"As sociedades saberão resistir às tentações ditadas pelo desespero e pelo descontentamento enquanto o sistema tenta se corrigir? Ainda há tempo? Que espaço de negociação existe entre as regras do mercado global e as aspirações das pessoas ao bem-estar e à justiça? Em uma sociedade global onde tudo se troca, se monetariza, se banaliza, a defesa da democracia só pode começar com esses questionamentos", escreve Mario Giro, vice-ministro do Exterior italiano, em artigo publicado por Domani, 31-07-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Se olharmos para o fenômeno da desigualdade de uma perspectiva histórica, notamos que a partir da década de 1980 aquela entre os países diminui enquanto aquela dentro dos países aumenta, depois de ter ficado estacionária por muito tempo. A globalização mudou as cartas: não olha para as nações, mas para os indivíduos. A redistribuição da riqueza nos últimos vinte anos favoreceu o surgimento de novas classes ricas ou médias em todos os países. Assim, reduziu o desnível entre as nações, mas aumentou as distâncias internas, mesmo nos países desenvolvidos, provocando as reações que conhecemos.
Dentro dos Estados Unidos, por exemplo, após cerca de 40 anos de relativa estabilidade, a sociedade estadunidense parece ter apagado os progressos de igualdade que se iniciaram logo após a crise de 1929 e após a Segunda Guerra Mundial. É precisamente à classe trabalhadora "branca", rebaixada e empobrecida, que se dirige agora a propaganda populista e trumpiana. Com a "grande duplicação" da força de trabalho (a entrada no mercado de trabalho do antigo mundo do socialismo real que dobrou a mão de obra disponível) esperava-se uma redução dos salários para os menos qualificados nos países ricos, mas não que isso fosse rapidamente expandido também para as posições intermediárias e aos quadros.
Assim, o trabalho na indústria manufatureira, ou seja, a verdadeira economia real, caiu pela metade nos EUA, mais da metade na Grã-Bretanha e quase pela metade em outros países europeus. Ao mesmo tempo, os salários da alta administração global dispararam, favorecidos pelos novos ganhos auferidos e causando muitos descontentamentos na população. Segundo dados do Fundo Monetário Internacional, o cenário é contraditório: a desigualdade cresceu em todos os países ocidentais, mas também na China e na Índia, enquanto (pelo menos até antes da pandemia) diminuiu no Brasil, Turquia, Irã, muitos países africanos, Chile, Peru, Tailândia e assim por diante.
Nessa incerteza global surge o já citado “temor de rebaixamento” das classes médias ocidentais, enquanto paralelamente se forma - e se torna influente - a opinião insatisfeita das novas classes médias dos países emergentes - exigindo mais. Na Europa, as ansiedades da classe trabalhadora e das classes médias se transformaram em verdadeiras surpresas eleitorais. Afetados pela crise, eles temem ficar para trás e se perguntam se seus filhos conseguirão manter o mesmo padrão de vida. Por sua vez, as novas classes emergentes (a que no Brasil é chamada de classe C, numa escala A - D), ainda se sentem muito fracas e exigem garantias de que podem permanecer no nível que acabaram de adquirir e talvez até melhorá-lo.
A novidade é que a desigualdade agora pode ser vista a olho nu e desencadeia reações. Está em curso um curto-circuito global em duas frentes: na frente sul, o enriquecimento repentino de uma população acostumada à igualdade da penúria, à medida que aumenta, produz ressentimento social. As classes desfavorecidas veem a riqueza se aproximando, favorecer uma elite nacional, mas sem que a maioria ainda possa usufruí-la plenamente. Na ausência de welfare, corrupção, favoritismo, burocracia: tudo se torna intolerável. É o caso da China e da Índia, mas também do Brasil, assim que a economia desacelerou no ano passado. Na frente norte, o ressentimento se espalha com o corte do welfare, a disseminação de mini empregos sem garantias como na Alemanha ou a gig economy dos deliveries por exemplo, a precarização e o desenvolvimento da classe dos "working poors", aqueles que não conseguem chegar até o final do mês e tem que buscar mais empregos. É a "fratura social" que Jacques Chirac vislumbrou em sua campanha presidencial em 1995.
Velhas e as novas classes médias provocam a crise em ambas as frentes com consequências políticas: por isso são a essas classes que deve olhar que governa, tanto no norte quanto no sul do mundo. Dois aspectos preocupantes devem ser ressaltados: especialmente no Ocidente, as classes médias são também aquelas que pagam impostos e formam a espinha dorsal das democracias. Se esse equilíbrio desmoronar, o dano será colossal. Ao mesmo tempo, está se criando uma espécie de "não classe": aquela dos desempregados. São os que perdem o emprego depois dos 50 anos sem esperança de conseguir outro, os jovens inativos (Neet), muitas mulheres. São os "excluídos não representáveis", segundo a análise de Pierre Rosanvallon.
Embora não representem uma novidade absoluta na história, a desigualdade se tornou uma questão crucial. Por essas razões, Francis Fukuyama falou de uma "nova luta de classes", que diz respeito desta vez à classe média global. Esta última soma no total cerca de três bilhões de pessoas: é cerca de 40 por cento que detém 14 por cento dos recursos disponíveis. No entanto, não se trata de uma classe homogênea: os especialistas a calculam com base em uma renda por pessoa que varia entre 10 e 100 dólares por dia disponíveis. Como pode se ver, uma bifurcação bastante grande, projetada para reunir a classe média ocidental e aquela emergente do sul.
Segundo o Fundo Monetário Internacional, cerca de metade desses três bilhões são asiáticos, 25% europeus, 10% norte-americanos, 8% sul-americanos, o restante africanos e do Oriente Médio (para a África negra emprega-se outra bifurcação: entre 2 e 20 dólares por dia) Trata-se daquela parcela da população mundial que oscila entre a rebelião e a adesão ao autoritarismo das "democraturas". Em ambos os casos, o objetivo é sempre o mesmo: defender o próprio frágil status. O sentimento que prevalece neste universo, tanto nos países ricos como nos emergentes ou pobres, é um sentimento de "precariedade".
O economista francês Thomas Piketty fez fortuna com um livro - O Capital no Século XXI - no qual enfatiza as políticas necessárias para reduzir a desigualdade. “As classes médias - escreve - têm a impressão de que os mais privilegiados pagam menos do que eles (em impostos, tarifas, etc.). Tais desigualdades alimentam os populismos de direita e de esquerda, bem como o declínio da autorrepresentação soberanista”. Sua conclusão é simples: “sente-se cada vez mais a necessidade de uma regulamentação do capitalismo. Precisamos de instituições democráticas fortes que possam limitar o crescimento das desigualdades e reverter a relação de força. É errado pensar que tudo se resolve de maneira natural. Já vimos isso no passado: no primeiro ciclo da globalização, entre o século XIX e 1914, quando a fé cega na autorregulação dos mercados provocou desigualdades, tensões sociais, crescimento dos nacionalismos, até à guerra mundial”.
No entanto, muitos de seus colegas não acreditam que isso seja possível: a degradação das relações sociais estaria agora demasiado avançada para ser corrigida. Apenas a pandemia impôs um toque de freio a essa lacuna. Para alguns especialistas, o único resultado será uma reação violenta ou revolucionária ou uma involução autoritária igualmente violenta, uma vez que os regimes despóticos entenderam como participar da globalização sem pagar o preço da democracia.
Como se sabe, a consequência final desse processo seria a crise do sistema liberal-democrático. Entre as duas posições estão aquelas mais moderadas e otimistas que se reportam à velha teoria, mas ainda vital, do "flat world", o mundo que se tornou plano de Thomas Friedman: a globalização e as novas tecnologias terão, em qualquer caso, um efeito nivelador para todos. A inovação social e tecnológica possui uma força igualitária que acabará por prevalecer. O debate está aberto.
Após décadas de desvinculação entre economia liberal e as exigências da sociedade, questiona-se como esta última possa manter uma atitude racional e solidária, quando o grau de incerteza e insegurança atingiu níveis intoleráveis. As sociedades saberão resistir às tentações ditadas pelo desespero e pelo descontentamento enquanto o sistema tenta se corrigir? Ainda há tempo? Que espaço de negociação existe entre as regras do mercado global e as aspirações das pessoas ao bem-estar e à justiça? Em uma sociedade global onde tudo se troca, se monetariza, se banaliza, a defesa da democracia só pode começar com esses questionamentos.