29 Novembro 2021
"Como, então, acreditar na boa fé da Europa, quando a OMS exerce sua liderança sanitária para anunciar a inevitabilidade de um tratado pandêmico, com a aprovação da grande indústria farmacêutica?", escreve Nicoletta Dentico, jornalista e analista sênior de políticas em saúde global e desenvolvimento, que atualmente lidera o programa de saúde global da Sociedade para o Desenvolvimento Internacional (SID), em artigo publicado por Avvenire, 27-11-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Para vencer a pandemia, é necessária uma moratória sobre os direitos de propriedade intelectual. Mas Bruxelas puxa o freio e propõe o caminho das licenças voluntárias e da abertura dos mercados.
Apenas algumas semanas atrás, uma estrondosa mobilização internacional mantinha alta a atenção sobre os lobbies do setor fóssil e financeiro que interferiam na COP26, até suas reviravoltas finais.
Menos estrondoso que aquele acordo climático, mas não menos tenaz, o barulho da mobilização está agora se movendo para Genebra. Aqui, por um hábito histriônico da história, ou por um domínio escatológico dos sinais dos tempos, dois eventos decisivos estão programados no giro de poucos dias: a XII Conferência Interministerial (MC12) da Organização Mundial do Comércio (OMC ou WTO) e a sessão especial da Assembleia Mundial da Saúde (OMS). A OMC, mesmo que ontem à noite se falasse em um possível adiamento da cúpula, deve negociar um plano global de retomada pós-pandemia, em dificuldades após vinte anos de Doha Rounds fracassados. A OMS discutirá a oportunidade de negociar um novo tratado pandêmico para a preparação e resposta às próximas crises sanitárias, consideradas como destino inevitável.
Os delegados explicam os esforços diplomáticos com a necessidade de 'salvar o multilateralismo', mas em Genebra respira-se um ar de substancial paralisia e intransponível divisão sobre as estratégias a serem adotadas para o futuro. Por falar em Covid, no centro da agenda na MC12 está a espinhosa questão da moratória dos direitos de propriedade intelectual proposta em outubro de 2020 pela Índia e pela África do Sul. Uma medida que visa desbloquear os monopólios que impedem o acesso ao conhecimento médico e seu uso para ampliar e deslocalizar a capacidade de produção não só para as vacinas, mas para todos os remédios necessários para combater o vírus. A narrativa de que os países em desenvolvimento não tenham condições de produzir vacinas - repetidamente sustentada por Bill Gates, Big Pharma e círculos afins – nessas alturas já resulta desprovida de fundamento.
O Public Citizen, que trabalha com o Imperial College de Londres há meses, indica cerca de 57 países prontos para iniciar a produção farmacêutica. Por sua vez, os Médicos Sem Fronteiras identificaram em um estudo vários produtores em condições de atender às exigências sanitárias que são totalmente desatendidas nos países de baixa renda - na África, apenas 27% dos profissionais de saúde são vacinados, segundo dados da OMS.
Mais ainda: uma investigação do 'New York Times' de outubro revelou a existência de capacidade necessárias para iniciar imediatamente a produção de vacinas de mRna de qualidade, em um cenário de distribuição ampla altamente desejável, não apenas porque aumentaria a imunização, mas também porque evitaria o surgimento de novas variantes.
A proposta da suspensão dos direitos de propriedade intelectual - patentes e correlatos - desfruta de um consenso bastante amplo na OMC: mais de cem Estados membros a apoiam. Um vasto grupo de organizações internacionais, entidades e representantes da comunidade científica, ganhadores do Nobel de economia e especialistas do mundo acadêmico se manifestaram a favor desta solução, prevista pelo direito internacional com o Tratado de Marrakesh (1994). Desde o Natal de 2020, o Papa Francisco vem reiterando a necessidade de não mais adiar o recurso a essa medida de justiça pandêmica. Uma mobilização generalizada da sociedade civil global trata desse tema há um ano, dia após dia, sem trégua. Mais de 700 parlamentares europeus assinaram a proposta, e o Parlamento Europeu, somente poucos dias atrás, votou por maioria a favor da moratória. É a terceira vez que uma resolução dessa natureza é aprovada. Mas a Comissão Europeia, juntamente com Grã-Bretanha, Suíça e Canadá, bloqueia as negociações há meses, enfraquecendo a Organização já moribunda.
Dentro do chamado Grupo de Ottawa - núcleo restrito de países ocidentais que defendem as razões dos monopólios - a UE se agita para garantir a derrubada da demanda da Índia e da África do Sul.
O truque mais recente é uma moratória sobre as licenças compulsórias, mas deixando de lado os tecnicismos, o que Bruxelas impôs ao mundo, G20 incluído, é a chamada Terceira Via. Um sistema que visa remover os atuais obstáculos ao aumento da produção de instrumentos essenciais contra o Covid-19, mas através de incentivos às indústrias farmacêuticas para que emitam licenças voluntárias para a transferência de tecnologias para empresas nos países do Sul do mundo, em troca da abolição de restrições comerciais, abatimento das barreiras alfandegárias, benefícios fiscais. Assim, os monopólios se salvam. Assim, mesmo em tempos de pandemia, a sociedade pode permanecer subordinada à lógica da concorrência e do mercado.
A decisão da OMC de organizar uma reunião de negociação entre os ministros do comércio dos 164 estados membros 'presenciais', em meio à nova onda de infecções na Europa, é altamente controversa devido a problemas de segurança óbvios. Dessa forma, vários representantes do Sul global não poderão vir porque seus países não têm voos comerciais operando na Europa ou para Genebra. Aqueles que estivessem em posição de comparecer, teriam que passar por quarentenas darwinianas sob o perfil financeiro. Os ministros imunizados com vacinas não validadas na Europa são especialmente observados com testes periódicos. Em Genebra, o debate sobre a legitimidade das decisões da MC12 está aberta. Para complicar ainda mais a situação, chega a notícia de que Grã-Bretanha, Alemanha, Itália e Suíça suspenderam as chegadas da África do Sul devido à última variante (B.11.529) identificada no país.
Uma variante complicada. Dotada de uma "constelação incomum de mutações", explica o Ministério da Saúde da África do Sul. Precisamente por isso, o adiamento é uma hipótese muito provável. O mundo está prestes a entrar no terceiro ano de pandemia, desde o primeiro foco reconhecido em Wuhan, e o Sars-CoV-2 continua a viajar, à vontade na inépcia da comunidade internacional, em um movimento feroz, mas vital, que nos fala da nossa ferocidade. Ele desmascara a doença como metáfora de uma condição humana que se acredita ser saudável, mas tem a alma murcha - Susan Sontag intuiu isso na época.
E os delegados presentes em Genebra representam uma pequena multidão "ocupada e gesticulando até a perdição", para usar a imagem de Emmanuel Mounier, que sob o manto de uma retórica solidária de equidade, de fato perdeu o último resquício de empatia. Como então acreditar na boa fé da Europa, quando a OMS exerce sua liderança sanitária para anunciar a inevitabilidade de um tratado pandêmico, com a aprovação da grande indústria farmacêutica? Na Assembleia Especial da OMS, que acontecerá online, o forte impulso para o tratado pandêmico resulta suspeito. Tem todo o ar de um jogo sofisticado para transformar a OMS – favorável à proposta da Índia e da África do Sul - no terreno de concretização da Terceira Via, a ser assegurada à OMC. A sofisticada estratégia imunopolítica europeia é perigosa, entretanto. Não salva o multilateralismo. Aliás, o prejudica.
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Vacinas, a Terceira Via da Europa coloca no corner os Países pobres. Artigo de Nicoletta Dentico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU