18 Outubro 2021
"Parecia que o professor estava completando suas lições sobre a revolução: 'É um ato de esperança heroica, mas cega, e quando a esperança é cega e não tem outro fundamento senão a própria insatisfação com o mundo, o desejo espasmódico de outro mundo completamente diferente e nunca antes visto, finalmente livre e justo e abençoado e resgatado da violência subversiva, essa nada mais é que a máscara do desespero'", escreve o jornalista italiano Ezio Mauro, ex-diretor dos jornais La Stampa e La Repubblica, em artigo publicado por La Repubblica, 17-10-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
O professor entrou na sala de aula no primeiro andar com a pasta cheia de papéis, como sempre, e colocou-a sobre a mesa. Dois passos, um pigarro nervoso, mais passos com as mãos cruzadas atrás das costas, como se o intervalo acadêmico ainda não tivesse terminado, ou fosse esperar algo. Depois, uma olhada aos bancos, lotados, para a plateia em pé no fundo: ex-alunos junto com estudantes, cidadãos comuns que vieram aqui no Palazzo Nuovo, colegas de faculdade ou de outras disciplinas. Por um momento, veio-lhe à memória outra sala pequena, mas lotada, com professores que quiseram assistir à sua primeira aula de Filosofia do Direito, no antigo palácio dos Marqueses na Universidade de Camerino onde tudo havia começado, em dezembro de 1935. Como então, sentiu a tentação de descer da cátedra, para falar cara a cara com aqueles que tinham vindo ouvi-lo.
Haviam se passado 44 anos, quase meio século de ensino. Porque aquele dia 16 de maio de 1979, uma quarta-feira anônima em Turim, foi para Norberto Bobbio o último dia como professor: a aula número 54.
Quando o professor começou a falar, os gravadores dos estudantes já estavam ligados sobre a mesa. Quarenta anos depois essas palavras retornam, porque depois da formatura de quatro estudantes reunidos com Michelangelo Bovero, o aluno predileto e depois sucessor de Bobbio, transcreveram os textos daquele último ano de ensino, integrando-os com as notas. Donzelli publica hoje aquelas aulas de filosofia política em um volume com o prefácio afetuoso e fiel de Bovero, e com o mesmo título escolhido pelo professor para seu curso final: Mudança política e revolução. É como se na sua passagem final a paixão civil de Bobbio finalmente se reunisse publicamente com o seu compromisso de docência, após uma vida passada buscando a esquerda nas suas contradições e nas potencialidades dentro da vida do país, e estudando-a nas suas passagens históricas, na história do pensamento e nos infinitos modelos conceituais de sua conturbada história.
O título reúne e destaca o conflito histórico infinito entre o espaço reformador e o impulso revolucionário, a tensão irreconciliável entre o reformismo e o maximalismo que se contrapuseram por um século sem encontrar uma composição unitária para duas interpretações diferentes do mesmo impulso para a emancipação popular, e para a transformação da sociedade na direção da justiça e da igualdade.
Como num testamento intelectual deixado aos seus alunos, Bobbio traça a história do pensamento ocidental, de Platão a Kelsen, organizando no estudo filosófico uma verdadeira investigação sobre a transformação dos sistemas, isto é, sobre as diferentes formas de passagem de uma forma política. a outra, até identificar os vários tipos de "mudança" política, e chegando a Hegel, Marx e ao contemporâneo. Os clássicos não são apenas revisitados, mas ressuscitados pelo modus docendi do professor, que os coloca cada vez em relação com os problemas da época, as contradições da fase, fazendo-os assim agir.
E é justamente o espírito do tempo que explica o espaço e o peso deixado no curso para a teoria da revolução. De fato, Bobbio apresenta essas aulas no final dos anos 1970, uma temporada angustiante de morte e de violência, atravessada cotidianamente pelo mito e pelo medo da revolução, vivida nas ruas italianas pelo terrorismo das Brigadas Vermelhas. E o professor sente o dever de colocar à disposição de seus alunos os conceitos, as categorias, os instrumentos intelectuais para interpretar o problema da revolução e julgá-la. A partir da relação entre mito e realidade que se unem pela primeira vez com a tomada da Bastilha.
Antes, a sociedade mais justa era pensada como um ideal transcendente, um objetivo indefinido: depois, entende-se que a revolução é um acontecimento concreto, é imanente, um ideal que se pode realizar e entra na história. Mas, justamente quando a utopia se torna realidade, também se torna objeto de verificação, suscita a crítica, até a acusação capital do revolucionário de ter uma meta demasiado alta para poder ser alcançada, com a condenação da revolução de ser sempre algo inacabado, que muitas vezes trai a si mesma, corrompendo-se em seu oposto. A terrível crônica daqueles dias serve de contraponto às lições, dobra os conceitos à realidade. Quando Moro é assassinado por seus sequestradores, Bobbio se levanta de sua mesa para simplesmente ler uma página de Max Weber:
“Não é o florescer do verão que espera por nós, mas uma noite polar, gelada, sombria e brutal. A política é como a perfuração lenta de tábuas duras. E mesmo os que não são líderes nem heróis devem armar-se com a fortaleza de coração que pode enfrentar até mesmo o desmoronar de todas as esperanças. Somente quem, frente a tudo isso, pode dizer “Apesar de tudo!” tem a vocação para a política”. Depois de uma pausa, Bobbio acrescenta: "Nós também, continuamos apesar de tudo".
Em seus artigos na Stampa, como lembra Bovero, parecia que o professor estava completando suas lições sobre a revolução: “É um ato de esperança heroica, mas cega, e quando a esperança é cega e não tem outro fundamento senão a própria insatisfação com o mundo, o desejo espasmódico de outro mundo completamente diferente e nunca antes visto, finalmente livre e justo e abençoado e resgatado da violência subversiva, essa nada mais é que a máscara do desespero”.
Chegamos assim ao último dia, à lição 54. Entre mudança e revolução - perguntam os alunos a Bobbio -, o que o senhor pensa? “Weber costumava dizer que a cátedra não é para os profetas e os demagogos, e eu sempre disse que mesmo que cada um de nós tenha suas próprias ideias políticas, quando ensina é melhor mantê-las de fora. Por isso, respondo não com as minhas próprias palavras, mas com as de Popper: ‘A violência gera sempre mais violência. E revoluções violentas matam os revolucionários e corrompem seus ideais. Os sobreviventes são apenas os mais habilidosos na arte da sobrevivência. Eu defendo que somente em uma democracia, em uma sociedade aberta, temos a possibilidade de eliminar qualquer inconveniente. Se destruirmos essa ordem social com uma revolução violenta, não só seremos responsáveis pelos pesados sacrifícios da própria revolução, mas criaremos uma situação que torna impossível eliminar os males sociais, a injustiça e a opressão’”. Bobbio acrescenta algo mais: “Se buscarmos o verdadeiro sentido da mudança histórica, da revolução industrial à revolução feminina, vemos que nenhuma dessas mudanças ocorrem de repente e de forma violenta, mas todas se realizam ao longo do tempo, gradativamente, dia após dia, quase sem nos apercebamos”.
Mas Lenin e Trotsky identificaram fisicamente o lugar do poder em São Petersburgo, e ao conquistar o Palácio de Inverno eles conquistaram o poder: sim, conclui Bobbio sua última lição, "mas o filósofo polonês Kolakowski nos avisa que o mal da sociedade não é poder, mas a alienação. Então eu pergunto a vocês: onde fica o Palácio da Alienação?”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A última aula do professor Norberto Bobbio. Artigo de Ezio Mauro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU