18 Março 2022
"O que é a guerra? Pode ser avaliada de três maneiras: como uma estrutura permanente e até vitalizadora do fenômeno humano; como o mal absoluto ao qual sempre e em qualquer caso se opor, sem nunca o praticar em nenhuma ocasião e, portanto, desmantelando os exércitos; como um mal ditado pela ganância e sede de poder do qual é preciso se defender, às vezes até com armas, mas sempre tendo a paz como meta. A guerra é sempre. A guerra é nunca. A guerra é às vezes", escreve o teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Teologia Moderna e Contemporânea da Universidade San Raffaele de Milão, e ex-professor de História das Doutrinas Teológicas da Universidade de Pádua, em artigo publicado por La Stampa, 17-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Recordo muitas vezes nestes dias a resposta de Mordo Nahum a Primo Levi durante o seu regresso de Auschwitz. Judeu poliglota de Tessalônica chamado de "o grego", Mordo Nahum foi um dos quais Levi afirma que "poucas vezes em minha vida, antes e depois, senti tal sabedoria concreta pairando sobre minha cabeça". Explicou-lhe que quando há guerra é preciso pensar antes de tudo em duas coisas, aos sapatos e à comida, e exatamente nessa ordem, porque sem sapatos não se pode andar à procura de comida. Levi objetou: "Mas a guerra acabou." Resposta do grego: “A guerra é sempre”. Foi levando a sério essas palavras que Levi intitulou seu livro A Trégua, para enfatizar precisamente que "a guerra é sempre", portanto não se pode ter paz, mas apenas, justamente, trégua.
A suposição de Mordo Nahum reflete uma filosofia precisa. É uma visão global do mundo, da natureza, da história, do humano e do divino, explicitada pela primeira vez no Ocidente por outro grego, o filósofo Heráclito, chamado skoteinós, ou seja, obscuro, que veio a declarar da maneira mais clara: "Polemos é o pai de todas as coisas, de todos os reis" (DK 22B53). No mesmo período, na Sicília, outro filósofo, Empédocles, concebia a realidade como uma dialética de duas forças originais, a Amizade e a Contenda, argumentando que esta última "é a causa da corrupção não menos do que da realidade das coisas" (DK 31B37). Mais tarde, muitos outros pensadores, querendo entender a essência da realidade, viram na guerra uma expressão natural e inevitável do ser e seu desdobramento, tanto como natureza quanto como história, entre eles Maquiavel e Giordano Bruno.
Para Hobbes, não só a política mundial, mas também a sociedade civil pode ser descrita como uma "guerra de todos contra todos" e para sentir a força de seu ponto de vista não é preciso pensar na Ucrânia, basta considerar um condomínio, ou mesmo uma família. Hegel, cujo idealismo nada tinha a ver com o moralismo, mas tinha a pretensão de ser fenomenologia, dizia da guerra que "através dela se mantém a saúde ética dos povos"; e acrescentava: “Assim como o movimento dos ventos preserva o mar da podridão a que seria reduzido por uma calmaria duradoura, a guerra preserva os povos da podridão a que seriam reduzidos por uma paz duradoura ou mesmo perpétua” (Filosofia do Direito, n. 324, com polêmica alusão a Kant, como veremos).
Marx e Nietzsche, nobres pais da esquerda e da direita, cada um deles compartilhava essa filosofia da história à sua maneira. Hoje é também a visão da natureza dominante no âmbito científico, eis por exemplo as palavras de Richard Dawkins, biólogo evolucionista: "Eu acredito que a imagem de uma natureza ‘com os dentes e as garras ensanguentados’ resuma de maneira admirável a moderna concepção da seleção natural” (O gene egoísta, p. 4). Então, quem é Putin? Um fenômeno perfeitamente natural. Da mesma forma o são os ucranianos que se defendem, o Ocidente que os arma, os chineses que apoiam Putin, os islâmicos que se preparam para festejar os escombros a que Alá condenou o Ocidente e todos os outros atores no cenário mundial: todos os lobos famintos que devoram presas indefesas porque essa é a condição sob a qual "todos" nascemos.
Na frente diametralmente oposta de "a guerra é sempre" está a filosofia segundo a qual "a guerra é nunca": é a visão do mundo hoje chamada de pacifismo, igualmente antiga. Até onde sei, seu primeiro e mais coerente defensor foi o indiano Mahavira, fundador do jainismo, religião no centro da qual está a não-violência absoluta (ahimsa), uma disposição que os jainistas observam escrupulosamente não apenas abstendo-se de qualquer tipo de guerra, inclusive a defensiva, não só não comendo carne e peixe, mas também se abstendo de batatas, cenouras, cebolas e qualquer vegetal que seja tubérculo ou raiz e, portanto, potencialmente gerador de vida. Também o Buda, um contemporâneo de Mahavira e em boas relações com a filosofia jainista, fez da não-violência absoluta uma pedra angular ao condenar toda forma de guerra, incluindo a guerra defensiva.
Tal abordagem defende que "a guerra é nunca" obviamente não no sentido de que não há guerras, mas no sentido de que elas são sempre e em qualquer caso uma traição absoluta da verdadeira lógica a que somos chamados, que é a paz. A especificidade de quem abraça esta visão do mundo é fazer da paz não só o fim a que se orientar, mas também o meio para a obter, porque a paz só se obtém através da paz. É, portanto, negada da maneira mais radical legitimidade ética a toda forma de guerra, incluindo a guerra defensiva. As forças armadas e as armas são consequentemente consideradas instrumentos de morte a serem totalmente abolidos e o mais rápido possível. Esta é a posição de Dom Milani, Aldo Capitini, Martin Luther King, Thich Naht Hanh, Gino Strada, Padre Zanotelli.
Entre as duas extremidades está a terceira posição que considera a guerra uma doença, ou seja, uma expressão não fisiológica (como acredita a posição 1), mas patológica da humanidade, que é "humana" justamente porque é capaz de evoluir em relação à mera lógica natural elaborando solidariedade, cultura, harmonia. Aqueles que, como eu, se colocam nesta terceira perspectiva se dispõem diante da guerra fazendo de tudo para evitar a sua eclosão, mas não excluem a licitude e mesmo o dever da guerra defensiva (como considera a posição 2).
Na antiguidade clássica foi a posição de Sócrates, que amava a paz, mas que participou como hoplita em três campanhas militares do exército ateniense; da mesma opinião foram Platão, Aristóteles, Marco Aurélio. É também a posição majoritária do cristianismo, refletida pelos dois maiores teólogos cristãos de todos os tempos, Agostinho e Tomás de Aquino, e no século XX por Emmanuel Mounier; e não é por acaso que o Magistério Católico sempre apoiou a licitude ética da guerra defensiva (cf. artigos 2263-2265 do Catecismo atual).
Para a teologia protestante, pense-se em Karl Barth que apoiou a resistência armada dos tchecos e Dietrich Bonhoeffer que participou da conspiração da inteligência militar contra Hitler. Para a filosofia moderna, o expoente mais significativo dessa posição é Kant. Ele tinha grande apreço pela paz, fez dela o propósito de sua filosofia política ao prefigurar as futuras condições de paz entre os estados em seu ensaio de 1795 Pela paz perpétua.
No entanto, Kant sabia também que no meio tempo as guerras não cessariam e que a tarefa do Estado continuava a ser a de defender militarmente os seus cidadãos, como demonstra o seu elogio aos militares no parágrafo 28 da Crítica do juízo, bem como a sétima tese do texto Ideia de uma história universal, textos que aqui só posso referir por limitações de espaço. Por fim, gostaria de salientar que esta terceira perspectiva foi também a posição de Confúcio, que sempre falava com grande respeito dos assuntos militares, e do livro sagrado mais importante do hinduísmo, o Bhagavad gita, no qual o deus Krishna exorta o guerreiro Arjuna, angustiado por um conflito de consciência, a cumprir seu dever como guerreiro.
Raciocinando sobre o ideal de uma sociedade não violenta, Norberto Bobbio distanciou-se do pacifismo ao escrever que as democracias já dentro delas usam a força para fazer cumprir a lei, mas ainda mais vivem "num universo de estados, a maioria dos quais não são democráticos" e em que, portanto, a solução de conflitos "é sempre deixada, em última instância, à força". E concluía: "A política interna está condicionada pela política externa e a política externa é uma política cuja manifestação última, e até agora ineliminável e não eliminada, é a guerra" (Ética e política, pp. 1047-1048). São palavras de 1982 que hoje encontram sua mais triste confirmação.
Então, o que é a guerra? Pode ser avaliada de três maneiras: como uma estrutura permanente e até vitalizadora do fenômeno humano; como o mal absoluto ao qual sempre e em qualquer caso se opor, sem nunca o praticar em nenhuma ocasião e, portanto, desmantelando os exércitos; como um mal ditado pela ganância e sede de poder do qual é preciso se defender, às vezes até com armas, mas sempre tendo a paz como meta. A guerra é sempre. A guerra é nunca. A guerra é às vezes. Cabe à consciência de cada um a tarefa de refletir e, quando necessário, se posicionar. Recordando sempre estas palavras de Bobbio: “Somos como viajantes num labirinto. Agimos como se houvesse uma saída. Mas ainda não sabemos onde está".
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A guerra é sempre, a guerra nunca. A expressão patológica da humanidade. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU