11 Dezembro 2012
"É bom ver o jogo confortavelmente na Arena do Grêmio; é bom ter um camarote climatizado; é bom ter uma área verde no coração de Madureira; é bom um elevador que facilite a acessibilidade ao Cantagalo; é bom ter bicicletas disponibilizadas por bancos (uso, propositalmente, os cínicos jargões empresariais deste processo); é bom ver o porto maravilha ser a porta de entrada do Rio de Janeiro...", escreve Luiz Antonio Simas, mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, em artigo publicado em no blog Histórias Brasileiras, 09-12-2012.
Segundo ele, "o processo de morte do futebol como cultura reduz o jogo ao patamar de mero evento. Contamina, inclusive, o vocabulário, que perde as características peculiares do boleiro e se adequa ao padrão aparentemente neutro do jargão empresarial. O craque se tranforma em "jogador diferenciado", o reserva é a "peça de reposição", o passe vira "assistência", o campo é a "arena multiuso" e o torcedor é o "espectador".
"A perversidade suprema é matar a nossa cultura sorrindo - conclui Simas - e nos fazer sorrir também, como clientes satisfeitos de um futebol-produto, de um bairro-playground, de uma cidade-condomínio, de um jogo-espetáculo. Assistiremos, aplaudindo, a simulacros festivos do que não é mais o nosso pertencimento, seduzidos pelas fanfarras alegres do nosso próprio - e lindíssimo - velório".
Eis o artigo.
Ontem, com a inauguração cheia de salamaleques da nova arena do Grêmio, foi dado mais um passo no processo sinistro de gentrificação dos estádios de futebol no Brasil. Uso gentrificação no sentido dado ao termo pelos estudos pioneiros de Ruth Glass e Neil Smith; aquele que, grosso modo, designa um processo de aburguesamento de espaços nas grandes metrópoles e gera o afastamento das camadas populares do local modificado. O espaço gentrificado passa a ser gerido prioritariamente pelos interesses do mercado financeiro, do grande capital e quejandos. Este processo de submissão ao capital é, em geral, acompanhado de discursos legitimadores que vão desde o "tratamento ecologicamente correto" até o da "gestão financeira responsável".
Não acho que o futebol seja um espetáculo, uma brincadeira, um jogo ou uma guerra; ele pode ser tudo isso e muito mais. Futebol no Brasil é cultura, pois consolidou-se como um campo de elaboração de símbolos, projeções de vida, construção de laços de coesão social, afirmação identitária e tensão criadora, com todos os aspectos positivos e negativos implicados neste processo. Nossas maneiras de jogar bola e assistir aos jogos dizem muito sobre as contradições, violências, alegrias, tragédias, festas e dores que nos constituiram como povo.
O processo de morte do futebol como cultura reduz o jogo ao patamar de mero evento. Contamina, inclusive, o vocabulário, que perde as características peculiares do boleiro e se adequa ao padrão aparentemente neutro do jargão empresarial. O craque se tranforma em "jogador diferenciado", o reserva é a "peça de reposição", o passe vira "assistência", o campo é a "arena multiuso" e o torcedor é o "espectador". As conquistas não são mais comemoradas em campo; mas em eventos fechados, sob a chancela de patrocinadores e com a participação do "torcedor virtual", aquele chamado a se manifestar pelas redes sociais a partir do que verifica nas telas da televisão.
Mais grave é constatar que o exemplo do futebol não é a exceção. A regra é gentrificar. Como carioca, este é um processo que talvez me espante e entristeça mais, já que a cidade do Rio vive a mais agressiva gentrificação de sua história recente. Penso nas arenas futebolísticas e acho inevitável comparar com o famoso Parque Madureira, com o elevador do Cantagalo, com o projeto de revitalização da zona portuária e similares. O discurso do embelezamento urbano, do ecologicamente correto, da dignidade do morador, é acompanhado da especulação vigorosa e proposital do solo urbano e da ruptura criminosa de laços comunitários, com a saída de uma população que não consegue mais pagar o aluguel ou não tem como adquirir o imóvel na área embelezada. Há ainda um discurso hegemônico na mídia que glorifica o embelezamento e esconde as contradições sociais que ele traz. A limpeza social é silenciosa, enquanto a limpeza urbana toca seus tambores, se apropria de códigos do que ela mesma destrói e domina, pela propaganda, os corações e mentes.
Tenho me referido a este processo nocivo como "perversidade do bem", e é ele hoje uma das mais ardilosas estratégias de submissão do homem aos ditames dos grandes interesses corporativos. É bom ver o jogo confortavelmente na Arena do Grêmio; é bom ter um camarote climatizado; é bom ter uma área verde no coração de Madureira; é bom um elevador que facilite a acessibilidade ao Cantagalo; é bom ter bicicletas disponibilizadas por bancos (uso, propositalmente, os cínicos jargões empresariais deste processo); é bom ver o porto maravilha ser a porta de entrada do Rio de Janeiro... Mas é de uma perversidade assassina, castradora, higienista, desarticuladora de laços comunitários, fria como um museu virtual, adequada ao delírio dos corretores de imóveis, moldada ao gosto dos velhos conservadores que sonham com as europas e os playboys reacionários que desejam as miamis e califórnias. É bom e não é para todos. É perverso quando se apropria dos ícones de um local e louva estes ícones para destruí-los ou submetê-los (como acontece hoje na minha cidade) aos interesses do mercado.
A perversidade suprema é matar a nossa cultura sorrindo e nos fazer sorrir também, como clientes satisfeitos de um futebol-produto, de um bairro-playground, de uma cidade-condomínio, de um jogo-espetáculo. Assistiremos, aplaudindo, a simulacros festivos do que não é mais o nosso pertencimento, seduzidos pelas fanfarras alegres do nosso próprio - e lindíssimo - velório.
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A perversidade do bem - Instituto Humanitas Unisinos - IHU