05 Março 2013
Os custos em dólar dos processos por pedofilia em Los Angeles são astronômicos, mas não são nada em comparação aos custos incorridos pelo povo de Deus, que pagou o preço dessa traição colossal com a sua fé.
A opinião é do dominicano norte-americano Thomas Doyle, advogado canônico, terapeuta e antigo defensor das vítimas de abusos sexuais do clero. Trabalhou como consultor para os advogados que representam as vítimas de abuso da Arquidiocese de Los Angeles. O artigo foi publicado no sítio National Catholic Reporter, 02-03-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Ainda em 2004, nos primeiros dias da aparentemente interminável luta por justiça por parte das vítimas de vários padres de Los Angeles, eu conversei com um dos advogados que representaram vários desses homens e mulheres. Ele disse: "No momento em que isso acabar, nós vamos descobrir o quanto vale o chapéu cardinalício de Roger Mahony". Eu suspeito que nenhum de nós percebeu que essa realmente era uma declaração profética. No fim, o custo foi calculado em dólares, em confiança, em respeito e em fé.
O custo também deve incluir a perda da verdade.
As respostas midiática à ordem final de revelar todos os arquivos dos padres predadores e as descrições da saga de 10 anos que precederam a decisão do tribunal no dia 31 de janeiro não chegam nem perto de contar a história completa do pesadelo que levou até aquele dia. O último grande ato – a censura sem sentido, por parte do arcebispo José Gomez, de Mahony e a réplica lamurienta de Mahony em seu blog – tem tudo a ver com eles, e não com o verdadeiro núcleo dessa década quase inacreditável de eventos. No centro de tudo isso, estão as vítimas dos padres de Los Angeles, várias centenas de homens e mulheres. No entanto, a batalha judicial que seguiu em frente não só os ignorou, mas também continuou provocando dor em suas almas já maculadas.
Os meios de comunicação possivelmente não poderia contar o enorme custo que isso teve sobre tantas pessoas. O preço do barrete vermelho de Mahony certamente é exorbitante em dólares. Ele contratou um exército de advogados caros para defender o seu intencional mau tratamento dado às denúncias de abuso sexual, e depois criou obstáculos legais para a divulgação dos arquivos dos culpados. O custo real do seu chapéu estava nas pessoas.
Havia 508 vítimas/sobreviventes como demandantes dos processos que finalmente chegaram a um acordo em 2007 por um valor 660 milhões de dólares. Essas pessoas haviam passado por uma grande agonia durante os meses e anos em que foram manipuladas, enganadas e novamente vitimadas antes que qualquer uma delas fosse ao tribunal. Depois, a primeira fase do pesadelo começou.
A conclusão dos processos foi longa, tediosa e tão bizarra que ninguém possivelmente poderia descrevê-la com precisão. Durante todo o tempo, os advogados contratados pelo cardeal fizeram o máximo para prolongar qualquer coisa que se assemelhasse a uma solução justa. Quando os defensores dos bispos em todo o país acusaram os advogados das vítimas de serem gananciosos, eles deveriam ter olhado para as dezenas de advogados que compunham a brigada de Mahony, todos muito caros e nenhum deles trabalhava pro bono nem mesmo por um hora. Sempre que o cardeal aparecia para um depoimento ou para um encontro envolvendo os casos, ao menos seis e geralmente dez advogados o acompanhavam. Quem pagou as taxas legais? O "povo de Deus" da arquidiocese de Los Angeles. Quem mais?
Quantas desses membros do povo de Deus poderiam ter se beneficiado do dinheiro desviado para os advogados assim como para a empresa de relações públicas? Nunca saberemos.
O processo teve o seu custo não só sobre as vítimas, mas também sobre os seus advogados. Todos eles estavam trabalhando em contingência, ou seja, eles estavam visualizando a desgraça financeira, caso todo o empreendimento não desse certo. Eles trabalharam muito acima e além do que era necessário para o que eles ganhavam. Alguns deles ficaram tão enojados com as palhaçadas intermináveis da Igreja no tribunal e com a mesa de mediação que abandonaram a prática do direito quando tudo acabou. Alguns deles, que haviam sido, em um determinado momento, católicos praticantes perderam todo o respeito e a confiança na instituição Igreja. Um advogado se pronunciou em um encontro após o acordo e disse: "Eu não acredito mais em Deus". Esse homem não apenas havia representado as vítimas de Los Angeles e de outros lugares durante anos, mas tinha fornecido para muitos o apoio emocional e espiritual tão essencial depois das suas experiências com a Igreja. Ele me disse uma vez que teve que fazer 70 viagens de avião de um lado ao outro do país por causa do caso.
