Agrícola, Imobiliário e especialmente das bets – das modalidades financeiras de apostas, que o governo foi ainda muito tímido elevando de 12% a 18% quando a grande maioria dos países tem uma incidência tributária maior. É o tipo de atividade que precisa ser, primeiro, pedagogicamente modulada, porque o risco de vícios e dependências é extremamente elevado. São atividades bastante negativas do ponto de vista psíquico, social e cultural, e merecem uma tributação mais elevada.

Por fim, a mudança no imposto de renda sobre aplicações financeiras também faz todo o sentido porque são setores que conseguem algum tipo de renda a partir de atividades puramente financeiras e que precisam dar uma contribuição maior com o bolo tributário. Em geral, essas medidas são bastante positivas no sentido de apontar – ainda que não solucionar – para uma melhoria no grau da justiça tributária e na redução, ainda que marginal, na natureza bastante regressiva do nosso sistema de tributação.

IHU – Qual o papel da Faria Lima nas políticas econômicas nacionais? Existe interferência? Se sim, como isso afeta a maior parte dos brasileiros?

Paulo Kliass – O papel da chamada Faria Lima no estabelecimento das políticas econômicas no Brasil não é uma novidade; isto vem de muito tempo, antes ainda de utilizarmos o termo 'Faria Lima' para se referir a este grupo privilegiado e da elite do sistema financeiro. O termo surge exatamente porque as grandes empresas ocupam prédios chiquérrimos e caríssimos na avenida Faria Lima, na Zona Sul da capital paulista. O que se imaginava é que haveria uma mudança do ponto de vista da forma direta, explícita e automática do que esse pessoal do financismo vota, tenta e chega mesmo a implementar políticas públicas na área da economia em nosso país.

A primeira esperança vinha em 2003, na primeira vez que o presidente Lula foi eleito para o Palácio do Planalto, mas logo no começo do governo ele decide indicar para a presidência do Banco Central aquele que era, até a antevéspera, o presidente do Bank of Boston, Henrique Meirelles. Ele abre mão da sua eleição para ser deputado federal por Goiás, pelo então PSDB, e vira presidente do Banco Central e assim permaneceu durante os oito anos dos primeiros dois mandatos de Lula, com uma autonomia total para implementar políticas cambial e monetária.

Era a época que chamávamos de austericídio, no começo do primeiro mandato o Lula. Tínhamos Antonio Palocci na Fazenda, com arrocho fiscal e obtenção de superávits primários impressionantes, e Henrique Meirelles no Banco Central com a taxa de juros – Selic – nas alturas. Isso continuou, com mais ou menos gravidade, mas os representantes dos bancos e das instituições financeiras sempre tiveram livre acesso, quando não há figura do presidente do Banco Central, os diretores do Banco Central, ao ministro da Fazenda, dos principais cargos das secretarias do Ministério da Fazenda, mas sempre influenciando e ordenando de alguma maneira o que deve ser o centro da política econômica governamental.

Isso se explica quando percebemos que desde 2003, ou seja, há 22 anos, sendo que majoritariamente sob governos petistas, em momento algum deles apresentou em um ato singelo uma medida provisória acabando, por exemplo, com a isenção – absurda – de imposto de renda para lucros e dividendos, que foi uma generosidade apresentada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. Isso explicita também, de forma agressiva e violenta, a desigualdade. Os trabalhadores e assalariados têm o imposto de renda recolhido na fonte dos seus salários, em seus contracheques, ao passo que aqueles que usufruam de lucros e dividendos das suas empresas ou na forma de acionistas de outras empresas não pagam um centavo, o que é uma loucura.

Nata do financismo à frente das decisões do Banco Central

Outra forma de manifestação explícita está na área da política monetária. Todos sabem que a institucionalidade do Banco Central opera com a chamada pesquisa Focus. Eles fazem toda a semana uma consulta a apenas 160 pessoas que na segunda-feira são divulgados como sendo a vontade do mercado; é assim que os grandes órgãos de comunicação tratam a medida. São 160 pessoas estabelecendo suas projeções e expectativas – eu diria mais seus chutes, porque nada disso se sustenta no tempo – com relação ao crescimento do PIB, a evolução da inflação, ao comportamento do setor externo, importações e exportações, mas principalmente com relação ao que deve ser a taxa de juros, a Selic. Podemos até dizer que as outras variáveis econômicas têm um modelo macroeconométrico enviesado, mal elaborado, que dá uma tendência da inflação e do PIB. Mas com relação à Selic é uma aposta, porque a Selic é uma decisão administrativa, obviamente política, mas não é resultado de nenhum modelo econométrico.

Esse seleto grupo de 160 pessoas da Faria Lima, no qual todos são diretores, presidentes e donos de bancos e instituições financeiras, decide qual deve ser a taxa da Selic nos horizontes próximos. Essas decisões são utilizadas pelo Banco Central para implementar não só as políticas monetária e cambial, mas também para basear as decisões do Comitê de Política Monetária – Copom. O Copom são os nove diretores do Banco Central, que se reúnem a cada 45 dias em uma terça-feira e uma quarta-feira e tomam uma decisão essencial, que é o estabelecimento da Selic. Eles decidem a Selic com base na informação, na pressão e no lobby estabelecido por essas 160 pessoas, que são a nata de elite financeira brasileira. Portanto, temos a continuidade do papel das elites de forma geral, das elites financeiras especificamente, e dessas pessoas privilegiadas que conseguem de forma institucional influenciar, de acordo com seus interesses, os rumos da política econômica.

IHU – Um dado bastante intrigante da PNAD é que historicamente a média salarial do brasileiro é a maior desde que o indicador passou a ser avaliado, em 2012. No entanto, os 10% mais ricos do Brasil ganham (média de R$ 8,3 mil), por mês, 13,4 vezes mais do que os 40% mais pobres (média de R$ 600, menos da metade do salário mínimo). O que explica e o que leva a essas contradições?

Paulo Kliass – Os dados da PNAD Continua, divulgados em maio de 2025, registram efetivamente a maior média salarial mensal da população trabalhadora no Brasil desde 2012. É importante observarmos que essas alterações conjunturais de um trimestre para outro são importantes, mas se pegarmos a tendência – isso é o mais relevante – temos um crescimento que é menor do o crescimento, por exemplo, do PIB ao longo do período. Esse número, em termos reais, utilizando a média de todos os rendimentos do trabalho, é R$ 3.525,00, ou seja, cerca de 10% maior do que foi observado em 2012, e isso significa, ao longo de 12 anos, em média, algo menor do que 1%, o que é muito pouco.

Óbvio que houve meses e anos em que a média baixou e depois subiu. Mas o fato é que há essa tendência de elevação lenta dos rendimentos do trabalho, que é o rendimento da base da nossa pirâmide. Por outro lado, temos o topo dessa pirâmide, que são os 10% mais ricos, que ganham 13 vezes mais do que os 40% mais pobres.

O que se percebe, desde o primeiro governo Lula até agora, é que muito pouco foi feito, do ponto de vista institucional, para assegurar medidas visando à redução das desigualdades social e econômica. A partir de 2026, quando temos o golpe parlamentar contra a Dilma, os dois anos do presidente Michel Temer e mais os quatro anos do Bolsonaro, foram anos em que a expressão da desigualdade foi aprofundada porque não havia mecanismos de amortecimento ancorados, por exemplo, de determinações constitucionais ou em legislações mais rígidas, que não estivessem expostas a variações de governo e conjuntura.

Nestes 22 anos, ainda que observados momentos em que a redução da desigualdade ocorreu de fato, porque houve a ampliação de políticas públicas importantes, como, o Bolsa Família, a expansão do BPC e a ampliação do acesso à Previdência Sociais para setores oriundos do campo, que eram proibidos de realizar essa contribuição. Por outro lado, há também um processo de recuperação do salário mínimo e dos rendimentos do trabalho de maneira geral. Esses são aspectos que contribuíram para reduzir a desigualdade.

O nosso índice de Gini apresentou, nesse período, algumas melhorias. Mas são melhorias ainda pontuais, porque a grande diferença entre a remuneração e os rendimentos do topo da pirâmide, do 0,1% ou 1% mais rico, e a grande maioria nem é captada pela PNAD Contínua

A PNAD Continua é uma pesquisa que é autodeclaratória e muitas vezes as pessoas dos setores do topo da pirâmide nem sempre declaram tudo aquilo que recebem. Então, é necessário ter outros instrumentos de aferição desse tipo de informação, através, por exemplo, das declarações do imposto de renda, tanto das pessoas físicas quanto das pessoas jurídicas.

O que se percebe é um quadro de maior agravamento desse processo trágico e violento do aprofundamento das desigualdades. Enquanto a PNAD fica apenas na comparação dos rendimentos declarados da base da pirâmide e dos setores do topo, ainda não é possível perceber o nível da desigualdade econômica quando se incorporam outros rendimentos, como aqueles derivados das rendas associadas a ganhos financeiros, ganhos dos acionistas e, principalmente, ao não se incorporar um elemento que é fundamental: a desigualdade patrimonial. Quando nesta análise se incorporam os patrimônios financeiro, imobiliário e empresarial, ainda mais os níveis da desigualdade ficam evidentes.

IHU – Recentemente a Polícia Federal trouxe a público a fraude do INSS. Milhares de aposentados tiveram parte de seus salários drenados pelas empresas fraudulentas. Como ressarcir essas pessoas, cuja maioria absoluta recebia cerca de um salário mínimo?

Paulo Kliass – Esse escândalo do INSS, dos descontos não autorizados nas contas de aposentados, pensionistas e outros beneficiários da Previdência Social, é algo que tem início em 2016, após o golpe contra a Dilma e após a ascensão ao Palácio do Planalto do então vice-presidente. Esse processo começou relativamente de forma lenta entre 2016 e 2018, entra o governo Bolsonaro, a partir de 2019, mas os valores e a quantidade de pessoas fraudadas têm um salto expressivo a partir de 2023 e 2024, portanto já nos dois primeiros anos do terceiro mandato do Lula.

O sistema é muito inteligente do ponto de vista operacional e contou com o apoio de um conjunto amplo. Inclusive de parlamentares de diversos partidos no interior do Congresso Nacional (deputados, deputadas, senadores e senadoras) que exerciam pressão e lobby sobre o Executivo para que fossem reduzidos os mecanismos de controle e de transparência sempre que houvesse o surgimento de uma “autorização” de um eventual pensionista com relação à possibilidade de fazer um débito na sua conta.

Havia um conjunto de entidades que foram artificialmente criadas a partir de 2016; as pessoas viam uma oportunidade de ganhar dinheiro. Então, eram entidades que não existiam, eram fantasmas, e que passaram a pleitear junto ao INSS a possibilidade de operar os recursos dos beneficiários. Na sua grande maioria, eram contas sobre as quais os próprios beneficiários não tinham acesso, a pessoa não iria ver se foi debitado algum valor das suas contas. Quando o valor era menor, creditavam isso a algum tipo de erro, de equívoco do sistema. Além dessas entidades de fachada e entidades fantasmas, que foram criadas com o objetivo de ganhar dinheiro (entidades desconhecidas da maioria da sociedade), havia outras que já existiam e que tinham certa tradição, como a Confederação Nacional dos Trabalhadores na AgriculturaContag, e outras entidades de aposentados que passaram também a tentar operar contas de pessoas que recebiam benefícios do INSS.

O que está vindo à tona é que se tratava de um esquema de mafioso e criminoso, que envolvia corrupção e suborno de servidores do INSS que tinham posições-chave no processo de liberação de autorizações e empresas que faziam a interface entre essas associações e o próprio INSS. A partir do momento em que a Polícia Federal age, investiga, tem inicialmente a decisão de dar um basta nesses descontos e a tentativa paulatina de revisar cada uma das decisões. Caso haja crime cometido, fraude contra o desejo dos beneficiários, este dinheiro deve ser retornado.

Sacrossanto equilíbrio fiscal

O que aconteceu do ponto de vista político, logo depois desses anúncios, foi a reação do ministro da Fazenda, Haddad. Para ele, em toda e qualquer decisão de política pública que envolva a política econômica, a preocupação recai em salvar o sacrossanto equilíbrio fiscal primário. Na hora em que o governo decide que “nós vamos devolver os recursos que foram roubados dos beneficiários”, falamos de pessoas da base da nossa pirâmide social. Mais de 70% dos benefícios do Regime Geral da Previdência Social são de valores de até um salário mínimo. É dessas pessoas que o dinheiro estava sendo roubado.

Mas o Haddad disse que precisavam ver qual seria a fonte de recursos a serem utilizados para a restituição do dinheiro roubado, porque isso efetivamente entraria como uma despesa extraordinária do INSS, do governo, do Tesouro Nacional em última instância, para ressarcir o roubo. Depois, se as pessoas conseguirem recuperar esse dinheiro na justiça, melhor. Mas a decisão nesse primeiro momento tem que ser positiva e assertiva do governo e dizer: cada uma das pessoas vai receber o dinheiro que lhes foi roubado, porque, em última instância, tem a administração pública, o ministério e o INSS envolvidos, ainda que não de forma ativa, mas passiva, no encaminhamento da estrutura fraudulenta.

No meu ponto de vista, a forma mais correta seria o governo assumir: serão devolvidos os recursos para as pessoas. Se isso vai sair do Tesouro Nacional, não importa. Não cabe ter a menor vacilação no cumprimento de uma medida de justiça social por algum problema ou receio de que isso vai aumentar eventualmente as despesas previstas para 2025, e isso vai comprometer algum equilíbrio fiscal. Não tem sentido esse tipo de vacilação.

IHU – Toda vez que sai um índice de avaliação do governo Lula e os percentuais de aprovação são menores que a expectativa as explicações orbitam em torno da “comunicação” do governo. Até que ponto isso é verdadeiro e a partir de que ponto a questão de fundo está relacionada às políticas públicas implementadas e, talvez sobretudo, não implementadas?

Paulo Kliass – Essa questão da avaliação do governo Lula é um tema recorrente no debate a respeito das alternativas a serem implementadas no futuro e com relação a uma análise das dificuldades que o governo vem enfrentando hoje, em função dos equívocos que têm sido cometidos desde o início do governo no dia 1º de janeiro de 2023, e mais ainda se incorporar o período que vai do último domingo de outubro de 2022, quando é indicada a vitória de Lula, uma vitória apertada contra Bolsonaro, que foge do país e vai para os Estados Unidos. E o período da transição é o momento em que, uma vez confirmado como ministro da Fazenda pelo presidente Lula, o Fernando Haddad começa a articular junto a entidades ligadas ao sistema financeiro, a presidentes de bancos privados e a deputados e senadores medidas que já apontavam, naquele momento – antes do fim de 2022 – a essência da política econômica do terceiro mandato do Lula.

Promessas ao vento

Há um processo crescente de frustração de uma parte expressiva da população em relação às promessas apresentadas pelo presidente na campanha. Vou lembrar apenas duas frases que o Lula repetia praticamente todos os dias a respeito da sua volta ao Palácio do Planalto: “eu só aceitei a incumbência de um terceiro mandato porque quero fazer mais e melhor do que fiz nos dois primeiros”, ou seja, de 2002 a 2010; e “eu pretendo realizar um governo em que vou fazer 40 anos em quatro” – pegando carona no bordão do presidente Juscelino Kubitschek na década de 1950. À época o mandato era de cinco anos e o JK então dizia: “vou fazer 50 anos em cinco”. JK efetivamente conseguiu realizar uma série de projetos naquele momento.

Essa era a expectativa que se tinha em torno do presidente Lula. Ele dizia que ia retomar um processo de valorização dos trabalhadores, dos salários e, principalmente, do salário mínimo, recuperar o que era uma marca do seu governo: uma valorização real do salário mínimo a cada ano, dando a reposição da inflação mais o crescimento do PIB. Dizia também que revogaria o teto de gastos, que havia sido aprovado logo no começo da chegada de Temer ao Palácio do Planalto e que previa o congelamento das despesas públicas por duas décadas. Havia um consenso entre os economistas progressistas, as forças políticas de oposição a Temer e Bolsonaro, de que a solução era simplesmente revogar o teto de gastos, porque tinha a própria Lei da Responsabilidade Fiscal, que daria conta desse tipo de preocupação, se é que ela havia, com a questão de algum tipo de equilíbrio das contas públicas.

Políticas públicas na contramão da redução da desigualdade

O que aconteceu, a partir de janeiro de 2023, foi uma sucessão de medidas que iam na contramão das necessidades do país e das promessas de campanha. O que se verificou é que cada momento que se passava, cada novidade negativa que era apresentada pelo ministro Haddad e pelo presidente do Banco Central, que à época ainda era comandado por Roberto Campos Neto, acabava se refletindo sobre o estado de ânimo da maioria da população. Então, há um processo crescente de redução dos índices de aprovação e popularidade do governo, do próprio presidente como figura, até o ponto em que as curvas se juntam e as avaliações negativas passam a ser superiores a avaliações positivas.

Isso foi interpretado pelo núcleo duro do Palácio do Planalto como sendo uma coisa de comunicação. Isto é, o governo não estava conseguindo comunicar aquilo de bom que estava sendo implementado. Vamos reconhecer que do ponto de vista real, alguma coisa fazia sentido nessa avaliação, porque o PIB estava crescendo – 2023 e 2024 o PIB cresceu cerca de 3%. Os índices de desemprego estão melhorando, estão sendo gerados novos empregos. Até o ponto mais recente, em que estamos com a menor série de desemprego de todas as avaliações mensais feitas pelo IBGE.

Mas há um elemento que não é simplesmente a falta de comunicação. É que tudo isso, apesar de verdadeiro, não está chegando no bolso dos trabalhadores e da grande maioria da população. Há, por exemplo, o crescimento do emprego, mas em condições de precariedade e de salários abaixo de um salário mínimo, fruto das reformas trabalhistas aprovadas por Temer e Bolsonaro. Esta era outra promessa de Lula: revogar essas reformas, mas não tomou nenhuma iniciativa nesse sentido.

Inflação: peso no bolso dos trabalhadores

Há outro elemento importante, que é a inflação. A inflação que atinge a cesta básica tem sido muito mais elevada do que a média da inflação. Então, há um crescimento das tarifas públicas de luz, dos preços dos derivados do petróleo – outra promessa que Lula não cumpriu, de atrelar a evolução dos derivados do Brasil ao que acontecia com o preço no mercado internacional – e dos preços dos alimentos. Enfim, um conjunto de medidas que pesam negativamente no bolso dos trabalhadores e isso, efetivamente, não é um problema de comunicação.

Existe o problema de comunicação falha. O atual governo se recusou, assim como nos dois primeiros mandatos, a criar um polo independente dos grandes meios de comunicação para fazer a comunicação direta com a população. Ele continuou dando prioridade aos grandes meios de comunicação nas entrevistas exclusivas, nos furos e na alocação de verbas de publicidade. Com isso, o governo fica refém da temperatura desses grandes grupos empresariais.

Recuperar a essência do protagonismo do Estado

Contudo, o problema não se resume à falha de comunicação. O problema é que a essência das políticas econômicas e a essência, de maneira mais ampla, das políticas públicas não têm sido satisfatórias no sentido de atender às expectativas da população e, principalmente, de recuperar o que era muito importante que era o sentimento de retomada do desenvolvimento econômico, social e ambiental através de um processo de recuperação do protagonismo do Estado no âmbito da economia.

Pelo contrário. O governo está refém de elementos e características neoliberais em suas políticas públicas por meio da redução de verbas para políticas sociais e tendo que recorrer a instrumentos de natureza privatizante, como são as concessões e as parcerias público-privadas. Se a essência da política pública não é alterada no sentido de atender às expectativas da população, não basta trocar a estratégia da comunicação. É preciso alterar também o objeto, o conteúdo daquilo que deve ser comunicado.

IHU – Como tirar o Brasil das mãos do rentismo?

Paulo Kliass – Tem uma questão que é indiscutível, referente ao crescimento do poder e da capacidade de influência política do rentismo nas políticas públicas e no desenho do futuro do Brasil. É verdade que esse processo de aprofundamento dos mecanismos de financeirização das economias e das sociedades acontece de forma global. Isto é, a financeirização caminha junto com a internacionalização, globalização e a mundialização das atividades econômicas. Mas, o que acontece no caso brasileiro, é que isso é levado aos limites do paroxismo. Ou seja, o poder que a parcela parasita do capitalismo tem é extremamente desproporcional ao conjunto das necessidades que o país apresenta.

40 anos de desindustrialização

Há um processo crescente de estímulo à atividade financeira stricto sensu e isso acontece de forma combinada com um processo, também acentuado ao longo das últimas quatro décadas. Isso não é uma coisa recente ou atual desse governo e nem mesmo desses últimos 20 anos que o Partido dos Trabalhadores chegou ao governo. Isso vem desde a década de 1980, que é a chamada tendência à desindustrialização da nossa economia. Até a década de 1980 assistimos ao crescimento da participação da parcela industrial do PIB, que chegou a quase 30% em alguns anos.

A partir da chegada de Fernando Collor de Mello em 1990 ao poder, há um processo de redução paulatina e ininterrupta da participação da indústria na atividade econômica em geral. Esse processo de desindustrialização teve como contraponto dois elementos.

Primeiro, a participação crescente dos chamados serviços, que em países desenvolvidos foi visto como algo positivo, pois significava serviços de alta qualidade, economia digital e aprofundamento dos processos de informática, mas no caso do Brasil não. Um contraponto da desindustrialização foi o crescimento de serviços de baixíssima qualidade, que não agregam quase nada do ponto de vista do valor da atividade econômica. São serviços como telemarketing, mais recentemente de tele-entregas, transportes por aplicativos etc., quando sabemos que a atividade industrial por excelência é a atividade, efetivamente, capaz de gerar maior valor agregado.

O Brasil, combinando, por um lado, esse processo de abertura econômica de forma irresponsável, permitindo o ingresso de produtos importados de forma unilateral, destruindo a capacidade de concorrência do que era produzido internamente e, por outro lado, um processo de valorização cambial contínuo e acentuado, que era a contrapartida do processo de elevação acentuado da taxa de juros – Selic – e das taxas cobradas pelo sistema financeiro para todo o tipo de ação de crédito e de empréstimo. À medida que a taxa de juros está na estratosfera, procurando atrair o capital especulativo internacional para dentro do Brasil, isso provoca uma enxurrada artificial de dólares e essa enxurrada provoca uma valorização artificial da nossa taxa de câmbio. O que prejudica nossas importações, facilita de forma irresponsável e artificial as exportações e acaba contribuindo para aumentar o poder e a presença do rentismo nas atividades de acumulação de capital no país.

O segundo aspecto se relaciona com a forma como a dívida pública é gerida. Com a Selic nas alturas, o patamar mínimo de remuneração da dívida pública fica muito elevado e isso significa estimular a compra de produtos do sistema financeiro, inclusive dos títulos da dívida pública em função de ser uma das maiores remunerações reais do mundo. O que também acumula vento para reforçar a importância do sistema financeiro e do rentismo. Com esse nível de remuneração financeira, existe um desestímulo à atividade empreendedora no setor real, porque envolve capital de riscos, desde o momento da decisão de ampliar uma unidade fabril, iniciar um novo empreendimento, ao passo que é possível ter, da noite para o dia, a remuneração elevadíssima dos recursos, simplesmente na esfera financeira.

O Brasil segue exatamente o que está acontecendo no plano internacional: ausência total de regulação das atividades do financismo e do rentismo, que, operando pela máxima de elevar a lucratividade a qualquer custo, opera com estímulos a produtos e atividades financeiras de elevado grau de especulação.

Mecanismos para frear o rentismo

Os mecanismos que devem ser criados para retirar o Brasil das mãos dos rentismo são mecanismos de natureza política. Tem que ter a vontade política de dar um basta a essa hegemonia do parasitismo financeiro e oferecer estímulos concretos para os setores que estão interessados na produção real de mercadorias, na oferta real de serviços para a maioria da população. O Brasil faz exatamente o oposto. Ele cria dificuldades para empreendimentos reais e contínua oferecendo todas as vantagens para a atividade do rentismo.

Isto implica mudanças no mecanismo que o Banco Central utiliza para avaliar as expectativas do mercado, a pesquisa Focus, que houve apenas 160 pessoas. É o caso de ampliar, chamar os industriais, os representantes do setor de serviços, os trabalhadores, as centrais sindicais, os representantes da economia e da agricultura familiar. Também vale convocar representantes das universidades, dos institutos federais e de pesquisa que não estão alinhados com o pensamento da maioria da Faria Lima e do sistema financeiro.

É preciso criar projetos de lei e alterações no âmbito da regulamentação do Ministério da Fazenda e de outros órgãos da área econômica, que faça com que tenha a redução dos benefícios do sistema financeiro e a apresentação de outras medidas que estimulem a atividade produtiva voltada ao setor real da economia.

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