Teólogo comemora a canonização do religioso e diz que sua história tem muito a nos ensinar sobre viver tempos difíceis e construir novos caminhos
“Como místico e mestre na oração, Charles de Foucauld também foi um mensageiro da esperança. E o foi precisamente porque era aberto à ressignificação da sua vida, sempre que necessário”. É assim que o teólogo Carlos Roberto dos Santos define o místico que teve sua canonização anunciada em maio. Para ele, em meio a tanta nebulosidade e medo que temos vivido nesses tempos de pandemia, buscar a inspiração em De Foucauld para ressignificação da vida pode ser uma saída. “O exemplo do irmão Charles nos ajuda a olhar para os efeitos da pandemia, compreendendo que somos pobres, pequenos e frágeis. E mais ainda, por questão de sobrevivência, precisamos ser menos egoístas e mais solidários com aqueles que têm menos e precisam mais. A bondade (não a hipocrisia) e o cuidado uns dos outros e da nossa casa comum precisam voltar a fazer parte de nossas vidas”, observa, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Santos ainda reflete sobre o verdadeiro dilema que a covid-19 impôs à humanidade sobre a ideia de progresso, num avanço desenfreado que tem nos feito ir adiante, mas sem respeitar o planeta e todas as suas formas de vida. “Tudo o que estamos vivendo nos obriga a repensar a ordem de organização mundial. Como desenvolver um mundo novo, pautado não somente pela economia, mas principalmente pelo relacionamento humano: com Deus, consigo mesmo, com o outro (irmãos e irmãs, inclusive os diferentes) e com toda a natureza”, provoca.
Por isso, não considera acaso o Papa Francisco canonizar um religioso como De Foucauld, que se alinha aos mais pobres, respeita as diferenças e culturas e, mesmo num contexto de muita dor e morte, é capaz de imaginar uma vida melhor. “Papa Francisco é um arauto da esperança, como o foi o Padre De Foucauld. Contra todos os sinais de morte, presentes atualmente em nossa sociedade, onde vidas consideradas não úteis são descartadas, com certeza, ambos nos mostram que a esperança nos embala: um mundo novo, justo, solidário e fraterno é possível”, resume.
Carlos Roberto dos Santos (Foto: Arquivo pessoal)
Carlos Roberto dos Santos é padre, mestre em Teologia pelo Intitut Notre Dame de Vie - França (agregado à Pontifícia Faculdade Teológica Teresianum de Roma). Atualmente é o responsável nacional da Fraternidade Sacerdotal Jesus Caritas, no Brasil, secretário do Sub-regional de Botucatu (Sul1), professor de Teologia Moral na Faculdade João Paulo II - Fajopa, em Marília/SP e pároco na Paróquia São Pedro apóstolo de Tupã, em São Paulo.
IHU On-Line – O que representa a canonização de Charles de Foucauld?
Carlos Roberto dos Santos – No dia 27 de maio de 2020, fomos surpreendidos com esta boa notícia: o papa Francisco aprovou uma cura inexplicada, apresentada pela Congregação para a Causa dos Santos. Esta cura teve a intercessão do Bem-aventurado Charles de Foucauld e abre as portas à sua canonização. O reconhecimento da santidade do padre Charles de Foucauld, pela Igreja, é uma boa notícia para todos nós que seguimos suas intuições espirituais, mas também para todos os cristãos. Doravante, após a cerimônia de canonização, ele será considerado modelo de vida cristã a ser seguido.
Na verdade, já o era há muito tempo. Apesar de nem sempre ser compreendido em vida, ele já provocava admiração pelo seu modo radical de viver para o seu Bem-amado Jesus Cristo. O odor de santidade paira sobre ele desde sua morte, ocorrida em Tamanrasset (Saara argelino), há 104 anos, mas agora tem o reconhecimento oficial da Igreja.
Imediatamente após sua morte, a maneira dele viver sua amizade com Jesus e, por causa de Jesus e do Evangelho, com os irmãos mais pobres, chamou atenção do mundo e inspirou não somente o nascimento da Congregação dos irmãozinhos e das irmãzinhas de Jesus, como também muitas outras instituições religiosas. A Fraternidade Sacerdotal Jesus Caritas também nasceu bebendo nesta fonte espiritual, seguindo suas intuições e ajudando padres diocesanos a viverem este itinerário de santidade. Seguindo as inspirações espirituais do Irmão Charles de Foucauld, em nossos presbitérios, em união com nossos bispos, buscamos viver o encontro íntimo com Jesus na Eucaristia, na adoração ao Santíssimo Sacramento, numa vida fraterna e solidária com outros irmãos padres, num modo simples de viver a vida sacerdotal, e assumindo o compromisso de servir os que estão nos últimos lugares, nas periferias existenciais da vida.
IHU On-Line – O Papa Francisco canoniza Charles de Foucauld num tempo de muita incerteza, medo e desesperança. Que relação podemos estabelecer entre esse ato do pontífice e os tempos que temos vivido?
Carlos Roberto dos Santos – A pandemia causada pela covid-19, paradoxalmente, inaugurou um kairós para a humanidade, e particularmente no Brasil. Levou-nos a pensar mais profundamente sobre o sentido de nossa vida. O rápido contágio e alto número de mortes é assustador. Muitos destes acontecimentos foram mascarados pelas autoridades, mas não conseguiram e nem conseguirão escondê-los por muito tempo.
O mistério da vida segue seu curso. Estes acontecimentos ligados à pandemia acabaram desmascarando a lógica perversa da sociedade em que vivemos, pautada pela ilusão no poder do dinheiro, do prazer e do bem-estar. Nossa sociedade é excludente: de um lado, exagera no sonho do sucesso e no marketing da beleza aparentemente perfeita, onde o Shopping Center se tornou a grande catedral e o lugar do “culto ao deus” consumismo. Por outro lado, pratica a necropolítica em função do capital e banaliza a vida, gerando “vidas severinas”, que morrem antes do tempo nas encruzilhadas do mundo. E ainda ignora, sistematicamente, o sofrimento humano, pois optou-se por escondê-lo, sob a égide ideológica da meritocracia: “vencer na vida” a todo custo, conforme os ideais de liberdade, consumismo, hedonismo e do culto à beleza física. E assim, porque não lhe interessa mais, nossa sociedade vai deixando muitas vidas caídas à margem, quando não mortas. A covid-19 trouxe toda esta falsidade à tona.
Charles de Foucauld foi um homem da esperança. Ele viveu intensamente buscando a verdade. Mesmo nos momentos em que errou, sempre estava buscando fundamentos sólidos para sua existência. Quando jovem, foi rebelde e buscou sua realização em lugares errados. Machucou-se existencialmente, como ele mesmo diz:
“minha fé estava completamente morta... durante doze anos eu vivi sem nenhuma fé ... sem negar e sem acreditar em nada, sem esperanças na verdade e nem mesmo acreditando em Deus, pois nenhuma prova me parecia óbvia o suficiente. Vivi como se pode viver quando a última centelha da fé se extinguiu”. (Carta a Henry de Castries, 14 agosto de 1901).
Adulto, procurando encontrar-se, encontrou-se no outro. Vendo os muçulmanos rezarem com tanta fé, tanto zelo, tanta fidelidade, sentiu o vazio em seu coração: como poderia aquele povo rezar assim se Deus não existisse? Tinha que existir um Deus! Mas Charles não acreditava nisso. Essa inquietação fez brotar uma oração pura em seu coração, que o acompanhou dali para frente:
“Deus, se o Senhor existe, faça com que eu Te conheça!”
Esta abertura e coragem para mudar de rumos, marcou profundamente o itinerário de sua vida. Em Paris, ele falou dessas dúvidas e incertezas que povoavam seu interior com sua prima e grande amiga, Maria de Bondy. Como um anjo que Deus coloca em nossas vidas, ela soube orientá-lo para conversar com um homem de Deus, excelente diretor espiritual, o Padre Henri Huvelin. E ali aconteceu o milagre da conversão. Em vez de conversar sobre religião, Padre Huvelin o convenceu a ajoelhar-se e a confessar-se, e logo depois lhe deu a comunhão. Charles mudou de vida naquele instante. Deste acontecimento, ele mesmo diz:
“No mesmo momento que acreditei em Deus, compreendi que não poderia ter outra atitude que não fosse a de viver somente para ele: minha vocação religiosa data do mesmo instante que minha fé: Deus é tão grande! Há uma grande diferença entre Deus e tudo o que não é Ele”. (LAFON, 2011, p. 15).
E, depois desse encontro, o Irmão Charles de Foucauld passou sua vida tentando imitar este Jesus de Nazaré, por quem se apaixonou perdidamente. Imitou-o a ponto de ir ao mais profundo da miséria humana, para estar a serviço dos pequenos e dos pobres, dos que estavam nos últimos lugares da vida.
Nós, que pertencemos à família espiritual de Charles de Foucauld, compreendemos um sinal de Deus nestes tempos de pandemia. Invisível, quase insignificante, o vírus da covid-19 nos fez parar a correria cotidiana e nos colocou todos em casa: é preciso aprender ficar a sós, mas com Jesus. A doença provocada pelo novo coronavírus desmascarou a hipocrisia do sistema socioeconômico vigente que exclui e destrói vidas: é preciso olhar a realidade tal como ela é, sem lentes ideológicas, para poder abraçar a vida em toda sua simplicidade, e crueldade também, para dar respostas adequadas que salvem vidas. Vidas importam, pois o maior bem que temos é a vida. E ela deve ser defendida porque vale mais do que qualquer outra coisa. Tudo pode ser refeito se estivermos vivos.
Por outro lado, a pandemia nos projeta para o futuro que doravante construiremos. A vida e a morte estão aí escancaradas à nossa frente. Diante de tal realidade, o mundo de liquidez altamente fugaz, conforme a cosmovisão pós-moderna, não poderá prescindir da verdade dos fatos e, necessariamente, será obrigado a dar menos valor à interpretação, valorizando a realidade tal como ela se apresenta. Tudo o que estamos vivendo nos obriga a repensar a ordem de organização mundial. Como desenvolver um mundo novo, pautado não somente pela economia, mas principalmente pelo relacionamento humano: com Deus, consigo mesmo, com o outro (irmãos e irmãs, inclusive os diferentes) e com toda a natureza. A covid-19 nos colocou diante do dilema do progresso que deve avançar, sim, mas sem provocar tantas destruições.
Papa Francisco é um arauto da esperança, como o foi o Padre De Foucauld. Contra todos os sinais de morte, presentes atualmente em nossa sociedade, onde vidas consideradas não úteis são descartadas, com certeza, ambos nos mostram que a esperança nos embala: um mundo novo, justo, solidário e fraterno é possível. Com certeza sairemos melhores desta pandemia. O caminho está aberto, mas o faremos enquanto caminharmos, porque ele ainda não está pronto, como diz um cântico antigo:
“Perdido, confuso e vazio, sozinho no mundo tentando encontrar, um caminho que seja o meu, não importa se é duro, eu quero buscar. Pegadas, pra um lado e pra outro, estradas sem rumo terei que lutar. Caminheiro, você sabe, não existe caminho. Pouco a pouco, passo a passo, e o caminho se faz”. (NUNES, Astúlio, 1980).
IHU On-Line – Que autores (ou pensadores) estão presentes e fundamentam a espiritualidade e o pensamento de Foucauld?
Carlos Roberto dos Santos – Charles de Foucauld foi um intelectual. Lia de tudo que os grandes filósofos e os grandes mestres de sua época escreviam. Aos 23 anos já era um expert, com grande competência científica, tendo estudado etnologia, geografia, astronomia, cartografia e aprendido as línguas árabe e hebraico. Em suas pesquisas, ele era extremamente rigoroso na busca da verdade. Em sua viagem de exploração ao Marrocos, coletou numerosas e muito precisas informações, que renovou completamente o conhecimento geográfico e político do Marrocos (DUREYRIER, 24 de abril de 1885).
Charles de Foulcauld
Mas, depois de sua conversão, sem sombra de dúvidas, foi Jesus de Nazaré e seu Evangelho, o grande mestre que moldou toda sua vida até a morte. Charles foi um místico em estado puro, que viveu sua amizade com o Bem-amado Jesus em alto grau de conformação de vida. Viveu só para Jesus. Gastou sua vida para imitar seu Bem-amado em todos os sentidos. Em sua maneira de viver, a fé e o amor (caritas) nunca estavam separados. E, por causa de Jesus e do Evangelho, inaugurou um novo jeito de contemplação na ação. O Padre De Foucauld viveu verdadeiramente como monge, homem de oração profunda, mas, ao mesmo tempo, estava presente no meio do povo, vivendo com eles, partilhando de suas angústias e seus sofrimentos, de suas alegrias e esperanças.
No entanto, há outros autores que influenciaram suas decisões. Como monge trapista, o encontro com a vida de São Bernardo de Claraval e toda sua obra literária marcou sua trajetória. Ele também lia e meditava os escritos e a história de São Francisco de Assis, de Santa Tereza D’Ávila e de São João da Cruz. Estes místicos marcaram a história e o itinerário espiritual deste “buscador” de Deus. Inclusive, são citados em alguns de seus escritos. Na época, Charles também recebeu forte influência do movimento espiritual do “Sagrado Coração de Jesus”.
IHU On-Line – O que é mais importante para compreendermos a espiritualidade de Foucauld?
Carlos Roberto dos Santos – Charles de Foucauld foi um “buscador de Deus”. Ele viveu humildemente, profundamente marcado pelo desejo de imitar seu Bem-amado Jesus. Este desejo norteou todas as suas escolhas e ações, onde quer que ele estivesse.
“Meu Senhor Jesus, quão rapidamente será pobre, aquele que te ama de todo o coração ... Eu não consigo compreender o amor a não ser como uma necessidade imperiosa de conformidade, de semelhança, e principalmente de partilhar todas as tristezas, todas as dificuldades, toda a dureza da vida ... todas as cruzes [do Bem-amado]”. (FOUCAULD, 1958, p. 515).
Neste processo de imitação, Charles buscou “rebaixar-se” como Jesus e viver na pobreza existencial:
“Abraçar a humildade, a pobreza, o rebaixamento, a abjeção, a solidão, o sofrimento como Jesus em sua manjedoura; não ficar buscando grandeza humana, honrarias, estima dos homens, mas estimar tanto os mais pobres quanto os mais ricos. Para mim, sempre procurar o último dos últimos lugares, organizar minha vida para ser o último, o mais desprezado dos homens”. (FOUCAULD, 1958, p. 33 - Retiro em Nazaré).
Toda vez que vislumbrou ter encontrado o caminho certo para imitar Jesus, Charles aprofundou-se ao máximo, gastando a sua vida nesta imitação. No entanto, quando percebeu que existia algo de mais simples, mais pobre e mais radical, e, portanto, que não estava imitando Jesus em sua “kenosis - descida” no coração da humanidade e na vida dos pobres, Charles se dispunha a abandonar tudo e recomeçar novamente, confiante nos braços de Deus. E recomeçava, num nível mais profundo e mais radical, a imitação do seu Bem-amado.
Vivendo e buscando conformar-se cada vez mais com Jesus, Charles deixou um rastro luminoso de vida espiritual que nos atrai:
1) a amizade profunda com Jesus é o essencial: vivência diária da Eucaristia, Adoração ao Santíssimo Sacramento, leitura e meditação diária da Palavra de Deus;
2) a vida de Nazaré: como Jesus viveu escondido no meio da humanidade por 30 anos, devemos viver discretamente, com simplicidade e sem chamar atenção, a não ser para Jesus e o projeto do Reino de Deus;
3) a busca do último lugar: estar disposto a colaborar na ação salvadora de Jesus, indo ao encontro dos últimos, que estão nas periferias existenciais, lá onde a vida humana está sendo desrespeitada e desvalorizada;
4) o apostolado da bondade ao ser presença do Cristo, presença amiga e solidária com os irmãos que pensam diferente, sem querer convertê-los, mas amando-os e valorizando-os como são.
IHU On-Line – Como Charles de Foucauld compreende o conceito de missionário?
Carlos Roberto dos Santos – Charles de Foucauld foi um missionário diferente. Ao longo de sua história compreendeu que a missão não se tratava apenas de ir, pregar e converter os outros povos; tratava sim de ir até os mais pobres, os últimos, que vivem nas periferias da vida, e viver com eles, sendo presença do Deus Amor no meio deles (cfr. JARDIM, 2016, artigo).
Aquele encontro com Jesus, na confissão em Paris, mudou para sempre a vida de Charles. Naquele dia, ele se abandonou inteiramente nas mãos de Deus, e sua vida tornou-se uma aventura para entender e fazer a vontade daquele que, agora, era seu grande amor: Jesus. O itinerário desta aventura é sua ação missionária, pois ele evangelizou com sua vida, e foi um testemunho solidário, alegre e transbordante de quem vive na presença do Bem-amado Senhor Jesus.
É verdade que o Padre De Foucauld foi para terras estrangeiras levar o Evangelho de Jesus. Isso o caracteriza como autêntico missionário. Mas, para ele, o protagonista da missão sempre foi Jesus. Seu desejo de imitar Jesus o fez ser uma presença amorosa no coração do Saara entre os muçulmanos e os povos tuaregues. Não estava lá, entre os irmãos mulçumanos, para convertê-los pelo poder persuasivo do discurso, mas para ser presença de Deus, do Bem-amado. Ele viveu de tal modo o apostolado da bondade, que foi reconhecido como o Irmão Universal. Mais do que fazer planos e projetos missionários, Charles “gritou o Evangelho” com seu jeito de viver a missão.
“Minha missão deve ser o apostolado da bondade. Ao me ver, deverão dizer ‘Já que este homem é tão bom, também sua religião deve ser boa’. Se alguém me perguntar por que eu sou manso e bom, deverei responder: ‘Porque eu sou servidor de um outro que é muito melhor do que eu. Se soubesse como é bom o meu Mestre Jesus!’. Quero ser tão bom que possam dizer de mim: ‘Se o servidor é assim, como não será o Mestre!’” (FOUCAULD, C., 1958, p. 382).
Como missionário Ad gentes, Charles testemunhou o diálogo e o respeito pelas diferentes culturas, com as quais procurou aprender, escutando-as e dialogando com elas, sem impor seus costumes e tradições. Ele se tornou um verdadeiro precursor da maneira atual da Igreja de conceber a sua ação missionária. Mergulhou na cultura tuaregue a ponto de se tornar um deles, e mostrou-lhes o Amor de Cristo, que acolhe a todos. Desta experiência, ele deixa escrito alguns conselhos para os futuros irmãozinhos e irmãzinhas:
“A gente faz o bem não na medida do que diz e do que realiza, mas na medida do que a gente é, na medida da graça que acompanha nossos atos, enquanto nossos atos são atos de Jesus que agem em nós e por nós. Por exemplo, os irmãos e as irmãs devemos ser uma pregação viva: cada um deles deve ser um modelo de vida evangélica. Observando-os, deve-se descobrir o que é a vida cristã, o que é o Evangelho, o que é Jesus. A diferença entre a sua vida e a dos não-cristãos deve mostrar claramente onde está a verdade. Eles devem ser um Evangelho vivo: as pessoas afastadas de Jesus, especialmente as que não têm fé, devem conhecer o Evangelho, sem livros e sem palavras, simplesmente os vendo viver. O exemplo é a única ação que pode influenciar as almas que se opõem a Jesus, que não querem ouvir as palavras de seus servidores, nem ler seus livros, nem receber seus donativos, nem aceitar sua amizade, nem se comunicar com eles de maneira alguma. Para estas, o melhor é o exemplo. Mas essa ação pelo exemplo é tanto mais forte quanto menos desconfiança suscitar, pois qualquer aparência de engano ou sedução as mantêm afastadas”. (DAMIAN, Edson, 2007, p. 105).
Charles foi um missionário simples e pobre. Em seu jeito de missionar, não chamou atenção para si nem para sua missão, mas imitou a vida escondida de Jesus de Nazaré, valorizando a presença de Deus nas pequenas coisas da vida, a própria e a dos outros. Viveu no meio dos pobres, com meios pobres, sem luxo. Ele mesmo fazia os trabalhos manuais para garantir sua sobrevivência (alimentação, vestes, abrigo e algo para doar aos mais pobres). Ele identificou-se a tal ponto com o povo Tuareg, a quem serviu, que chama atenção o fato deste povo dar-lhe tudo o que tinha, o leite de cabra com mel, para cuidar de sua saúde, quando ele ficou doente.
Como vemos, para Charles a missão é fazer o que Jesus fez: ir ao encontro das pessoas, caminhar com elas, olhar nos olhos de cada um, participar da sua história pessoal, sentir suas alegrias e tristezas e partilhar com elas, na solidariedade de uma presença ativa, a esperança de transformação do mundo para que todos possam “viver melhor”, com dignidade.
IHU On-Line – Quais os desafios para ser um missionário no Brasil e no mundo de hoje?
Carlos Roberto dos Santos – Nosso mundo está passando por uma mudança de época. Os valores que norteiam a sociedade, inclusos os valores religiosos, estão invertidos. Por todos os cantos do mundo, vemos um crescimento assustador de mentalidades fundamentalistas, gerando uma multiplicidade de “ismos”: minimalismo, clericalismo, conservadorismo, novo-medievalismo, fascismo, etc. Estas mentalidades trazem no seu bojo a intolerância sob diversas faces: racial, cultural, política, econômica e religiosa.
Por outro lado, uma certa teologia da prosperidade e do bem-estar avança a cada dia. Muitos que se dizem cristãos, estão mais preocupados com aspectos emocionais e bem-estar religioso, do que em viver o Evangelho. Consequentemente, vivem uma religião de aparência, esquecendo-se de que o sofrimento faz parte do mistério. A cruz de cada dia, o martírio foi esquecido, ou deixado à margem. Outros vivem acomodados, “muito preocupados em nada fazer”, como disse São Paulo. Estes simplificam a evangelização ao máximo, levando uma vida insossa, agindo somente para conservar aquilo que já existe. Não ousam apresentar a novidade do Evangelho ao mundo de hoje, e permanecem letárgicos. Por medo? Preguiça? Comodismo? Outros ainda, despendem enormes esforços, inclusive contra a própria Igreja, combatendo um inimigo invisível e fictício, pregado pelas ideologias retrógradas, que avançam em nosso tempo.
Não sou juiz de ninguém, mas penso que esses caminhos da moda, mais curtos e mais simples, por mais fáceis que pareçam ser ou por mais aceitação que pareçam ter, sejam vãos e contraproducentes. Além de ser o “caminho da porta larga”, de não ajudarem a produzir os frutos que agradam a Deus, eles contrastam com força e a vitalidade da missionariedade da Igreja. Além disso, em nome do proselitismo, eles provocaram o abandono do diálogo com as culturas diferentes e o respeito pelo “outro”. Eis aí o grande desafio atual que deve ser enfrentado e superado em nosso tempo.
A missão começa onde nós estamos e, por força do batismo, o cristão tem a obrigação de espalhar a Boa notícia da salvação que Jesus nos garantiu, com alegria, misericórdia e solidariedade. Como a missão da igreja também passa pela profecia, o cristão deve denunciar as injustiças e tudo o que não está de acordo com o projeto de Deus; mas também deve anunciar o Reino de Deus, onde a justiça, a paz e o amor deverão prevalecer. Isso faz parte do ser missionário e é outro desafio a ser reencontrado.
Para quem ama a Deus, quer ser fiel e fazer sua vontade, quer viver bem e ajudar os outros a viverem bem, penso que não haja outra opção: deve-se, necessariamente, enfrentar os problemas e as angústias de nosso tempo, propondo e vivendo o Evangelho com alegria e esperança. Ou, como dizia Charles de Foucauld: deve gritar o Evangelho com sua vida! E, neste sentido, o Papa Francisco também nos anima:
“O mundo tem necessidade de descobrir que Deus é Pai, que existe misericórdia, que a crueldade não é o caminho, que a condenação não é o caminho”. (L’Osservatore Romano, 10/12/2015, n. 50, p. 4).
Mas atenção, o anúncio da Boa notícia não é marketing e nem um trabalho de publicidade, onde se faz a propaganda de Jesus, uma pessoa muito boa que falou tantas coisas bonitas, que fez o bem e curou tantas pessoas. Quem vai missionar, não vai anunciar suas próprias ideias, nem uma ideologia, nem tampouco fazer propaganda de Jesus. O missionário vai anunciar aquilo que lhe foi confiado pela Igreja: o Evangelho, a Boa notícia de que Cristo nos salvou. O Bem-amado irmão Jesus de Nazaré morreu e ressuscitou por amor a cada um de nós! E, com sua ressurreição, abriu as portas da salvação para todos. Isto não é uma simples notícia. É a única Boa Notícia, com maiúsculo.
Nosso mundo precisa desta Grande Boa notícia! E ela não é uma ideia a ser discutida. É ação amorosa de uma pessoa, Jesus, a ser comunicada para atrair as pessoas a Deus. Para anunciá-la com credibilidade, o missionário deve ser coerente e comprometido com Jesus e com a mensagem que anuncia. Karl Rahner nos ajudou a compreender isto, quando afirmou: “o cristão do século XXI ou será místico ou não será cristão”. De fato, se o missionário não falar a partir de sua amizade com Deus, que brota do seu interior, se não for fiel testemunha à mensagem que lhe foi confiada e não viver coerentemente com este anúncio, correrá o risco de ver o que prega transformar-se em falácia, ou como está na moda dizer: “fake news”.
IHU On-Line – Como os conceitos de caridade e misericórdia aparecem nas intuições espirituais de Foucauld?
Carlos Roberto dos Santos – Enquanto Charles meditava os Evangelhos e olhava para Jesus Eucarístico, em adoração, sentiu e compreendeu que Jesus se doou inteiramente e por amor, sem reservas, a Deus. Esta doação de amor de Jesus, descrita no Evangelho e vivida na Eucaristia, marcou de tal modo a vida de Charles, que ali ele encontrou sua vocação e sua motivação para viver: o Amor de Deus e o amor aos irmãos. Ele mesmo escreve:
“Creio que não há palavra do Evangelho que mais transformou a minha vida do que esta: ‘Tudo o que fizeste a um desses pequeninos é a mim que o fizestes’! Se pensarmos que estas palavras são da Verdade incriada, pronunciadas pelos mesmos lábios que disseram: ‘isto é meu corpo ... isto é meu sangue ...’ com que força seremos levados a buscar e a amar Jesus nestes ‘pequeninos’, nestes pecadores, nestes pobres”. (Carta a Luis Massignon, 1°/8/1916).
Convicto, Charles nos ensina: “Voltemos ao Evangelho, senão, Jesus não vive em nós”. E procurou viver o amor de Jesus na imitação e na adoração. A ponto de a “imitação” de Jesus de Nazaré delimitar todo o seu pensamento, suas decisões e suas ações, e se tornar uma constante em sua vida. Seu testemunho foi forte e atraente. Podemos resumir toda sua vida em duas palavras: “Jesus Caritas” (Jesus Amor). O amor marcou sua existência.
Na carta que enviou a J. Hours, datada de 3 de maio de 1912, Charles afirmou que a caridade, como mandamento de Jesus, é a base da religião, pois Jesus resumiu toda a Lei em dois mandamentos: amar a Deus sobre todas as coisas e amar ao próximo como a si mesmo. Este imperativo de Jesus obriga todo cristão a amar a todos, indistintamente:
“Ser caridoso, manso, humilde com todos os homens: eis que aprendemos de Jesus”. (Carta a Joseph Hours, 3/5/1912).
Imitando a Jesus, amando gratuitamente a todos os pobres que encontrava, Charles foi testemunha da caridade. Ficou tão conhecido que sua casa se tornou a “Fraternidade”, a casa dos irmãos, pois acolhia a todos, próximos ou distantes, sem distinção. Ele era afetuoso, bondoso e prestativo com todos. Ajudava todos que chegavam até ele, independente de raça, cor ou religião. Foi irmão de todos. Mas também se desinstalou e foi ao encontro dos tuaregues, seus amigos mais pobres, para ajudá-los naquilo que precisassem. Viveu como eles e tornou-se um deles.
Charles teve um objetivo sempre presente: viver e testemunhar seu mestre, o Bem-amado Jesus, pela alegria em servir, não se importando com as circunstâncias, pois, assim, poderia atrair e conquistar, pouco a pouco, o máximo de pessoas para Jesus. Sem sombra de dúvidas, ele foi um sinal vivo da misericórdia de Deus.
IHU On-Line – Que respostas Charles de Foucauld é capaz de dar ao mundo nesse tempo de pandemia?
Carlos Roberto dos Santos – Diante de tudo que estamos vivendo, globalmente e no Brasil, o primeiro insight que tenho é que o mundo não será o mesmo após a pandemia. Com certeza, o ser humano terá de reinventar-se em sua maneira de ser e existir. Será necessário ressignificar-se porque a covid-19 desnudou a logística e a organização do mundo atual, deixando claro que não responde satisfatoriamente à necessidade de viver: o ter é efêmero, e não é o mais importante para vivermos bem.
Como místico e mestre na oração, Charles de Foucauld também foi um mensageiro da esperança. E o foi precisamente porque era aberto à ressignificação da sua vida, sempre que necessário. Esta docilidade o ajudou a aproximar-se do Divino e viver tão próximo d’Ele; também o ajudou a penetrar na alma de um povo e no mais profundo do sofrimento, da dor e da esperança humana. Como amigo no meio deles, um com eles, mergulhado em suas histórias, ajudou-os a resgatar sua estima, o respeito, o orgulho e a dignidade de pessoa humana, e como um povo.
Creio que o testemunho de Charles pode cooperar muito com o mundo de hoje, na pandemia e no pós-pandemia. Primeiro, para que possamos ser mais contemplativos. O encontro verdadeiro com o Divino deve ser resgatado para reintegrar o ser humano, caso contrário os ídolos ocupam este espaço. O tempo que ficamos a sós conosco mesmo, com Deus e com a família, além de ser gratificante, restaura-nos interiormente e em nossas relações básicas. Segundo, porque ele viveu o sofrimento e a impotência, e confiou-se inteiramente nas mãos de Deus. A pandemia faz-nos sentir pequenos e impotentes, pois um simples vírus, quase invisível, provocou uma imensa destruição em quase tudo que construímos, inclusive o jeito de nos relacionarmos uns com os outros.
O exemplo do irmão Charles nos ajuda a olhar para os efeitos da pandemia, compreendendo que somos pobres, pequenos e frágeis. E mais ainda, por questão de sobrevivência, precisamos ser menos egoístas e mais solidários com aqueles que têm menos e precisam mais. A bondade (não a hipocrisia) e o cuidado uns dos outros e da nossa casa comum precisam voltar a fazer parte de nossas vidas.
Charles é um dos grandes faróis do século XXI porque viveu a humildade. Numa sociedade da ostentação, a humildade é o valor urgente a ser cultivado para mudar o que for preciso.
Carta a Henry de Castries, 14 agosto de 1901, in: FOUCAULD, C. Ourvres spirituelles de Charles de Jesus, Père de Foucauld. Éditions du Seuil, 1958, p. 662.
LAFON, Michel, 15 dias de oração com Charles de Foucauld, Paulinas 2011, 2ª ed. p. 15.
Música Caminheiro, de Astúlio Nunes, 1980.
Cfr. DUREYRIER, Henry. Carta à Sociedade de Geografia de Paris, 24 de abril de 1885.
FOUCAULD, C. Ourvres spirituelles de Charles de Jesus, Père de Foucauld. Éditions du Seuil, 1958, p. 515.
Retiro em Nazaré, ano 1897, in: FOUCAULD, C. Ourvres spirituelles de Charles de Jesus, Père de Foucauld. Éditions du Seuil, 1958, p. 33.
Cfr. JARDIM, Maurício da Silva, Charles de Foucauld: Irmão universal: artigo Publicado no SIM – n.4, out-dez. de 2016.
FOUCAULD, C. Ourvres spirituelles de Charles de Jesus, Père de Foucauld. Éditions du Seuil, 1958, p. 382.
DAMIAN, Edson T. Espiritualidade para nosso tempo, com Carlos de Foucauld, Ed. Paulinas, 2007, p. 105.
Carta ao Padre Voillard, em 12.7.1912, cfr. Disponível aqui.
Papa Francisco, in: L’Osservatore Romano, edição de 10/12/2015, n. 50, p. 4.
Carta a Luis Massignon, 1º agosto de 1916, in: FOUCAULD, C. Ourvres spirituelles de Charles de Jesus, Père de Foucauld. Éditions du Seuil, 1958, p. 778.
Carta a Joseph Hours, 3 maio 1912. Cfr. Disponível aqui.