Por: Jonas | 08 Junho 2013
O papa Francisco martela contra a ambição pela carreira, como a passagem de uma cátedra episcopal para outra e, em seguida, para outra novamente. Contudo, o propósito de vincular indissoluvelmente um bispo em sua diocese, até agora, caiu no vazio. Prova disto é o “curriculum vitae” dos cardeais.
A reportagem é de Sandro Magister, publicada no sítio Chiesa, 06-06-2013. A tradução é do Cepat.
Alertar contra o “carreirismo” eclesiástico, a obsessão por “fazer carreira”, é um dos temas recorrentes na pregação do papa Jorge Mario Bergoglio. Várias vezes, tanto nas homilias das missas matutinas, em Santa Marta, como nas pronunciadas em ocasiões solenes, o Pontífice que veio “do fim do mundo” denuncia uma tentação que vem de antigamente: efetivamente, remonta-se aos tempos de Jesus, quando os apóstolos, segundo narram os Evangelhos, discutiam entre eles quem era o maior.
A denúncia do “carreirismo” eclesiástico não é, no entanto, a não ser pela reiterada frequência, uma exclusividade do atual Papa. Exatamente neste ano, são comemorados os cinco anos de falecimento do cardeal Bernardin Gantin, que no século deixado para trás lançou um memorável “Eu acuso” contra o “carreirismo” clerical. E fez isto depois de ter sido, durante 14 anos, de 1984 a 1998, prefeito da Congregação para os Bispos, do dicastério vaticano que colabora mais de perto com o Papa na nomeação dos pastores de grande parte do mundo católico.
Era o ano de 1999, quando, no dia 27 de março, “L’Osservatore Romano” publicou um artigo assinado pelo cardeal Vincenzo Fagiolo, ilustre canonista da Cúria Romana, intitulado: “Como avaliar ‘as coisas dispostas’ pela Santa Sé”. Neste, o purpurado partia de uma carta de 1928, que dom Angelo Roncalli, sendo delegado apostólico na Bulgária, havia enviado para Alfonso Maria De Sanctis, pároco da Igreja São João Batista dos Florentinos, em Roma, quando foi nomeado bispo de Segni.
Nesta carta, o futuro João XXIII o felicitava pela nomeação e reprovava os comentários que a mesma havia suscitado em Roma: “Pobre dom De Sanctis! É enviado como bispo para Segni. Poderia ter sido pior!”, ou ainda: “Enviam-no ali por pouco tempo e na espera de um posto melhor”.
Este foi o comentário do cardeal Fagiolo sobre o episódio em questão: “A dignidade do episcopado está no ‘munus’ que comporta, e este por si mesmo prescinde de toda hipótese de promoção e transferência, que deveriam ser, quando não eliminadas, cada vez mais raras. O bispo não é um funcionário, um interino, um burocrata, que se prepara para outros cargos mais influentes”.
Foi exatamente esta frase que serviu ao cardeal Gantin – nessa época decano do colégio cardinalício e primeiro africano que possuía um cargo no primeiro escalão da Cúria – para lançar sua investida contra o “carreirismo” eclesiástico.
Com o objetivo de promover uma possível solução, ou pelo menos frear o fenômeno, Gantin propôs proibir a transferência de uma diocese para outra, recuperando a práxis da estabilidade que estava em vigor nos primeiros séculos da história cristã.
Fez isto, em abril de 1999, numa entrevista publicada na revista mensal internacional “30 Dias”, então dirigida por Giulio Andreotti, o estadista católico falecido recentemente, que, entre outras coisas, era amigo de infância do cardeal Fagiolo. Gantin disse: “Quando é nomeado, o bispo deve ser um pai e um pastor para o povo de Deus. E pai é para sempre. Do mesmo modo, um bispo, uma vez nomeado numa determinada sede, em linhas gerais e por princípio, deve permanecer nela para sempre. Sejamos claros: o que existe entre o bispo e a diocese é representado como um matrimônio; e um matrimônio, segundo o espírito evangélico, é indissolúvel. O novo bispo não deve ter outros projetos pessoais. Podem existir motivos graves, gravíssimos, por razão dos quais a autoridade pode decidir que o bispo saia, para passar de alguma maneira, de uma família para outra. Fazendo isto, a autoridade tem presente inúmeros fatores e, entre estes, não se encontra, é claro, o possível desejo de um bispo mudar de sede”.
O purpurado de Benim – a quem este ano se dedicou uma cátedra na Pontifícia Universidade Lateranense – também derrubava o conceito das chamadas sedes cardinalícias, tradicionalmente metas de transferência muito ambicionadas.
Dizia Gantin, prefigurando o que talvez pudesse acontecer, precisamente, a partir do papa Francisco: “O conceito das dioceses chamadas cardinalícias deve ser muito relativizado. O cardinalato é um serviço que se pede a um bispo ou a um sacerdote, levando-se em conta muitas circunstâncias. Hoje, nos países de recente evangelização, como na Ásia ou na África, não há sedes chamadas cardinalícias, mas a púrpura é concedida à pessoa. Deveria ser assim em todas as partes, também no Ocidente”.
Portanto, para o cardeal Gantin seria necessário voltar à práxis antiga e reduzir, quase a zero, o costume de transferir um bispo de uma sede para outra mais influente: “No passado, quando aumentava o número das dioceses, era compreensível que se realizassem algumas transferências. Agora não existe esta exigência nos países em que a hierarquia católica já está assentada, como na Europa, por exemplo; ao passo que exigências deste tipo podem ainda existir nas terras de missão. Neste último caso, as transferências deveriam ser realizadas para as sedes mais necessitadas, difíceis, e não para sedes mais cômodas e prestigiadas”.
O cardeal africano, falecido em 2008, apoiou até o último instante as teses desta entrevista e chegou a desejar que se regularizasse a proibição das transferências: “Não seria ruim que se pusesse em curso um procedimento para introduzir esta norma no Código de Direito Canônico. Certamente, poderia ter algumas exceções, determinadas por motivos graves. Porém, a norma deveria ser a da estabilidade, para evitar promoções e “carreirismos””.
A entrevista de Gantin teve um eco notável nos sacros palácios e nos meios de comunicação. Entre os eclesiásticos que estiveram de acordo com o conteúdo estava o então cardeal Joseph Ratzinger, que tinha recebido a púrpura, juntamente com Gantin, das mãos de Paulo VI, em 1977.
Novamente, na revista “30 Dias”, no número de junho desse mesmo ano, em 1999, o então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e vice-decano do colégio cardinalício disse que estava “totalmente de acordo com o cardeal Gantin”. E acrescentou: “Especialmente, na Igreja não deveria existir nenhum sentido de “carreirismo”. Ser bispo não deve ser considerado uma carreira com diversos escalões, de uma sede para outra, mas, um serviço muito humilde. Penso que também o debate sobre o acesso ao ministério seria mais sereno, caso fosse visto no episcopado um serviço e não uma carreira. Também uma sede humilde, com poucos fiéis, é um serviço importante na Igreja de Deus. É claro, pode haver casos excepcionais: uma sede muito grande para a qual é necessário ter experiência do ministério episcopal; neste caso, pode se dar... Porém, não deveria ser uma práxis normal; somente em casos muito excepcionais”.
Ratzinger somente se mostrou cético sobre a possibilidade imediata de criar uma norma que impedisse as transferências de uma diocese para outra: “Pode ser pensada, embora seja complicado. É muito difícil que o Código seja mudado depois de apenas dezesseis anos de sua publicação [em 1983]. No futuro, eu também consideraria conveniente que se acrescentasse uma frase sobre esta unicidade e fidelidade de um compromisso diocesano”.
No entanto, na realidade, nem na fase final do pontificado de João Paulo II, nem no de Bento XVI, algo foi feito para tentar diminuir o fenômeno das transferências episcopais, que até o século IV estavam taxativamente proibidas; depois, já na época carolíngia, foram admitidas e chegaram a ser, com o tempo, muito comuns a partir da baixa Idade Média, como registra dom Lorenzo Cappelletti, no mesmo número de “30 Dias”:
De fato, nestes últimos decênios, as transferências de diocese são muito frequentes. Basta pensar, por exemplo, que entre os purpurados, que atualmente tem direito a voto no conclave, 28 tem em seu próprio “cursus honorum” três dioceses das quais foram bispos.
Entre estes estão os italianos Ennio Antonelli, Angelo Bagnasco, Angelo Scola, Dionigi Tettamanzi e Agostino Vallini. Os brasileiros Geraldo Majella Agnelo, João Braz de Aviz e Claudio Hummes. Os americanos Timothy Dolan, Francis George, William Levada, Roger Mahony, Edwin O’Brien, Donald Wuerl. Os espanhóis Antonio Cañizares e Lluis Martínez Sistach. Os alemães Reinhard Marx e Joachim Meisner. Os latino-americanos José Francisco Robles Ortega, Rubén Salazar Gómez e Julio Terrazas Sandoval.
O estadunidense Sean Patrick O’Malley e o equatoriano Raúl Eduardo Vela Chiriboga foram bispos, inclusive, em quatro dioceses diferentes. Ao passo que Meisner, Tettamanzi, Scola e o mexicano Robles Ortega mudaram de sede quando já eram cardeais.
Por outro lado, são apenas dez os purpurados que desenvolveram sua missão episcopal exclusivamente numa única diocese. São eles: o irlandês Sean Brady, o húngaro Peter Erdö, o alemão Karl Lehmann, o escocês Keith O’Brien, o português José da Cruz Policarpo, o croata Vinko Pulijc, o hondurenho Oscar Andrés Rodríguez Maradiaga, o brasileiro Odilo Scherer, o austríaco Christoph Schönborn, o chinês John Tong Hon e o canadense Jean-Claude Turcotte.
O cardeal Bergoglio também, antes de ser eleito bispo de Roma, teve como única “esposa” episcopal a Arquidiocese de Buenos Aires. Quem sabe, agora, ele desenterrará, novamente, a ideia lançada há 14 anos pelo cardeal Gantin e, talvez, tenha mais sorte do que Ratzinger em vê-la aplicada.
Recentemente, o padre Timothy Radcliffe, antes mestre geral dos dominicanos e de incontestável credencial progressista – ao contrário dos cardeais Fagiolo, Gantin e Ratzinger – também criticou a práxis das transferências de dioceses.
Numa entrevista de 24 de maio, no blog teológico da editora Queriniana, o padre Radcliffe disse: “Pergunto-me também se é um bem para os bispos ser deslocados de uma diocese para outra. Carregam um anel que é um sinal de que estão ‘casados’ com a diocese, mas, muitas vezes, são separados de suas dioceses originais e casados com outras dioceses. Se soubessem, ao contrário, que permaneceriam em suas dioceses, então poderiam prestar-lhe sua completa atenção. É verdadeiramente estranho que seja permitido aos bispos se divorciarem de sua diocese, mas não as pessoas unidas em matrimônio!”.
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A praga do divórcio dos bispos com as dioceses - Instituto Humanitas Unisinos - IHU