O descalabro da gestão ambiental no Governo Bolsonaro. Entrevista especial com Aldem Bourscheit

Desmatamento | Foto: Agência Brasil

Por: João Vitor Santos | 02 Agosto 2019

Ainda bem antes de 1500, quando o Brasil foi “descoberto”, degredados, náufragos e viajantes sempre achavam uma forma de tirar proveito de fauna e flora abundantes. Com o “descobrimento”, a expropriação foi oficialmente deflagrada. Passamos pela Colônia, a chamada República Velha e anos da “nova” República sem que a preservação do meio ambiente fosse de fato uma preocupação estatal. “Nossa história é repleta desses altos e baixos no tratamento dos ambientes e recursos naturais. Isso faz parte da construção dos países e das suas políticas públicas. Ao mesmo tempo, se espera desse processo um balanço positivo e focado em valores e necessidades cada vez mais modernos”, observa o jornalista Aldem Bourscheit, especialista em temas de Meio Ambiente. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Aldem analisa as ações de proteção ambiental no Brasil desde os governos petistas e não se furta em criticar: “a gestão ambiental do Governo Bolsonaro é um descalabro para um país que já foi considerado uma liderança internacional em termos ambientais”.

O jornalista chama atenção para o fato de que “sob presidência petista, vimos um impulso na criação de Parques Nacionais e outras chamadas Unidades de Conservação. Isso levou o país ao topo do ranking global no estabelecimento de reservas ambientais”. Mas também reconhece que, ao mesmo tempo, agendas abandonadas ainda no tempo do regime militar foram reeditadas nos governos ditos de esquerda, como o desenvolvimentismo baseado em grandes empreendimentos. É o caso de hidrelétricas na região amazônica. “E, nas últimas duas décadas, Brasil e Estados Unidos despontam como os países onde mais se reduziu ou eliminou áreas verdes protegidas”, acrescenta.

Entretanto, ao analisar a política ambiental nacional, Aldem alerta: “não podemos esquecer que nossa república federativa se apoia nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, com influência crescente do setor privado. Assim, responsabilidades por agendas positivas e negativas para o conjunto da sociedade devem ser compartilhadas entre esses atores”.

Contudo, enfatiza a ideia de descalabro nas políticas de meio ambiente no atual governo. Aliás, sinais que já eram emitidos desde a campanha eleitoral. “No campo ambiental, as propostas de Bolsonaro registradas na Justiça Eleitoral foram as mais vazias e pobres quando comparadas aos demais candidatos à presidência. Havia muito mais ‘pistas’ sobre suas intenções para a área em sua pífia atuação parlamentar, nos discursos e nas entrevistas a veículos ávidos por gerar ‘polêmica’ em busca de audiência”, recorda. Como meio ambiente nunca foi tema de grande mobilização nacional, a falta de propostas sequer pesou contra. “No exercício do governo, segue cumprindo suas ‘promessas de campanha’. Mesmo não eliminando o Ministério do Meio Ambiente, cedeu a pasta a um ruralista corrupto e condenado pela Justiça de São Paulo”, acrescenta.

E, além de uma atuação que desvertebra a política ambiental através de aproximações com as bancadas do Boi, da Bala e da Bíblia, Aldem destaca que o atual governo aposta na polêmica como cortina de fumaça para de fato falar sobre o aumento do desmatamento. Em meio a tudo isso, abre-se a porteira para liberação de agrotóxicos. “É catastrófica a liberação de 262 novos agrotóxicos em cerca de 200 dias de governo, inclusive porque muitos são proibidos em vários outros países, por seus prejuízos à saúde humana e ambiental. Antes disso, o Brasil já era o maior usuário mundial de agrotóxicos. Tamanha liberação se dá por interesses comerciais e políticos, sempre sombreando os custos públicos e privados decorrentes da contaminação de alimentos, água e pessoas”, avalia.

Aldem Bourscheit (Foto: Vitae Civilis)

Aldem Bourscheit é jornalista formado pela Unisinos e especializado em Meio Ambiente, Economia e Sociedade pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais - Flacso. Baseado em Brasília, contribui com investigações e conteúdo para imprensa e entidades civis brasileiras e de outros países, como portal InfoAmazônia, site O Eco e Fundação SOS Mata Atlântica. Também é integrante da Rede Brasileira de Jornalismo Ambiental - RBJA.

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Negacionismo climático, apetite desenvolvimentista e entendimento de que o “meio ambiente não pode entravar o desenvolvimento” são perspectivas que temos ouvido muito atualmente. Isso significa que, no Brasil e no mundo, estamos vivendo tempos de regressão nas discussões acerca do meio ambiente?

Aldem Bourscheit – Discursos e ações rebaixando as questões ambiental e social diante de outras agendas ligadas ao desenvolvimento econômico são comuns à quase totalidade dos governos, do nível federal ao municipal, e obviamente não só no Brasil. Os inúmeros setores que compõem a sociedade moderna têm diferentes visões sobre como devem ser conduzidos esses temas. Assim, os atritos são naturais.

Todavia, o que nos une enquanto país, ou deveria unir, é o respeito à Constituição Federal e às leis nela inspiradas. Ou seja, divergências sobre a condução das políticas públicas e privadas devem ser resolvidas nos âmbitos democrático e legal, através do debate aberto e qualificado. Quando esse fio condutor se perde, há sérios riscos para o presente e futuro de agendas estratégicas para o país, como respeitar as legislações de meio ambiente e de proteção a populações indígenas, tradicionais e outras pejorativamente chamadas de minorias.

Aí, enveredamos pelos governos que se instalaram no Brasil desde o impeachment de Dilma Rousseff. Vale avisar que críticas à situação não se convertem em apologia a governos anteriores. Desde agosto de 2016, quando Michel Temer assume a Presidência, vemos um desmonte de políticas públicas socioambientais. Se de início isso era gradual e ancorado em processos mais ou menos democráticos, desde janeiro de 2019 está mais intenso, acelerado e enfiado goela abaixo da sociedade.

Discurso anticorrupção

Nesse cenário, vale lembrar um pouco do contexto que levou Jair Bolsonaro a vencer as eleições de 2018. A corrupção política é uma chaga brasileira, mas não a única. Reduzir a desigualdade social, que impera há séculos no país, é pauta invariavelmente mascarada pelo “combate à corrupção”. Não se está pregando que todos devam ser “iguais”, mas um padrão de distribuição de renda que mantém quase 50 milhões de pessoas na pobreza é intolerável e não será resolvido com um modelo econômico que, na prática, segue olhando só para o “andar de cima”. Assim, foi com um (falso) discurso anticorrupção, o mais pobre programa de governo entre todos os candidatos e uso massivo de mentiras distribuídas através de redes sociais que Bolsonaro chegou ao poder. Estratégia semelhante foi usada em cerca de 50 países, onde muitos líderes populistas de extrema direita acabaram eleitos e têm governado de forma semelhante – atacando direitos ambientais e sociais e cedendo ainda mais espaço para que os mercados, com baixo controle estatal, ditem o destino das populações.

O negacionismo

Nessa rota, negar a crise global do clima, alimentar um modelo de crescimento econômico a qualquer custo e taxar o meio ambiente como entrave ao desenvolvimento se tornam discursos e ações comuns e padronizadas. Entre os retrocessos práticos no Brasil, temos o povoamento de órgãos socioambientais por representantes arcaicos do agronegócio e das forças armadas, o esvaziamento dos orçamentos e dos órgãos de controle, a elevação nas taxas de desmatamento em todas as regiões, o enfraquecimento de coletivos onde havia representação social e o congelamento na criação de áreas protegidas.

Essas agendas são levadas a cabo de forma caótica, sem transparência e debate público, sem prestação de contas ao país e, até agora, sem uma reação à altura do Judiciário e do Legislativo. Assim, há uma cumplicidade entre os poderes formais para o desmonte da legislação e de políticas públicas socioambientais que foram duramente construídas ao longo da história nacional.

IHU On-Line – Quais as questões de fundo no negacionismo climático? Qual a sua análise sobre o atual debate global acerca da crise climática? E como avalia a adesão de jovens a essa causa, como o movimento liderado por Greta Thunberg?

Aldem Bourscheit – Negacionismo climático não é um fenômeno recente e muito menos homogêneo. No início dos anos 1800, o físico francês Joseph Fourier já alertava sobre a existência de um "efeito estufa" e que ele poderia ser reforçado por ações humanas, aumentando a temperatura média da Terra. Caso alguém não tenha entendido o fenômeno, basta se trancar em um carro num dia claro. O calor do sol entrará pelas janelas e ficará preso, fazendo a temperatura subir. Se a humanidade tivesse ouvido e entendido alertas como esse ao longo da história, poderíamos ter enveredado por modelos de desenvolvimento mais sintonizados com os grandes sistemas naturais do planeta. Mas esquecer e ignorar dados científicos está cada vez mais em moda.

Outras frentes de negacionismo não discordam de que o ponteiro do termômetro planetário está subindo, mas pregam que a sociedade humana teria influência menor nesse processo. Para esses, o aquecimento global seria causado por fenômenos mais naturais, como um aumento da irradiação do sol. Nesse entrevero, para usar um termo sulista, prefiro me alinhar com as centenas de cientistas do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas, cujos relatórios afirmam que nosso modelo de vida, produção e consumo é a principal causa dos desvarios climáticos. Mas jogar essas informações para baixo do tapete faz parte do jogo de quem quer seguir deitado em berço esplêndido.

Combater concretamente a crise do clima ameaça negócios imediatos de inúmeros mercados e de governos associados aos mesmos. Um deles é o da multibilionária indústria de extração e consumo de petróleo e seus derivados. A comunicação científica e de massas vem tentando melhorar abordagem e palavreado sobre a crise do clima, mas a disputa política entre discursos reduz as chances de que se organize uma pressão popular mais ampliada e efetiva por mudanças no modelo de desenvolvimento econômico.

Informação e desinformação

Diante do tamanho e longevidade do problema, a sociedade global segue presa no dia a dia e na enxurrada de bobagens e mentiras que fluem pelas Redes Sociais, empurrando soluções com a barriga. Como aquele sapo na água que esquenta lentamente, não se dá conta do tamanho da ameaça que paira no horizonte. De tempos em tempos, surgem figuras capazes de nos tirar da pasmaceira e mobilizar mídia, “formadores de opinião” e também puxa-sacos de plantão para determinadas causas.

Greta Thunberg

Os grandes eventos das Nações Unidas são terreno fértil para o surgimento dessas estrelas cadentes. Veja bem, acho esses fenômenos positivos, ainda mais quando logram efeitos práticos, para além das fotos e discursos. Nos últimos tempos, assistimos à ascensão da Greta Thunberg, que se tornou fonte de inspiração e mobilização mundo afora, especialmente para terráqueos mais jovens. Interessante notar que seu país, a Suécia, é vizinho da Dinamarca, de onde veio um dos negacionistas climáticos mais ferrenhos do final dos anos 1990, o Bjørn Lomborg. Seus livros se tornaram campeões de venda entre membros da indústria fóssil e de governos que preferem tapar o sol das mudanças climáticas com a peneira.

O desafio que permanece é o de se criar e manter uma mobilização efetiva e continuada pela redução dos efeitos mais nefastos de crises globais, como das mudanças do clima e das perdas aceleradas de vida selvagem.

IHU On-Line – Uma das críticas aos governos progressistas – no caso do Brasil, Governos Lula e Dilma – é a de que não compreenderam em profundidade as complexidades da questão ambiental. Você concorda? Por quê?

Aldem Bourscheit – Como citei anteriormente, dependendo de quem e de como se observa, podemos ter mais ou menos avanços no atendimento da agenda ambiental pelas diferentes gestões públicas. Por exemplo, grandes grupos acham sustentável que até 80% da vegetação em fazendas no Cerrado seja legalmente eliminada por seus negócios. Nos governos ditos de esquerda e sob presidência petista, vimos um impulso na criação de Parques Nacionais e outras chamadas Unidades de Conservação. Isso levou o país ao topo do ranking global no estabelecimento de reservas ambientais.

Ao mesmo tempo, foram retomadas agendas paridas na ditadura militar, como a da implantação de grandes hidrelétricas na Amazônia. E, nas últimas duas décadas, Brasil e Estados Unidos despontam como os países onde mais se reduziu ou eliminou áreas verdes protegidas. Nesse contexto, não podemos esquecer que nossa república federativa se apoia nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, com influência crescente do setor privado. Assim, responsabilidades por agendas positivas e negativas para o conjunto da sociedade devem ser compartilhadas entre esses atores.

Além disso, a própria agenda ambiental sofre mutações ao longo da história, por pressões da natureza, pelo avanço no conhecimento e até por custos econômicos e socioambientais. Inúmeros casos de esgotamento de água e outros recursos naturais ao redor do planeta, tão bem descritos por Jared Diamond em Colapso (2005), forçaram populações humanas a mudar drasticamente seu modo de vida. Obras como A Era do Desenvolvimento Sustentável (Jeffrey Sachs, 2015) e O Novo Iluminismo (Steven Pinker, 2018) trazem um fabuloso apanhado de informações que poderiam nos guiar para um futuro mais seguro em termos ambientais e sociais, se nossos governantes estivessem abertos a tal conhecimento.

Custo das hidrelétricas

De tanto provocar desmatamento e prejudicar indígenas e outras populações, o custo das grandes hidrelétricas na Amazônia foi às alturas e elas estão, por enquanto, quase banidas dos planos oficiais para expandir a geração de eletricidade. Hoje em dia, podemos duvidar de que fosse tolerada uma obra como a da Usina de Itaipu (PR), que nos anos 1980 afogou as Sete Quedas do Rio Paraná, então considerada a maior cachoeira em volume d'água do mundo.

IHU On-Line – Em que medida as fragilidades dos Governos Lula e Dilma em questões de meio ambiente acabaram “abrindo o flanco” para a implementação de políticas mais predatórias nos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro?

Aldem Bourscheit – Avanços e retrocessos ambientais dos Governos Lula e Dilma foram acompanhados pela manutenção de uma economia fortemente baseada no agronegócio, cuja cadeia produtiva e comercial responde por cerca de 20% do PIB nacional. Ao longo daqueles governos, isso se tornou uma armadilha, pois os representantes do setor no Congresso Nacional são notórios defensores de retrocessos legislativos e, sem uma diversificação do poder econômico, seguiram ditando regras no jogo político. As bancadas do Boi, da Bala e da Bíblia usualmente votam juntas para enfraquecer a legislação socioambiental brasileira. Suas demandas permanentes envolvem maior uso de venenos agrícolas, dificultar a criação, recortar ou dar cabo de áreas protegidas, amolecer o licenciamento ambiental e anistiar desmatamento ilegal e multas.

Tais demandas são amparadas em falácias, como as de combate à fome e de um crescimento econômico que nunca alcança o país de forma horizontal. A produção agropecuária já daria conta das bocas humanas caso fossem combatidos o desperdício no transporte e preparação dos alimentos e as concentrações de renda e da produção. Quem vive na miséria não vai ao supermercado. O modelo hegemônico não tem em seu cerne a produção de alimentos, mas sim a ampliação da lucratividade sob uma lógica de mercado cada vez mais globalizado. Sem regulação, esse modelo tende a ampliar a fome e outros impactos.

Outro ponto é que a agenda política de retrocessos ambientais está diretamente associada à ocupação do território por um único modelo produtivo. Os congressistas que representam parte do agronegócio brasileiro não toleram um tipo de produção que não seja espelho dos patrocinadores de suas campanhas e mandatos, focado em monoculturas e agrotóxicos. Assim, seguem constantemente mobilizados para enfraquecer políticas e ações que favorecem a agricultura familiar e orgânica, o extrativismo e outros meios produtivos fora da lógica dos grandes mercados.

IHU On-Line – Como analisa as ações do governo de Jair Bolsonaro no que diz respeito à área ambiental?

Aldem Bourscheit – Seja em sua atuação parlamentar ou enquanto candidato e, agora, como presidente, Jair Bolsonaro sempre foi um político medíocre, irresponsável e criminoso. A máxima recorrente de que as “instituições brasileiras” estão funcionando é posta em xeque nesse caso. Afinal, caso essas cumprissem seu dever à risca, tal personagem estaria há bons anos afastado da vida pública, no mínimo. A eleição de um parlamentar ou membro do Executivo não é um passe-livre para que desrespeite a legislação ou que cometa toda sorte de ofensas contra minorias ou valores que afrontem suas agendas pessoais.

No campo ambiental, as propostas de Bolsonaro registradas na Justiça Eleitoral foram as mais vazias e pobres quando comparadas aos demais candidatos à presidência. Havia muito mais “pistas” sobre suas intenções para a área em sua pífia atuação parlamentar, nos discursos e nas entrevistas a veículos ávidos por gerar “polêmica” em busca de audiência. E nunca foram positivas. O candidato jamais escondeu sua ignorância e seu desprezo pela conservação da natureza, pelo modo de vida indígena e das populações tradicionais e rurais, pelas ações contra a crise do clima e sobre qualquer agenda que fugisse às suas limitações intelectual e política.

Como meio ambiente nunca pesou na balança eleitoral brasileira, recebeu maioria de votos. No exercício do governo, segue cumprindo suas “promessas de campanha”. Mesmo não eliminando o Ministério do Meio Ambiente, cedeu a pasta a um ruralista corrupto e condenado pela Justiça de São Paulo. Ricardo Salles congelou a grande maioria de agendas usuais da pasta – como a da criação e regularização fundiária de Unidades de Conservação –, age no supetão dos discursos do chefe e não poupa afagos a criminosos, como os que recentemente incendiaram pontes em Rondônia, protestando contra ações do Ibama.

Em sintonia com a Bancada Ruralista, age às claras para acabar com o Fundo Amazônia, maior mecanismo global de combate ao desmatamento. Ao mesmo tempo, assedia moralmente servidores públicos. Agindo assim, o ministro também quer pavimentar sua campanha à Câmara dos Deputados, em 2022. Ano passado, não conseguiu se eleger, quando concorreu pelo Novo. A gestão ambiental do Governo Bolsonaro é um descalabro para um país que já foi considerado uma liderança internacional em termos ambientais.

IHU On-Line – Neste ano, o Brasil tem batido o recorde na liberação de uso de agrotóxicos. Como compreende essas ações? E quais os caminhos possíveis para a reversão desse quadro?

Aldem Bourscheit – Enquanto éramos uma colônia formal, no fim do século XVII, governos já tentavam regular o desvairado desmatamento da Mata Atlântica para a produção de carvão. No início dos anos 1970, enquanto o mundo engrossava debates sobre meio ambiente, em Estocolmo (Suécia), o Brasil atuava politicamente para atrair empresas poluidoras e dar um “salto” em seu desenvolvimento econômico. Nossa história é repleta desses altos e baixos no tratamento dos ambientes e recursos naturais. Isso faz parte da construção dos países e das suas políticas públicas. Ao mesmo tempo, se espera desse processo um balanço positivo e focado em valores e necessidades cada vez mais modernos.

Por isso é catastrófica a liberação 262 novos agrotóxicos em cerca de 200 dias de governo, inclusive porque muitos são proibidos em vários outros países, por seus prejuízos à saúde humana e ambiental. Antes disso, o Brasil já era o maior usuário mundial de agrotóxicos. Parcela significativa da economia montada no agronegócio não é uma justificativa racional para esse tsunami na liberação de venenos, inclusive pelas dificuldades de se controlar o uso dessas substâncias em tamanho território.

Tamanha liberação se dá por interesses comerciais e políticos, sempre sombreando os custos públicos e privados decorrentes da contaminação de alimentos, água e pessoas. Reduzir a aplicação de venenos depende do fortalecimento dos órgãos e políticas reguladoras, de investimento na produção orgânica e de pequena escala e, especialmente, na educação e informação públicas sobre as diferentes possibilidades de produção e comercialização de alimentos.

IHU On-Line – O desmatamento da Amazônia Legal teve um aumento de 88% no mês de junho. O governo federal questiona os dados. O que essa postura revela?

Aldem Bourscheit – O verde da Amazônia sempre foi eliminado com mais intensidade quando soja, madeiras nobres e outras commodities eram mais valorizados nos mercados globais e também em períodos eleitorais, quando a fiscalização é enfraquecida para que votos sejam colhidos em currais políticos. A derrubada da floresta vinha caindo desde 2012, mas, desde janeiro, temos um cenário diferente, com a destruição voltando a níveis alarmantes, mesmo com crise econômica e meses após as eleições. Os motivos para esse vergonhoso retrocesso incluem discursos e ações do Governo Bolsonaro, que acuou órgãos e fiscalização ambiental, oferecendo um libera-geral para economias baseadas na destruição da última grande floresta tropical do planeta.

Como botar abaixo a Amazônia e as outras grandes regiões naturais do país é uma política pública de Bolsonaro e de seus aliados, nada mais lógico do que questionar e menosprezar o trabalho de instituições como o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - Inpe. Respeitado e reconhecido internacionalmente, o órgão público monitora há mais de três décadas o desmatamento na Amazônia. Tão preocupante quanto a disparada do desflorestamento é notar que o mesmo abre espaço para economias convencionais, como a criação de gado com baixíssima lotação por hectare e a extração e venda de madeiras quase sem nenhuma industrialização.

Enquanto isso, a Academia Brasileira de Ciências estimou que R$ 30 bilhões seriam suficientes para que modelos mais sustentáveis de desenvolvimento chegassem à Amazônia. O valor é semelhante ao investido na hidrelétrica de Belo Monte. A Moratória da Soja tem impedido maiores avanços da produção sobre a floresta, mas seu cultivo cresce ao norte do Cerrado. Com a expansão da infraestrutura para exportação de commodities na Região Norte, a pressão para o desmatamento do que resta da Amazônia deve crescer fortemente nos próximos anos. Pesquisadores brasileiros e internacionais alertam que, se a floresta perder de 20% a 25% de seu verde, o clima regional e global sofrerá sérios impactos. O Brasil segue pagando e desmatando para ver.

IHU On-Line – No Congresso Nacional, bancadas como a do agronegócio sempre tiveram muito peso, mas a bancada ambientalista também sempre foi muito combativa e fazia frente a essas perspectivas não preservacionistas. Como você avalia a bancada ambientalista na atual legislatura?

Aldem Bourscheit – Na prática política, as frentes parlamentares do agronegócio e ambientalista atuam de forma distinta. A primeira, costumeiramente tem maior número de parlamentares e, como comentado, em pautas de interesse comum, soma votos com bancadas religiosas, defensoras de armamentos e afins. A segunda, apesar de numericamente significativa, até hoje não conseguiu mobilizar votações condizentes com a quantidade de parlamentares listados na bancada. No dia a dia, conta com poucos mas aguerridos deputados e senadores para defender a legislação e agenda socioambientais.

Essa lógica se repete na atual legislatura, mas com agravantes: a Bancada Ruralista está mais fortalecida pelo Governo Bolsonaro e parlamentares ambientalistas estão em ainda menor número. Quando agendas importantes se acumulam nas comissões do Congresso Nacional, é comum vermos deputados ambientalistas correndo pelos corredores. Complicando o cenário, o atual presidente da Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Agostinho, pode ser expulso do PSB por ter votado sim à Reforma da Previdência em tramitação no Congresso. Mesmo que aparentemente inócuo, esse movimento pode enfraquecer um dos poucos parlamentares que defendem continuamente a temática ambiental no parlamento.

O trabalho de deputados, senadores e bancadas ambientalistas poderia ser fortalecido com uma presença e participação mais efetivas de entidades civis e da academia no dia a dia do Congresso. Todavia, isso demanda recursos humanos, financeiros e tempo, insumos escassos na grande maioria das instituições não governamentais.

IHU On-Line – Em outubro, ocorre o Sínodo da Amazônia. Como você vê essa iniciativa de propor um debate global acerca da Amazônia tendo a Igreja como promotora dessa discussão?

Aldem Bourscheit – Instituições como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB e a Rede Eclesial Pan-Amazônica - Repam têm atuação longeva e louvável em defesa de agendas ambientais e sociais estratégicas para o país e o mundo. Entre elas, a defesa da legislação florestal brasileira e dos direitos e modo de vida das populações indígenas e tradicionais, sempre ao lado de organizações civis e científicas.

Não podemos esquecer da encíclica Laudato Si’, publicada pelo papa Francisco há pouco mais de quatro anos. Esse primeiro “tratado” da Igreja Católica sobre questões ambientais foi um apelo a todas as pessoas, de todas as religiões, para que cuidem efetivamente do planeta, nossa casa comum. Tamanho alerta poderia ser ouvido e entendido por membros do Governo Bolsonaro, que, ungidos de profunda hipocrisia, agem de maneira completamente inversa aos ditames da religião que dizem seguir. Nesse cenário de grandes e crescentes desafios para a área ambiental, todo debate qualificado é bem-vindo, ainda mais quando pode resultar em pressão política contra retrocessos impostos ao país por governantes de ocasião.

IHU On-Line – No Brasil, hoje, quais são as maiores fragilidades na área ambiental? E quais os caminhos possíveis para superar essas fragilidades?

Aldem Bourscheit – O debate rumo a soluções ponderadas sobre grandes questões políticas no Brasil costuma ser empurrado com a barriga. Entre elas, a situação e o futuro das populações indígenas, a reforma agrária, os efeitos das mudanças do clima sobre a produção no campo, a urbanização crescente da população, as perdas galopantes de vida selvagem e assim por diante. As questões mais estratégicas de nosso tempo têm em comum uma interface entre meio ambiente e desenvolvimento humano, enquanto governos e governantes seguem conduzindo decisões políticas sob uma ótica econômica convencional e de curto prazo. A população ainda não percebe esse descompasso.

Claro que a economia é importante e que decisões devem ser tomadas diante de agendas urgentes. Mas não se pode gastar tempo e recursos públicos com assuntos descabidos ou menores, como polemizar sobre a cor da roupa das crianças ou ter um debate entre negacionistas climáticos, que será promovido pelo Senado, no segundo semestre. Mas mirando um pouco mais o foco da questão, a temática ambiental teria outro status no país com menores taxas de impunidade e com respeito estrito à legislação.

A proteção de florestas em imóveis privados vem desde os anos 1930, mas desrespeitá-la é uma regra desde então. Em 2012, foi aprovado e sancionado um Novo Código Florestal que passou uma borracha em milhões de hectares ilegalmente desmatados e milhões de Reais em multas associadas aos mesmos. Não bastando, a Bancada Ruralista quer rebaixar ainda mais a proteção dessas matas. Legislação ambiental não pode ser papel pintado. Além disso, a temática precisa, de uma vez por todas, deixar de ser vista como um acessório do crescimento econômico tradicional e assumir a merecida posição de condutora de um modelo de desenvolvimento inovador, mais seguro e duradouro. Governos modernos e realmente democráticos em todo o mundo têm adotado programas e legislações nesse sentido. O Brasil de Bolsonaro, não.

 

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