17 Junho 2024
Quando recebi o convite do pontífice para ir ao seu encontro no Vaticano pensei no que ela diria se ainda estivesse aqui.
O artigo é de Ricardo Araújo Pereira, humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento, autor de “Boca do Inferno”, publicado por Folha de São Paulo, 15-06-2024.
Quando recebi o convite do papa para ir ao seu encontro, juntamente com mais cem humoristas de vários países, pensei no que a minha avó diria se ainda estivesse aqui. Creio que ficaria muito orgulhosa.
Depois tentaria descobrir como se telefonava para o Vaticano para dizer: "Têm a certeza? Pensem bem. Conheço-o desde que nasceu, e a ideia de que um dia ele seria recebido aí nunca me ocorreu. Pelo contrário, sempre tive a forte suspeita de que um dia ele seria recebido no inferno, e não foram poucas as vezes em que desejei ser eu a ir lá entregá-lo pessoalmente."
Papa de bom humor é a frase escrita no desenho. Ao lado esquerdo da frase há a figura do Papa Francisco sorridente que segura com a mão direita um cordão. Vestindo seus trajes típicos - uma bata toda branca e o solidéu que é um chapéu semelhante ao quipá judaico, ele mantém o outro braço relaxado junto ao corpo. Apesar da roupa branca ser bastante longa, dá para ver que o Papa usa também uma calça preta e sapatos de amarrar.
À hora marcada, na sexta-feira, cheguei à Porta del Perugino e vi imediatamente Fabio Porchat, que fez a pergunta que nos intrigava a todos: Por que fomos convidados? Eu disse: "Há 500 anos seria para nos cortar a cabeça, Fabio. Mas agora não. Acho eu." E respirei fundo, para tentar perceber se alguém estava a atear uma fogueira nas proximidades. Não me cheirou a fumo, mas continuei desconfiado.
Entramos e sentaram-nos numa sala guardada por seis soldados da Guarda Suíça, todos vestidos com o tradicional uniforme às riscas amarelas e azuis, e com um capacete encimado por um penacho vermelho. Cada um deles segurava uma lança, que deve ser pouco prática para lutar corpo a corpo com bandidos. O que talvez explique o fato de se verem cada vez menos lanças, hoje em dia.
Pensei no trabalho daqueles homens. Alguém teve de se sentar com eles e anunciar: "Você é um dos poucos escolhidos que têm a honra de integrar o corpo militar que protege Sua Santidade, o papa, líder espiritual de um terço da Humanidade. É uma missão de grande prestígio e dignidade. Ah, é verdade, só mais uma coisa: vai ter de estar vestido de arlequim."
Nisto, entrou o papa. Não só não queria repreender-nos como leu um discurso em que dizia que era possível rir de tudo, até de Deus. Olhei para a Guarda Suíça. Os guardas nem se mexeram. Nenhuma vontade de castigar aquela heresia.
Ao que tudo indicava, não era uma heresia. Olhei para cima. Nos tetos ricamente pintados vi o Céu. Uma pessoa que eu conheço está lá. Teria ela ouvido o papa a dizer que é lícito rir de tudo? É que eu levei algumas chineladas na bunda por ela ter a opinião contrária. Receio que esteja arrependida. Não precisa. Tudo está perdoado. Sempre esteve.
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Teria minha avó ouvido o Papa dizer a humoristas que é lícito rir de tudo? Artigo de Ricardo Araújo Pereira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU