02 Julho 2021
“As organizações não governamentais seguem insistindo em que os governos garantam uma redistribuição da riqueza justa e mais equitativa para garantir o acesso da população aos serviços públicos e suas infraestruturas, caso contrário, chegará um momento em que a distância entre ricos e pobres será tão grande que o sistema se tornará insustentável”, escreve Enrique Zamorano, jornalista, em artigo publicado por El Confidencial, 29-06-2021. A tradução é do Cepat.
Um dos efeitos mais paradoxais do capitalismo contemporâneo é que tende a produzir crises econômicas que diminuem os recursos e a qualidade de vida da população em geral, para depois se adaptar às circunstâncias e ver oportunidades de negócio e investimento por todas as partes.
Ao final, esta ‘serpente ouroboros’, que morde sua própria cauda, busca transformar o existente para gerar mais situações de vantagens e que os atores mais relevantes adquiram mais poder. Não em vão, os países que mais cresceram economicamente, nos últimos anos, também foram aqueles em que a curva da desigualdade socioeconômica mais se ampliou.
Além disso, a pandemia serviu para aumentar essa lacuna. Os últimos relatórios da Oxfam Intermón preveem que a pobreza e, por conseguinte, a desigualdade, irão se agravar assim que a crise sanitária passar, que apesar de não ter sido produzida pelo colapso de uma grande bolha imobiliária, como aconteceu em 2008, também servirá para reestruturar a ordem de poderes globais e engrossar ainda mais a lista de lucros e patrimônios daqueles estão na parte de cima da pirâmide social.
Essa tendência poderá ser revertida? Os mortais comuns gostariam de pensar que sim, mas o certo é que, ao final, como em todos esses anos, as elites econômicas continuem a corrida para acumular o máximo de capital ou taxa de lucro, em uma escalada da concorrência que voltará a abrir novas vias de negócio e de investimento.
No entanto, nas últimas semanas, foram publicados dois livros nos Estados Unidos, o país que mais hasteia a bandeira do capitalismo global e que conta com um sistema tributário mais frouxo para aqueles que mais possuem renda, que traçam um novo horizonte na percepção dos bilionários sobre sua própria riqueza e a vontade de alguns deles em alcançar uma redistribuição do dinheiro mais justa e equitativa. Ou, o que dá no mesmo, atuarem contra o seu próprio benefício pelo bem da sociedade em seu conjunto.
Ideal que, mais do que utópico, é contraditório, a julgar pela insensibilidade que parece estar presente nas altas esferas, em relação a temas tributários, e por conta de estar em elevada ascensão o liberalismo radical que defende (entre outras coisas) a nula intervenção estatal na economia e, assim, impostos mais baixos.
Em primeiro lugar, o do jornalista e escritor Michael Mechanic, intitulado Jackpot: How the Super-Rich Really Live and How Their Wealth Harms Us All, que analisa em profundidade a realidade cotidiana dos bilionários, chegando à conclusão de que seus altos níveis de riqueza não prejudicam apenas o resto da pirâmide social, mas também a eles próprios, na relação com sua família e amigos e, consequentemente, o seu bem-estar psicológico.
E em segundo, Tax The Rich!, de Erica Payne e Morris Pearl, ambos membros do clube de ultrarricos Patriotic Millionaires, que defendem uma redistribuição muito mais robusta e justa da riqueza, uma vez que, segundo a sua tese, se o sistema econômico quer sobreviver, e com ele todas as suas elites, aqueles com um alto padrão de vida precisarão se submeter a uma arrecadação tributária muito mais alta. Caso contrário, o aumento da desigualdade social tenderá a criar um clima de ira e descontentamento popular que produzirá uma explosão da insatisfação popular que atentará contra os privilégios ostentados por aqueles que atualmente estão na parte de cima.
Um dos pontos mais polêmicos e interessantes do livro de Mechanic é que tende a enxergar uma semelhança entre aqueles que tem um alto volume de capital e os que simplesmente não têm nada. “A riqueza extrema”, afirma em um fragmento citado pela The New Republic, “tem algo parecido com a pobreza em relação ao mal-estar psicológico que inflige”. A abordagem do jornalista é no mínimo curiosa, pois muitas pessoas que precisam trabalhar para ganhar a vida ou não têm acesso direto a uma fonte de renda digna podem se sentir ofendidas com sua tese.
Mechanic se vale de um estudo de 2018 para argumentar que, uma vez superado um limite de riqueza ideal, a partir do qual o indivíduo já não precisa gerar mais dinheiro para viver, o mesmo tende a relatar uma diminuição de sua qualidade de vida, bem como de seu bem-estar psicológico. Talvez resida aí a explicação de por que os ricos querem seguir acumulando mais e mais dinheiro ou permanecer na carreira empresarial, apesar de ter o seu padrão de vida garantido.
Existem coisas que o dinheiro não pode comprar, e o fato de possuir tal volume de riqueza só faz com que você invista mais dinheiro em bens e serviços que nem sequer precisa e que, além disso, geram mais gastos correntes, ou que o seu círculo próximo se distancie porque considera você um egoísta que não se deixa mais atrair pelos mesmos ambientes sociais de antes, aqueles mais humildes e ricos.
Sem falar do mal presente na inveja e o medo de que em um determinado momento alguém queira se aproveitar de seus ganhos por bem (mediante a chantagem ou pedido forçado) ou por mal (espalhando que você tem uma fortuna, tornando-se alvo de ladrões ou pessoas malvadas).
É preciso levar em consideração que é difícil extrapolar esta teoria para a Espanha, pois nos Estados Unidos a fronteira entre o rico e o pobre pode ser muito estreita. Afinal, é uma nação que se alimenta do mito de que a escada da ascensão social é muito rápida. Sendo assim, você pode acumular um bom pedaço de fortuna que o faça decolar a toda velocidade, como possuir todo o ouro do mundo, e em um curto período de tempo perdê-lo.
De fato, Mechanic e Payne falam daquelas pessoas que por um afortunado golpe do destino se tornaram podres de ricas: ganhadores de loteria, herdeiros de grandes quantidades de dinheiro ou proprietários de empresas privadas que o Estado absorveu e se tornaram públicas.
“Você começa a se tornar insensível ao luxo”, escreve Mechanic. “Na realidade, aqueles ativos de grande valor como mansões, iates, obras de arte, jatos privados ou cavalos puro-sangue precisam de empregados para ser administrados. Um cavalo, por exemplo, pode ser comprado por um preço relativamente barato, mas precisa de uma manutenção constante. Cada mansão exige ao menos uma pessoa para a limpeza, quando não cinco, junto com zeladores ou técnicos de piscinas ou socorristas. Quanto maior é a casa, maior é o número de funcionários. Uma grande riqueza dá muito trabalho, não importa o que você faça com ela”.
Sem falar da paranoia que é o fato de ter tanto dinheiro e bens para proteger. “Muitos viajam com segurança particular”, ressalta o jornalista. “Também há um serviço que treina as babás com técnicas de combate e vigilância, e entre muitas outras coisas, os empregados são incentivados a não publicar nada em redes sociais sobre suas férias, por medo da divulgação”.
E, é claro, você terá que contar com uma boa infraestrutura de segurança que torne sua casa um bunker que retenha e evite qualquer ameaça de roubo. Mais ainda em um país como os Estados Unidos, que possui tanta cultura armamentista. “Algumas das armas que eu vi nas casas dessas pessoas eram muito semelhantes às que saem nos noticiários quando falam do Iraque”, ressalta o escritor.
Ao longo de todo o livro de Mechanic, há depoimentos de pessoas com um grande volume de riqueza que vivem completamente paranoicas, considerando que algo ruim possa lhes acontecer. Talvez esse medo constante seja uma das razões pelas quais surgiram, nos últimos anos, ‘lobbies’ e associações de ultrarricos como Patriotic Millionaires, cujo presidente é justamente Morris Pearl, coautor de Tax the Rich!, junto com Erica Payne. No livro, defendem uma reforma tributária urgente para mitigar os efeitos da desigualdade social e pararem de se sentir constantemente ameaçados por pessoas anônimas que, seja por assuntos de inveja ou vingança, podem atacar suas propriedades.
O debate sobre aumentar a arrecadação tributária dos mais ricos está mais quente do que nunca, sobretudo na Espanha. Sem ir muito longe, existe uma grande divisão entre os grupos de esquerda PSOE e Unidas Podemos para aumentar o imposto às grandes fortunas.
Nos Estados Unidos, a associação Patriotic Millionaires tenta, desde 2010, convencer as elites políticas, tanto democratas como republicanas, de que é necessário efetivar uma reforma tributária muito mais robusta, visando aquelas pessoas que possuem grandes somas de capital.
Em seu livro, Payne relata como “um pequeno grupo de pessoas muito ricas gastou uma enorme quantidade de dinheiro para influenciar em um sistema político que redigisse leis tributárias em benefício delas”, para que assim, “mesmo que estejam no poder partidos de ideologias diferentes, ocorram recessões econômicas ou explodam bolhas imobiliárias, possam perpetuar e assegurar os seus lucros”.
Para Payne, os impostos são “um encontro entre a economia, a política e a ética”. O que isso quer dizer? “Os impostos não são uma ferramenta que só serve para arrecadar receitas para o Estado, que depois são revertidas para o gasto público, já que o governo pode gastar e gastar sem levar em consideração a arrecadação”, argumenta a integrante de Patriotic Millionaires. “Os impostos servem para restringir receitas muito altas, bem como para estabelecer normas de comportamento, entre outras coisas. A forma como tributamos as diferentes atividades econômicas fala sobre as nossas prioridades como sociedade”.
Embora a solução possa parecer muito simples, como apontar para uma redistribuição da riqueza melhor e mais real, na sociedade norte-americana é um assunto mais complexo. Em primeiro lugar, porque nenhum partido político se mostra a favor de uma reforma tributária significativa.
“Tanto os republicanos como os democratas, ao menos desde a era Reagan, perverteram o código tributário e geraram mais renda para os ricos”, afirma Payne. Nenhuma das duas opções quer falar sobre impostos. “Não é uma opção que os cidadãos, atualmente, possam escolher nas urnas”, embora reconheça que Biden prometeu um aumento dos impostos para as elites “como nenhum outro, em quase 30 anos”.
A crise sanitária que vivemos terá alguns efeitos socioeconômicos bem palpáveis nos níveis de desigualdade, que continuarão disparando. As organizações não governamentais seguem insistindo em que os governos garantam uma redistribuição da riqueza justa e mais equitativa para garantir o acesso da população aos serviços públicos e suas infraestruturas, caso contrário, chegará um momento em que a distância entre ricos e pobres será tão grande que o sistema se tornará insustentável.
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Assim é a nova elite de bilionários que querem acabar com a desigualdade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU