Exploração de águas subterrâneas afeta a dinâmica climática e põe em risco segurança hídrica dos brasileiros. Entrevista especial com Paulo Tarso e José Gescilam Sousa

Fenômeno ocorre com a perda histórica de vegetação nativa, com a exploração desenfreada de recursos naturais pelo agronegócio e com o desenvolvimento urbano

Arte: Marcelo Zanotti | IHU

Por: Elstor Hanzen | 25 Março 2025

Um estudo conduzido por pesquisadores brasileiros explicita a perda de vegetação nativa no Cerrado, alertando para a necessidade de políticas de contenção de danos ambientais em propriedades rurais acima de 2,5 mil hectares. Se isso for feito em 30% de grandes áreas, é possível evitar a perda de mais de 4,1 milhões de hectares de vegetação nativa, o que corresponde a 13% da perda projetada até 2070.

Essa preservação ambiental e esse cuidado na cobertura do solo, por exemplo, influenciam nas mudanças dos processos hidrológicos. “Devido à importância da região do Cerrado para a segurança hídrica, alimentar e energética, medidas de planejamento e ordenamento do uso, cobertura e manejo do solo são urgentes e necessárias”, alerta o doutor em engenharia hidráulica e saneamento pela Universidade de São Paulo (USP) Paulo Tarso Sanches Oliveira.

Em outra pesquisa, publicada na Nature Communications, Paulo Tarso e o pesquisador José Gescilam Sousa Mota Uchôa apontam que mais da metade dos rios brasileiros apresentam riscos de redução de fluxo devido ao movimento descendente da água no interior do solo em direção aos aquíferos subterrâneos. A redução das vazões dos rios pode afetar diretamente a disponibilidade de água para o abastecimento humano e a segurança energética. Para eles, os serviços ecossistêmicos brasileiros precisam agir para garantir a preservação da vida no ecossistema aquático e o equilíbrio do clima.

Na entrevista a seguir, concedida ao Instituto Humanitas UnisinosIHU por e-mail, os cientistas analisam as investigações e ressaltam a importância da preservação ambiental. Segundo eles, há necessidade de gerenciar conjuntamente as águas subterrâneas e superficiais a fim de reduzir o risco generalizado de perdas de fluxo para os aquíferos, o que pode afetar o acesso global à água e os ecossistemas que dependem dos rios.

Paulo Tarso Sanches Oliveira (Foto: Arquivo Pessoal)

Paulo Tarso Sanches Oliveira é doutor em Ciências – Engenharia Hidráulica e Saneamento pela Escola de Engenharia de São Carlos, da Universidade de São Paulo (EESC-USP). Trabalhou como pesquisador visitante na United States Department of Agriculture (USDA-ARS), é mestre em Tecnologias Ambientais – Recursos Hídricos é graduado em Engenharia Ambiental pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

José Gescilam Sousa (Foto: Arquivo Pessoal)

José Gescilam Sousa Mota Uchôa é doutorando no PPG em Engenharia Hidráulica e Saneamento (SHS-PPG) da Escola de Engenharia de São Carlos, na Universidade de São Paulo (USP). É graduado em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e em Engenharia Generalista pela École Centrale de Lille, França.

Confira a entrevista.

IHU – Há 10 anos, em entrevista ao IHU, o senhor alertava que as alterações de uso e cobertura do solo promovidas pela expansão agrícola na região de Cerrado, por exemplo, tinham potencial para afetar os serviços ecossistêmicos de vários setores do Brasil e a disponibilidade hídrica. O que houve de relevante neste campo no período e qual a realidade hoje?

Paulo Tarso Sanches Oliveira – A região de Cerrado continua passando por mudanças significativas de uso e cobertura do solo que, como relatado há dez anos, proporciona mudanças nos processos hidrológicos na região. Devido à importância da região para a segurança hídrica, alimentar e energética, medidas de planejamento e ordenamento do uso, cobertura e manejo do solo são urgentes e necessárias.

Recentemente publicamos um estudo em que utilizamos um modelo espacialmente explícito para identificar os principais fatores responsáveis pela perda de vegetação nativa no Cerrado. Em seguida, projetamos essa perda para os anos de 2050 e 2070. Também analisamos o papel do tamanho das propriedades na aplicação das complexas leis ambientais brasileiras e como isso influencia diferentes cenários de perda de vegetação.

Os resultados indicam que a proximidade de rios, estradas e cidades, o potencial agrícola, a agricultura de culturas perenes e anuais, bem como a pecuária, impulsionaram a perda histórica de vegetação. Considerando a plena implementação do atual Código Florestal, o Cerrado poderá perder 26,5 milhões de hectares de vegetação nativa até 2050 e 30,6 milhões de hectares até 2070. Essa perda deverá ocorrer predominantemente em grandes propriedades.

Para conciliar a conservação ambiental e a produção agrícola, recomendamos que as políticas públicas priorizem as grandes propriedades rurais. Em particular, a proteção de 30% das áreas em propriedades com mais de 2.500 hectares poderia evitar a perda de mais de 4,1 milhões de hectares de vegetação nativa, o que corresponde a 13% da perda projetada até 2070.

IHU – Desde quando estão ocorrendo mudanças no ciclo hidrológico nas grandes regiões hidrográficas brasileiras?

Paulo Tarso Sanches Oliveira – As alterações nos fluxos hidrológicos ocorrem de forma constante e natural, sendo principalmente influenciadas pelo clima. No entanto, atividades humanas modificam o balanço hídrico de diversas maneiras. Um exemplo claro e facilmente perceptível são as mudanças no uso e na cobertura do solo, que afetam processos como infiltração, escoamento superficial, evapotranspiração e recarga de aquíferos.

IHU – Uma pesquisa publicada na Nature Communications evidencia que mais da metade dos rios brasileiros apresenta risco de redução de fluxo devido ao movimento descendente da água no interior do solo em direção aos aquíferos subterrâneos. Qual a abrangência deste estudo e as principais conclusões?

José Gescilam Sousa Mota Uchôa – O estudo tem abrangência nacional e, por isso, aponta regiões críticas no Brasil que necessitam de mais estudos regionais e locais para compreender os fatores que influenciam a dinâmica entre rios e aquíferos. A principal conclusão do artigo é que a gestão dos recursos hídricos deve ser realizada de forma integrada, ou seja, tratando a água como um único recurso. Impactos nos aquíferos podem gerar problemas nos rios e vice-versa.

Paulo Tarso Sanches Oliveira – De todos os poços disponíveis nas bases de dados do Serviço Geológico do Brasil, a maioria possui autorização de perfuração e outorga para uso da água. Para a análise, selecionamos apenas os poços que atendiam a três critérios específicos: estarem localizados a menos de 1 km do rio mais próximo, apresentarem profundidade inferior a 100 metros e estarem inseridos em aquíferos não confinados. Após essa filtragem, a amostra final foi reduzida para aproximadamente 18 mil poços.

Assim, analisamos os níveis de água desses poços no Brasil e identificamos que a maioria deles (55%) apresenta níveis inferiores à superfície dos rios próximos. Esse padrão evidencia que os rios provavelmente perdem água para o subsolo por infiltração.

IHU – Quais as razões da chamada superexploração de águas subterrâneas que afetam a vazão de rios brasileiros?

José Gescilam Sousa Mota Uchôa – Acredito que a palavra "superexploração" pode passar a ideia de que estamos utilizando excessivamente as águas subterrâneas em todo o território nacional. Na realidade, o Brasil usa pouca água subterrânea em comparação a outros países de dimensões semelhantes. No entanto, há problemas locais.

O estudo aponta que um dos fatores que contribuem para o surgimento de rios que potencialmente perdem água para o aquífero é a exploração de águas subterrâneas nas proximidades dos cursos d'água. Atualmente, no Brasil e em grande parte do mundo não há exigência de estudos quantitativos de impacto da exploração das águas subterrâneas sobre os rios locais.

Paulo Tarso Sanches Oliveira – Os resultados evidenciam o potencial generalizado de perda de água dos rios para os aquíferos subjacentes em diversas regiões do país, especialmente onde há extração intensiva de águas subterrâneas. Ou seja, apresentamos uma visão geral da interação entre águas superficiais e subterrâneas no Brasil, destacando regiões críticas que indicam uso intenso de água subterrânea.

Além disso, a necessidade de um gerenciamento integrado dos recursos hídricos subterrâneos e superficiais, uma vez que, atualmente, essas fontes são gerenciadas de forma separada. Isso implica que, nas novas concessões de outorga para o uso da água, seria fundamental adotar uma abordagem integrada, considerando ambas as fontes de maneira conjunta.

IHU – As mudanças climáticas e a exploração excessiva de águas subterrâneas estão secando os rios no Brasil? Como e por quê?

José Gescilam Sousa Mota Uchôa – A pesquisa indica a potencialidade de rios que perdem água para o aquífero. A verificação se esses rios estão perdendo vazão precisa ser aprofundada por meio de estudos locais. No entanto, o clima é um dos fatores mais importantes na dinâmica de interação entre rios e aquíferos. Assim, regiões brasileiras que estão se tornando mais áridas podem ter, potencialmente, mais rios que cedem água para o aquífero no futuro.

IHU – Como os setores da indústria e do agronegócio afetam o sistema hídrico?

José Gescilam Sousa Mota Uchôa – Todos os setores que utilizam água podem causar impacto no ciclo hidrológico. O ideal é haver um planejamento estratégico que garanta a segurança hídrica para todos esses setores. O Brasil possui grande capacidade de expandir sua produção industrial e agrícola de forma sustentável. Nosso trabalho apenas destaca a importância de considerar as interações entre rios e aquíferos nesse planejamento estratégico.

IHU – A perfuração de poços artesianos também tem impacto importante na mudança deste ciclo hídrico?

José Gescilam Sousa Mota Uchôa – Um dos postos-chave é que a água deve ser pensada como um único recurso. Assim, quando se impacta um dos compartimentos do ciclo hidrológico, isso afeta os demais. A exploração de águas subterrâneas por meio de poços próximos a um rio, se não realizada adequadamente, pode alterar a direção do fluxo desse rio, fazendo com que ele perca parte de seu fluxo, por exemplo.

IHU – Gostaria de ressaltar mais outros pontos relevantes sobre o tema?

Paulo Tarso Sanches Oliveira – A redução das vazões dos rios pode afetar diretamente a segurança hídrica, diminuindo a disponibilidade de água para o abastecimento humano e a segurança energética. Ao reduzir o volume de água nos reservatórios, isso afeta a geração de energia, a segurança alimentar e a diminuição de água disponível para irrigação e dessedentação animal, por exemplo. Os serviços ecossistêmicos, já que é fundamental manter uma vazão mínima nos rios, precisam agir para garantir a preservação da vida no ecossistema aquático.

José Gescilam Sousa Mota Uchôa – Mais estudos precisam ser realizados para entender as dinâmicas de interação entre rios e aquíferos, bem como os impactos das mudanças climáticas e dos usos da água nessas dinâmicas. Para isso, é necessário investir em monitoramento. O Serviço Geológico do Brasil vem realizando um trabalho excelente, mas essa instituição pública precisa de mais investimento para expandir sua rede de monitoramento de águas subterrâneas.

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