23 Março 2022
Aos 81 anos, o sertanista Sydney Possuelo mantém os traços que marcaram a sua vida pública de funcionário da Fundação Nacional do Índio (Funai). Provavelmente a resistência física necessária para mais de 40 anos em expedições nas profundas florestas amazônicas deixaram-lhe como herança um corpo em forma. Mas, muito mais do que isso, ele conserva a determinação em responder desafios. E foi rápido que devolveu ao governo federal a medalha e diploma de Mérito Indigenista que recebeu do Ministério do Interior em 1987, por “relevantes serviços prestados à causa indígena”.
A devolução aconteceu no último 17 de março, no dia seguinte à publicação no Diário Oficial da União da concessão da mesma honraria ao presidente da República Jair Bolsonaro, desta vez dada pelo Ministério da Justiça. Debochado e cruel, Bolsonaro apareceu em cerimônia de cocar na cabeça, aos risos, e desejou aos indígenas que se transformem “em iguais, se sentindo exatamente como nós”. Irritado, Sydney ressalta que o presidente já desferiu elogios à cavalaria norte-americana por sua competência em dizimar indígenas antes de se tornarem problema para o país.
“Tive a medalha por 35 anos. Guardei-a, cultivei-a com carinho. Essa medalha representou a maior parte da minha vida, da minha dedicação. Mas não é uma questão pessoal, os povos indígenas foram muito mais ofendidos. Transformaram o algoz em herói”, afirma o sertanista. Na carta, Possuelo justifica a devolução da honraria: “Entendo, senhor Ministro, que a concessão do Mérito Indigenista ao senhor Jair Bolsonaro é um flagrante, descomunal, ostensiva contradição em relação a tudo que vivi e a todas as convicções cultivadas por homens da estatura dos irmãos Villas Boas”.
Presidente da Funai entre 1991 e 1993, durante o governo de Fernando Collor de Mello, Sydney Possuelo aproveitou o cargo para agilizar muitas demarcações de terras indígenas, entre elas a dos Yanomami, homologada em 1992, tarefa facilitada pela atenção internacional na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO-92), que aconteceu no Rio de Janeiro. Outra marca deixada na política indigenista por ele foi acabar oficialmente com os contatos com indígenas isolados pelas frentes de atração.
Sydney Possuelo recebeu a Amazônia Real por 2 horas e 10 minutos na Asa Sul em Brasília. Não foi preciso bater à porta, que já estava aberta em frente ao elevador e permitia entrever o apartamento que por si só conta a história de seu morador. Ele gritou do fundo, sem ainda aparecer. “Pode entrar.” Conversou sobre os principais episódios de sua trajetória e discorreu sobre desesperanças, não apenas a respeito dos povos indígenas. “Somos uma sociedade violenta. Contra negros, mulheres, quilombolas”. Ele considera que hoje mais do que nunca a violência está não só nas ruas, mas dentro dos lares.
Solícito em responder perguntas, Possuelo não escondeu a indignação que muitas vezes expressou de modo duro ao longo da vida de trabalho. Em um momento encheu as bochechas de ar e expirou com ruído baixo, em clara demonstração de raiva pela situação nacional. “Estamos cada vez mais para trás nas estatísticas da decência”. O sertanista atribui a principal responsabilidade ao Congresso.
A entrevista com Sydney Possuelo é de Cristina Ávila, publicada por Amazônia Real, 19-03-2022.
Nesse episódio da devolução da medalha, muita gente compreende o seu ato, mas não se conforma em devolver algo tão simbólico. Como é isso para você?
A entrega da medalha é um fato político. Devolver é a mesma coisa que aceitar. Eu poderia simplesmente não aceitar. Aquela honraria perdeu a razão. Dada a Bolsonaro não me interessa mais. Em primeiro lugar, os povos indígenas e a memória dos povos indígenas foram ofendidos. Em segundo lugar estão as minhas motivações pessoais. Eu pensava que fazia parte de um grupo distinto. Isso me fazia cultivá-la. Ao ser entregue pra qualquer um, ela perde a razão. É o mesmo que chamar o ex-ministro da boiada (do Meio Ambiente, Ricardo Salles) pra dar-lhe uma medalha em defesa do meio ambiente. Desmoraliza a medalha, ofende os povos indígenas e nós que a recebemos.
Há uns 14 anos você já falava em desesperança com questões relacionadas à política indigenista nacional. E agora?
Piorou. Agravou mais o quadro por se tratar de política discutida. Agora a política é adrede, pensada e colocada dentro do governo, usando instrumentos como a Funai, o Ministério do Meio Ambiente contra os povos indígenas. Por isso é mais perigosa. É disseminada dentro da própria máquina de governo. Falo em meio ambiente porque é impossível falar em índios sem meio ambiente. Principalmente os povos isolados ou mais afastados, que têm atividades de grande dependência da natureza. Aqueles mais integrados nas periferias das cidades estão reduzidos a pequenos espaços, a aculturação trouxe problemas diversos. Os isolados vivem mais felizes. Carregam uma postura de dignidade. Língua, história, desejos, cultura que os demais perderam. Os demais perderam e não são integrados. Quando entram na nossa sociedade, geralmente entram nos últimos escalões, nos degraus mais baixos da sociedade.
O que acha da postura escancarada como o presidente diz o que pensa?
É triste quando se vê que o atual presidente desde a campanha diz: ‘não vou demarcar terras indígenas’. Como ele pode falar contra a Constituição? E fica por isso mesmo? Não aparece nenhuma força contrária? Ele jurou cumprir a Constituição, e não faz. Onde está o Ministério Público? Pagamos esses servidores e não fazem nada. O que nós devemos fazer? Quais caminhos devemos tomar? Como corrigir? Parece que cada vez que votamos pioramos. Não estou aqui defendendo a violência. Sou democrata, defendo a transformação em nível político. As terras deveriam ser demarcadas em cinco anos (depois de promulgada a Constituição, em 1988).
Como vê o Brasil de hoje?
O Brasil está um país feio. E não se vê se movimentar seriamente no sentido de traçar um plano. A nação precisa construir caminhos para encontrar a ética. O país não busca futuro, não produz justiça social, justiça econômica, mas sim o desmantelamento. A sociedade inteira está perdendo para os bandidos e para muitos políticos. O quadro nacional é extremamente difícil para o povo em geral. É uma sucessão de desgraças, de tragédias como a de Brumadinho (MG), a do Rio de Janeiro (Petrópolis). As pessoas sem indenização. Estados, municípios e governo federal não têm políticas para prevenção dessas coisas, pois não atingem os interesses dos políticos. Somos uma sociedade violenta. Não sei de onde saiu que somos cordiais, bonzinhos. Então quando entra na intimidade das pessoas, vemos uma profunda violência, chega aos lares, no individualismo. É inacreditável. As mulheres são agredidas. A sociedade está cada dia pior.
O povo está sendo violentado. E quem são os favorecidos?
São favorecidas as necessidades econômicas do país, que protegem o roubo de madeira, os garimpos que poluem e destroem. Por detrás dessa ação contra os povos indígenas – não diria que existe a intenção direta… ‘vamos matar porque não gostamos dos índios’ – mas por trás disso existe um acordo implícito, tácito com o desenvolvimento nacional. É a volúpia desenvolvimentista da sociedade, que só destrói.
De quem é a responsabilidade?
O Congresso Nacional é horroroso. O Congresso tem responsabilidade muito maior. São quase 500, quase 600 parlamentares. Há alguns bons no Congresso, mas se dissolvem na ruindade. As autoridades são indiferentes aos desvalidos, à miséria, à violência contra as mulheres. Estamos cada vez mais para atrás nas estatísticas da decência, do bem-estar social, cada vez mais descendo e o povo cada vez mais sofrendo. São eles que fazem as leis. Acompanham ou deveriam acompanhar o que está acontecendo. Para isso eles tem toda a parafernália que pagamos.
Uma vez afirmou que índios isolados estavam fabricando colares com plástico. O que isso simboliza?
Os colares eram de conchas, na medida em que fazendas surgiam, desapareciam as conchas e apareciam os plásticos, copos, garrafas. Os índios começaram a fazer grandes losangos em plástico de diversas cores. Essas pessoas viviam como donas de sua língua, senhoras de sua história. Felizes, sorridentes. Não são como eram. A proximidade de nossos conglomerados já provoca alterações. É deletéria. Modifica a própria terra, com hidrelétricas, fazendas, os índios vão perdendo espaço para a sua sobrevivência. Eram mais inteiros. Em 1987, eu mudei a política com a criação do Departamento de Índios Isolados. Transformei a política de contato para política de não se efetuar mais contato, para proteger índios, para que vivam isolados até que resolvam eles próprios fazer contato.
Por que criou o Departamento de Índios Isolados?
Das coisas administrativas, essa mudança de política governamental de contato para não contato reputo como uma das coisas mais importantes que eu possa ter feito. Eu era um funcionário da Funai, não era presidente. Foi praticando políticas anteriores que vi que estavam erradas. O contato dos Arara no Pará definitivamente consolidou a ideia em mim de ter que mudar o contato. Houve contatos piores do que esse. Mas nesse eu tinha conseguido a melhor de todas as estruturas que já tive para a proteção dos indígenas. Eu consegui helicóptero, médicos, remédios, eu tinha conseguido tudo. Mesmo assim, com o contato morreram índios. Poucos, mas morreram. Você não vai correr atrás do índio com remédio na floresta. Quando fica doente, ele sai correndo e vai se tratar com as ervas dele. E morre lá. Porque não tem erva que cure as doenças como as gripes que são levadas pelo contato.
Você não é uma pessoa que tem tatuagens indígenas ou anda com adereços. Por quê?
Aqui, uma foto minha. Nu com um ano de idade, como os índios. Mas eu nunca andei nu entre os índios. Somente pra tomar banho e assim mesmo só quando estava entre os homens. Considero uma questão de respeito. Quantas vezes vi os Yanomami soprando rapé, os indígenas usando o chá do santo daime, nunca usei. Não é da minha cultura. Sou citadino. Os índios sentem falta da sua floresta tanto como eu sinto saudades de casa quando estou na floresta. A floresta é fantástica. Coisa boa estar lá. Mas lá é a casa dos povos indígenas. Eu não sou indígena. Sinto saudade das coisas da minha etnia.
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Sertanista devolve medalha em protesto contra Bolsonaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU