"Muitos dos enredos que as escolas trazem para a Avenida têm uma dimensão utópica de como o mundo deveria ser e de como seria bom que a vida fosse, e não de como ela realmente é", afirmam os antropólogos
A crescente "presença da religião" como tema central dos enredos das escolas de samba indica o "uso mais consciente do religioso como contraponto à intolerância religiosa que vem se agravando no Brasil", dizem os antropólogos Renata de Castro Menezes e Lucas Bártolo. Segundo eles, que pesquisam a relação entre cultura e religião, "as escolas materializam e performam tradições religiosas não apenas para lhes dar legitimidade e visibilidade, mas principalmente porque estas fazem parte da realidade de grandes parcelas da população brasileira".
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, eles pontuam que "carnaval e religião são, há muitas décadas, dimensões fundamentais da vida social de parte significativa da população do Rio de Janeiro, em sua maioria negra e pobre. Uma população que por meio dos terreiros - de samba e de santo - produziu territorialidades, pertencimentos e experiências de arrebatamento num contexto de diáspora".
Nesse sentido, explicam, "os enredos das escolas de samba podem ser entendidos como uma espécie de repositório ou de catálogo de temas afro-brasileiros, no sentido de reunião, preservação e valorização desses temas. Como são religiões de tradição oral, iniciáticas, onde muitas vezes o conhecimento é circunscrito ao grupo mais antigo e transmitido oralmente, as escolas de samba, ao trazerem essas religiões para avenida, conseguem reproduzir registros não apenas textuais de seu repertório mítico e de preceitos".
Renata Menezes (Foto: Arquivo pessoal)
Renata Menezes é graduada em História, mestre e doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. É professora do Departamento de Antropologia do Museu Nacional, onde atua como docente no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Coordena o Laboratório de Antropologia do Lúdico e do Sagrado - Ludens e é integrante do Núcleo de Estudos das Sociedades Complexas - NESCOM.
Lucas Bártolo (Foto: Arquivo Pessoal)
Lucas Bártolo é graduado em Ciências Sociais pela UFRJ e mestre em Antropologia Social pelo Museu Nacional da UFRJ, onde cursa doutorado. É membro do Grupo de Pesquisa em Antropologia da Devoção - GPAD, do Ludens e do Instituto de Estudos da Religião - ISER.
Ambos são organizadores, juntamente com Morena Freitas, da coletânea Doces Santos: devoções a Cosme e Damião (Rio de Janeiro: Museu Nacional, 2020).
A obra está disponível para download aqui.
IHU - O que o carnaval demonstra sobre o modo do brasileiro enfrentar e lidar com as crises e dificuldades sociais? Em particular, o que o carnaval deste ano revela depois de dois anos de pandemia, sofrimento, crise social, com aumento do desemprego e da fome, e a situação política?
Renata Menezes e Lucas Bártolo - Atribui-se ao compositor Beto Sem Braço a frase perspicaz “O que espanta miséria é festa!”, que circula como um provérbio no mundo do samba. Em diálogo com esta ideia, Luiz Antônio Simas, historiador, professor e especialista em carnaval, costuma dizer que fazemos festa não porque a vida é fácil, mas justamente o contrário, fazemos porque ela é bem difícil. Trata-se de uma formulação aparentemente banal que, no entanto, se revela bastante complexa, pois nos leva a refletir sobre o papel do lúdico, da alegria, da felicidade, do compartilhamento de experiências e das celebrações na vida social. É preciso lembrar que as festas não existem apenas no Brasil, portanto, podemos estar diante de modos mais universais, relacionados à própria humanidade, de lidar com a existência e seus desafios.
Especificamente quanto ao carnaval, muitas vezes ele é visto como algo catártico, um ritual em que as pessoas extravasam suas tristezas e frustrações e, na Quarta-feira de Cinzas, a rotina, com suas contradições e desafios, retorna ao que era antes. Ao ser visto apenas como “válvula de escape”, o carnaval pode ser considerado algo alienante, que “mascara” a dureza da vida, um desperdício de tempo, dinheiro, energia social. Chega a ser condenado pela sujeira, pelo desregramento, pela licenciosidade que provoca. Mas ao analisar o fenômeno mais de perto, vemos que ele é bem mais que isso, pois tem, ao mesmo tempo, implicações econômicas, artísticas, culturais, políticas etc. - um fato social total, como diria o antropólogo Marcel Mauss (1872-1950). E sua dimensão de crítica social sempre se faz presente.
A pandemia afetou nos últimos anos não apenas os carnavais, mas todo o calendário de festas populares. Pelo peso cultural, simbólico, de ordenamento social desses eventos, suspendê-los não é algo tão simples, pois é o próprio ciclo da vida que parece estar sendo desviado de seu curso. É como se a noção de temporalidade entrasse em suspensão, pois as festas dão ritmo, demarcam o fluxo do tempo, atribuindo-lhe qualidade diferenciada.
A retomada das festas é uma das formas de reorganizar a vida pós-pandemia, ou melhor, pós-vacina, já que o vírus ainda circula. As festas e outras celebrações permitem ritualizar e elaborar o luto, a dor, as perdas sofridas nesse período e retomar o calendário. No carnaval carioca, vimos muitas homenagens aos sambistas vitimados pela Covid-19, bem como possibilidades de carnavalização da pandemia em enredos de escola de samba e fantasias de bloco de rua. Sem falar na retomada da cadeia produtiva da festa, que se aquece não apenas nos dias de folia, mas ao longo de todo o ano, graças às diferentes etapas de sua preparação. Afinal, o carnaval movimenta muito recursos e gera incontáveis empregos.
Há todo um cuidado de pesquisadoras e pesquisadores em registrar a complexidade desses rituais no período pandêmico, como contraponto a alguns discursos defendidos no debate público após o decreto da pandemia, de que não se deveria pensar em festa em um momento de grande sofrimento e perdas. Se o isolamento físico foi uma necessidade imperativa para deter o avanço do vírus, a saudade de parentes e amigos e a carência do convívio social também marcaram o período. E foram inúmeras as formas criativas ensaiadas para “estar junto sem estar perto”, seja utilizando janelas, carros, ou a mediação de recursos tecnológicos, como tablets, celulares e outros recursos. Houve, inclusive, adaptações das festas tradicionais. Nesse sentido, registramos a importância do livro “A falta que a festa faz”, organizado pelas antropólogas Maria Laura Cavalcanti e Renata de Sá Gonçalves, no qual participamos, que traz relatos sobre o impacto da Covid-19 em 21 celebrações populares e os esforços dos festeiros para adaptá-las ao novo contexto.
(Foto: Divulgação)
IHU - No artigo intitulado "Religião e Cultura no Carnaval 2022", vocês destacam a presença da "religião como tema central" dos enredos de algumas escolas de samba não somente no carnaval deste ano, mas nos últimos. O que isso indica sobre a cultura e a religiosidade brasileira?
Renata Menezes e Lucas Bártolo - O carnaval das escolas de samba, que é o Carnaval que analisamos em nosso artigo e o que temos pesquisado no Rio de Janeiro (pois as modalidades de carnaval no Brasil são muitas e diversas), é uma competição. Trata-se de atingir a excelência em um desfile cujo objetivo é contar uma história, baseada em um enredo, através de múltiplas formas expressivas e em movimento. Ele começou a se organizar nas décadas de 1920 e 1930 e, ao longo desses quase 100 anos de existência, envolveu a religião de muitas formas, seja na letra dos sambas, seja em fantasias e alegorias, seja como tema do desfile.
A presença da religião a que nos referimos no artigo, que estamos “descobrindo” em nossa pesquisa, é uma presença específica, como tema central dos enredos, num processo que começa na segunda metade dos anos 2000, de uso mais consciente do religioso como contraponto à intolerância religiosa que vem se agravando no Brasil - e que é muito forte no Rio de Janeiro. Uma demonstração disso pode estar na concentração de enredos centrados em temas religiosos nos últimos anos. Se enredos religiosos tinham sido intermitentes, apresentados de forma pontual no grupo Especial da Marquês de Sapucaí, a partir de 2016 não houve um carnaval sem que ao menos uma das escolas desse grupo tomasse a religião como tema central. Neste início de século, passaram pela avenida 20 enredos centrados em temas religiosos, sendo 14 só nos últimos seis carnavais.
Porém, é preciso lembrar que as escolas materializam e performam tradições religiosas não apenas para lhes dar legitimidade e visibilidade, mas principalmente porque estas fazem parte da realidade de grandes parcelas da população brasileira.
Como é desfilar e assistir aos desfiles das escolas de samba do carnaval do Rio?
Beija-Flor de Nilópolis - Carnaval 2022 - Samba 01
Exú não é demônio/Grande Rio inédita/Comissão de frente/react ogan Helder carnaval
IHU - Qual é o peso da cultura e religiosidade afro no carnaval e na elaboração dos enredos?
Renata Menezes e Lucas Bártolo - A religiosidade afro-brasileira é parte do contexto cultural das escolas de samba. As escolas (instituições sociais do samba) e as casas das religiões de matriz africana sempre tiveram adeptos em comum e, portanto, compartilham formas de sociabilidade, moralidades e imaginários. Carnaval e religião são, há muitas décadas, dimensões fundamentais da vida social de parte significativa da população do Rio de Janeiro, em sua maioria negra e pobre. Uma população que por meio dos terreiros - de samba e de santo - produziu territorialidades, pertencimentos e experiências de arrebatamento num contexto de diáspora.
Tanto as agremiações pioneiras quanto as mais novas são consagradas à proteção de um orixá ou entidade do panteão afro-brasileiro, associados também a santos católicos. As festas dos padroeiros são datas importantes no calendário das escolas, assim como a Lavagem da Sapucaí, o ritual de preparação para a festa, feito por associações religiosas e carnavalescas.
Além disso, a religião está presente em todo o processo de preparação de um desfile, como Bártolo tem demonstrado em seus trabalhos. Seja no Barracão, onde alegorias e fantasias são preparadas através de técnicas aprendidas na produção de rituais religiosos, seja em rituais que garantem proteção para a realização da festa, seja no próprio desfile.
Nos desfiles, a religiosidade afro se faz presente de muitas maneiras. Na concentração, por exemplo, onde as escolas se armam para entrar na Avenida, proteções e invocações religiosas são muito comuns, embora não apenas afro. Outra forma de presença, talvez a principal simbolização dessa relação, está na ala das baianas, uma ala obrigatória no cortejo de cada escola, remetendo às matriarcas do samba. Poderíamos lembrar também do toque característico de certos instrumentos da bateria de algumas escolas, que seriam influenciados pelo toque ritual dos orixás patronos - como notaram Luiz Antônio Simas e Nei Lopes no Dicionário da História Social do Samba. Mas a forma mais evidente, isto é, mais explícita, é como enredo (tema dos desfiles).
(Foto: Divulgação)
Os enredos das escolas de samba podem ser entendidos como uma espécie de repositório ou de catálogo de temas afro-brasileiros, no sentido de reunião, preservação e valorização desses temas. Como são religiões de tradição oral, iniciáticas, onde muitas vezes o conhecimento é circunscrito ao grupo mais antigo e transmitido oralmente, as escolas de samba, ao trazerem essas religiões para avenida, conseguem reproduzir registros não apenas textuais de seu repertório mítico e de preceitos. Dizemos não apenas textuais porque as escolas de samba trazem essas referências em suportes e formatos variados: no toque das baterias, na visualidade de alegorias e fantasias, ou “incorporados” nas pessoas que compõem a escola - incorporados no sentido de fazer parte do corpo, dos gestos, das maneiras de habitar o mundo.
IHU - Outras manifestações religiosas também são expressas no carnaval? Elas dialogam entre si?
Renata Menezes e Lucas Bártolo - Nos desfiles, prevalecem referências ao universo afro-brasileiro, primeiramente, mas também ao católico e ao indígena, embora outras tradições religiosas sejam abordadas em enredos específicos. Nos últimos anos, por exemplo, a Portela contou a história de imigrantes judeus refugiados no Recife holandês e a Mocidade dedicou um desfile inteiro a falar sobre o hinduísmo, em um enredo que buscava aproximações entre Índia e Brasil. As escolas de samba, especialmente a Liga das Escolas de Samba (LIESA), também possuem relações com a Igreja Católica e a Arquidiocese do Rio de Janeiro participa da Lavagem da Sapucaí, embora não sejam raras as reações críticas de católicos à presença de referências cristãs nos enredos.
Portela enredo 2018
Portela lança enredo sobre a saga de imigrantes em busca de liberdade e paz
Mocidade aposta em enredo patrocinado sobre a Índia para o Carnaval 2018
Se a religiosidade afro-brasileira é preponderante nesse universo, a Lavagem da Sapucaí e o desenvolvimentos de enredos como esses da Portela e Mocidade têm propiciado articulações interessantes das escolas de samba junto a diferentes segmentos religiosos no combate à intolerância religiosa.
Pouco representados nos discursos performados na avenida, há que se registrar ainda a presença evangélica entre os trabalhadores nos barracões das escolas, para quem o carnaval não é mais do que trabalho e meio de vida.
Num sentido mais amplo, se entendemos o carnaval como o conjunto de festejos que antecedem o início da Quaresma, e não apenas as escolas de samba, podemos considerá-lo o período de relaxamento, excesso e licenciosidade antes do período austero e ascético que antecede a morte e ressurreição de Jesus – e, portanto, com referências ao Cristianismo. Em muitas latitudes, o carnaval se encontra presente por essa associação com o ciclo do calendário cristão. No caso do Brasil, a associação entre carnaval e Quaresma permanece em alguma medida, havendo inclusive uma relação com períodos de fechamentos dos terreiros. Curioso é que, por sua vez, as origens do carnaval no cristianismo são apresentadas como “sobrevivências de festejos pagãos”, de excessos sexuais e alimentares. Nessa escala milenar e global de tempo e espaço, o carnaval assume os contornos de um princípio universal de licenciosidade importante para questionar e desnaturalizar regras sociais.
IHU - Apesar de o carnaval ser celebrado como festa nacional, uma parte da sociedade o ignora, dando a outras festas regionais maior destaque e importância como manifestação cultural. Em que regiões isso é mais frequente e a que atribui esse fenômeno?
Renata Menezes e Lucas Bártolo - O Brasil é um país grande e diverso, do ponto de vista geográfico e ambiental (mais de um fuso horário, acima e abaixo do Equador, vários biomas), demográfico e cultural. Essa diversidade é muito positiva, ela é um sinal de complexidade e vitalidade, da possibilidade de existência de diferenças, de pluralidade. Portanto, as regiões do país têm composições heterogêneas, temporalidades particulares e especificidades. Nossa Constituição Federal reconhece a diversidade cultural como um direito e um valor a ser preservado.
Essa diversidade manifesta-se em todas as regiões e muitas festas se relacionam - há profissionais do “encanto” que participam de várias delas, como pode haver a mesma manifestação em vários locais do país em épocas diferentes. Portanto, as festas populares se articulam em diferentes escalas, mobilizando agentes e repertórios variados. E estabelecem relações com os calendários que organizam as unidades que as celebram.
Assim, por exemplo, as festas juninas no Nordeste, remetendo às tradições do Hemisfério Norte do solstício de verão e de celebração da fertilidade, são reinterpretadas como festas do solstício de inverno, e coincidem na região com a época da colheita do milho (plantado nas chuvas de março, de São José), produto que vai marcar a fartura da cozinha típica da ocasião. O Boi de Parintins, a Festa do Divino no Maranhão, a Semana Santa em Minas Gerais e Goiás, as Festas do Divino em diversas localidades, e muitas outras, compõem um mosaico que atesta o caráter multifacetado das manifestações culturais no país.
Evitando uma romantização excessiva desses eventos, lembramos que sua articulação com a indústria do turismo contribuiu para uma tipificação regional das maneiras de festejar e para a realocação das comemorações no calendário anual, facilitando a participação de visitantes (e de artistas e trabalhadores) em vários deles.
IHU - Muitos analistas chamam a atenção para o ódio, a violência e a intolerância que se manifestam na sociedade brasileira, a ver pelos índices de violência que crescem a cada ano, mas também pelos discursos correntes. De outro lado, o carnaval manifesta, como vocês destacaram no artigo, a africanidade, ancestralidade, religiosidade, brasilidade, sincretismo, resistência, tolerância e respeito. Como essas duas realidades se interrelacionam no âmbito pessoal e social na cultura do país?
Renata Menezes e Lucas Bártolo - Podemos considerar que a intolerância religiosa se conforma como um dos graves problemas públicos brasileiros, afinal, trata-se de ameaça à liberdade religiosa, garantida pela Constituição de 1988. Isso não é propriamente novidade, pois condenações religiosas, conflitos e perseguições são parte constitutiva de nosso processo histórico, visto que, ao longo da história, a hegemonia do Catolicismo como religião nacional foi garantida pela repressão violenta a outras ontologias e cosmologias. Entretanto, vemos nas últimas décadas a escalada de ataques físicos e simbólicos.
A imensa maioria dos casos de intolerância atinge lugares de culto e adeptos de religiões afro-brasileiras, mesmo que, em segundo plano, existam ataques a outras religiões. E, embora possam envolver outros segmentos, os ataques são perpetrados na maioria das vezes por grupos de perfil evangélico-pentecostal.
Frente a agressões sucessivas, os povos de terreiro, juntamente com movimentos negros, outros movimentos sociais e a sociedade civil, têm se mobilizado de diversas maneiras. Denúncias, pressões aos agentes públicos pela criminalização inequívoca destas ações, articulação junto a bancadas legislativas e comissões de defesa de direitos, campanhas, fóruns, debates, atos e passeatas de protesto são algumas das formas de luta que envolvem a demanda pelo reconhecimento da relevância cultural, histórica, política e econômica das religiões afro-brasileiras e da presença negra na sociedade nacional.
As escolas de samba são, simultaneamente, um lugar privilegiado para perceber essas tensões e para entender as formas de resistência e oposição a elas. Consideradas tipicamente brasileiras – mesmo que internacionalizadas - e, por sua origem e composição, vinculadas às religiões afro, o interesse por elas, da parte de evangélicos e católicos, aumenta, seja para nelas se fazerem presentes, tornando-as instrumentos de evangelização, seja para proibi-las ou para moralizá-las. Em diálogo com pesquisadores como Edlaine Gomes, Martijn Oosterbaan, Adriano Godoy, dentre outros, temos explorado como as escolas de samba não apenas são disputadas, mas se posicionam no jogo, ao produzirem, através da performance de seus enredos na Avenida, interpretações sobre o país, sua cultura e suas religiões. Procuramos destacar a dimensão performativa das escolas como agentes na veiculação de representações, ou de imaginações, sobre o Brasil.
IHU - Vocês associam o "aumento dos enredos de temáticas religiosas" "à reconfiguração pela qual passa o campo religioso brasileiro" nos últimos anos. Pode explicar em que consiste essa reconfiguração e dar exemplos de como ela se expressa na composição dos enredos de carnaval?
Renata Menezes e Lucas Bártolo - Como começamos a explicar na pergunta anterior, essa reconfiguração pode ser entendida em termos da mudança religiosa e tudo que a acompanha. Uma mudança religiosa que é perceptível, em dados percentuais e absolutos, através dos censos e que se caracteriza desde o censo de 1980 pela diminuição de católicos, é o crescimento dos sem religião, o aumento das opções religiosas e, principalmente, o crescimento evangélico.
Mas esses grandes blocos censitários são fotografias panorâmicas do cenário nacional: é preciso descer a uma escala mais próxima ao cotidiano para compreender mudanças mais profundas, isto é, a forma pela qual a religião se conecta à totalidade da vida social. Lembremos que numa sociedade como a brasileira, em que a ideia de identidade nacional sempre esteve associada à de religião (mesmo que isso não seja um ponto pacífico), as mudanças religiosas relacionam-se com transformações em formas de sociabilidade, em interpretações da história do Brasil, em conteúdos de ensino, bem como na concepção do que seria a cultura nacional.
Não se trata necessariamente de uma relação de causa e efeito. O que queremos dizer é que há afinidades eletivas entre religião e cultura. A pesquisa busca entender esses processos, e de que maneira essas mudanças se dão de forma intencional, bem como qual o grau de controle que os agentes mantêm nas mudanças que pretendem provocar, ou na percepção que têm do que estão vivendo.
IHU - Como as disputas sociais e políticas que estão na área pública são retratadas no carnaval e de que modo a própria festa é "capaz de produzir inflexões significativas no debate público e no imaginário social", como sugerem no artigo?
Renata Menezes e Lucas Bártolo - A crítica social é uma constante no carnaval, seja sob a forma de crônica do cotidiano, seja como denúncia de injustiças, seja pela homenagem a personagens esquecidos da história e das artes nacionais, ou ainda na apresentação de modelos sociais mais justos, harmônicos e belos na Avenida - isto é, projetos utópicos. Só que a linguagem das escolas não é principalmente referencial ou denotativa, isto é, seu objetivo principal não é a comunicação de informações. Os desfiles assumem a linguagem poética e alegórica, visando produzir arrebatamento e uma experiência sinestésica, jogando com formas, cores, sons, texturas e cheiros para provocar a emoção e a adesão da plateia. Ou seja, embora sejam profundamente implantadas na realidade e bastante afetadas por ela, as escolas de samba não têm compromisso com o realismo. Os enredos são discursos a partir da realidade, em diálogo com a realidade, mas não uma análise de conjuntura.
Isso tem nos estimulado a investigar que modalidade discursiva peculiar é essa, quais seus recursos e quais os efeitos que ela provoca. Qual a sintaxe carnavalesca, em que fragmentos da realidade são reorganizados de forma evocativa, a partir de uma determinada poética, de modalidades artísticas. Não se trata de fraqueza, pelo contrário: é força, é uma capacidade singular de mobilizar o sensório e o emocional, e, dessa forma, as escolas conseguem afetar, atingir, mobilizar os espectadores muito mais do que outras modalidades discursivas. A sua dimensão de denúncia é articulada a mediações estéticas. Por isso a maneira de se posicionar contra a intolerância religiosa vem revestida pela estética carnavalesca, de brilho, de plasticidade, demonstrando publicamente a sociedade violenta e excludente que somos e a sociedade pulsante e criativa que também somos. As escolas de samba colocam na Avenida as nossas ambiguidades, ambivalências e contradições: nosso melhor e nosso pior.
Além disso, como já mencionamos, muitos dos enredos que as escolas trazem para a Avenida têm uma dimensão utópica de como o mundo deveria ser e de como seria bom que a vida fosse, e não de como ela realmente é. O carnaval não representa a realidade como se a espelhasse, mas oferece um discurso alegórico a seu respeito. As escolas de samba em seus desfiles não apenas refletem o Brasil, elas o interpretam e o reinventam.
Para nós, como analistas, antropóloga e antropólogo, interessa justamente pensar essa relação, entre uma sociedade que é violenta e excludente e, ao mesmo tempo, capaz de produzir uma manifestação artística como as escolas de samba.