Como parte do acordo final de 2007, a arquidiocese concordou em revelar os arquivos dos perpetradores. A tinta não estava seca sobre o acordo quando o cardeal lançou o que se tornaria uma série aparentemente interminável de objeções legais e de atrasos processuais que, em certo ponto, chegou até à Suprema Corte dos EUA.
O núcleo da reivindicação legal de Mahony para impedir a divulgação daquilo que ele já havia concordado em divulgar foi a ideia de que todas as comunicações entre um padre e o seu bispo são privilegiadas, no sentido de que não podem ser divulgadas sem violar a Primeira Emenda da Constituição norte-americana. Ele e sua equipe jurídica basearam isso no que eles chamaram de "privilégio de formação". Os sacerdotes estão sempre em formação, e o seu bispo é como o seu pai, guiando-os e ensinando-os ao longo do caminho, ou ao menos é isso que eles dizem.
O gabinete do procurador distrital do condado de Los Angeles me pediu para escrever uma declaração de apoio ao seu pedido de obter os arquivos. Eu o fiz e nela apresentei provas documentais de que o "privilégio de formação" era uma ficção da imaginação do cardeal, sem nenhuma base no direito canônico, na teologia, na história da Igreja ou nos costumes. A arquidiocese perdeu. Naturalmente, ela recorreu, e eu me tornei um dos seus alvos. Uma parte significativa da sua causa oposta não era um sério desafio ao conteúdo da minha declaração, mas sim um ataque pessoal detalhado e invasivo contra a minha pessoa, minhas credenciais e minha motivação. Isso não levou a lugar algum. Um perito especial anulou quase todas as objeções apresentadas contra a declaração.
A partir daí, o apelo do cardeal foi à Suprema Corte da Califórnia, onde, no dia 25 de julho de 2005, foi novamente negado. Mahony e seus advogados apelaram à Suprema Corte dos EUA. No dia 17 de abril de 2006, a Suprema Corte se recusou a rever as decisões dos tribunais inferiores e, portanto, suas decisões ficaram de pé.
Essa batalha envolveu os arquivos de dois padres. Seria de se esperar que o cardeal e sua equipe chegassem ao ponto, mas não o fizeram. A luta continuou até janeiro deste ano. Mesmo assim, com a derrota final olhando-os nos olhos, os advogados do cardeal planejaram mais uma estratégia para mais um adiamento e mais tempo para girar, enrolar e demorar. Não era para ser. No dia 31 de janeiro, o juiz ordenou que o tesouro de cerca de 30.000 páginas de documentos fosse divulgado e que eles tinham que mostrar os nomes do cardeal e de seus assessores.
Pouco tempo depois, descobriu-se que a arquidiocese havia liberado apenas cerca de 12 mil páginas, e que muitas delas tinham os nomes das autoridades da Igreja borrados, contrariando a ordem do juiz. A resposta pública foi imediata. O principal advogado do cardeal, Michael Hennigan, disse não ter nenhuma ideia de por que os documentos estavam faltando e prometeu que mais documentos estariam vindo. Mais enrolação e obstáculos!
A saga não terminou e provavelmente nunca terminará. O dano se estende para além das vítimas, das suas famílias e dos jogadores-chave na derrocada legal, até a própria Igreja. O cardeal – em sua obsessão autoserviçal a primeiro enganar as vítimas e depois proteger a si mesmo e a administração arquidiocesana da exposição das suas ações desprezíveis ao sacrificar a inocência de crianças pela imagem clerical – prejudicou severamente qualquer possibilidade de cura. Esse pesadelo de quase de dez anos fez com que a credibilidade mal existente da hierarquia entrasse em queda livre.
Do papado para baixo, a história de abusos de Los Angeles é marcada apenas por esforços narcisistas para salvar uma imagem terminalmente despedaçada. Há poucas dúvidas de que o Papa Bento XVI e seu antecessor sabiam o histórico da arquidiocese. Relatos não confirmados dizem que representantes vaticanos estavam presentes nas negociações de acordo. Afinal, 660 milhões de dólares não é café pequeno, até mesmo para o Vaticano.
Quanto vale o barrete do cardeal e quem pagou a conta? No fim, os custos em dólar são astronômicos, mas não são nada em comparação aos custos incorridos pelo povo de Deus, que pagou o preço dessa traição colossal com a sua fé.
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Quem pagou a conta do chapéu cardinalício de Roger Mahony? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU