20 Novembro 2019
A democracia é o sistema político mais compartilhado e escolhido no mundo contemporâneo, mas não é um modelo estático. Muda, adapta-se, impõe-se, triunfa e também fracassa. Os países que experimentaram ditaduras e tiranias sabem que os trânsitos autoritários envolvem uma parcela significativa de sangue. Enquanto isso, e mesmo que a democracia decepcione, desaponte e não tenha respostas para a desigualdade que uma grande parte do planeta sofre, é a única que permite transformações, almeja a representação política e a possibilidade de que o futuro seja direcionado para um horizonte ideal. Disso se ocupa o grande historiador francês Pierre Rosanvallon, um intelectual de espírito inquieto que analisa em um planisfério mental as rachaduras, fissuras e projeções da democracia.
A situação latino-americana o comove e o envolve como pesquisador. As enormes manifestações do Chile, a libertação de Lula e o perigo de Bolsonaro no Brasil, e a situação incerta da Bolívia o mobilizam. Sobre a renúncia de Evo Morales, afirma: “Muitos regimes populistas mudaram gradualmente para a democracia, organizando uma forma de irreversibilidade por meio da manipulação eleitoral e golpes constitucionais, em particular. Este foi o caso da Venezuela. E a Bolívia parecia estar seguindo esse caminho, mas a revolta do país e a renúncia de Morales mostraram que essa mudança não era inevitável. Isso deveria chamar a atenção para esta questão-chave da reversibilidade como critério essencial do que define um regime democrático. Sob nenhuma circunstância deveria ser possível invocar a soberania do povo para enfraquecê-lo”.
Entre 19 e 21 de novembro, Rosanvallon estará em Buenos Aires convidado pela Embaixada da França, pelo Governo da Província de Santa Fé e pela Fundação Medifé, e dará conferências na Universidade Torcuato Di Tella e na Aliança Francesa de Buenos Aires. Antes de partir, conversou pelo telefone com Clarín-Revista Ñ, de seu escritório no Collège de France.
A entrevista é de Hector Pavon, publicada por Clarín-Revista Ñ, 15-11-2019. A tradução é do Cepat.
Em Buenos Aires, vai falar sobre a redefinição da democracia e das “ameaças de retrocesso”. Quais são essas ameaças?
A primeira é o autoritarismo como resposta ao poder público e também à demanda dos cidadãos de recuperar o controle do mundo. Na Grã-Bretanha, o lema do Brexit é: “We want to take control back”, “queremos retomar o controle” sobre nossas vidas, dizem. E recuperar o controle geralmente ocorre através de formas de poder autoritário que são apresentadas como as capazes de agir. É o que se chamou de democratura, ou seja, as eleições são respeitadas, mas com formas de poder autoritárias. A outra ameaça é a dos movimentos xenófobos e do populismo em geral. Isso é visto na Grã-Bretanha, Polônia, Hungria, Itália, inclusive na Alemanha.
Acaba de publicar um livro sobre a história da França, nos últimos cinquenta anos. Como avalia a qualidade da democracia francesa, neste meio século?
O sistema político na Europa encontrou um equilíbrio, com uma democracia fundada em uma organização de partidos políticos que representavam os diferentes setores da sociedade, com sensibilidade ideológica. Num contexto em que o partido também possui um programa que de algum modo dava uma perspectiva para o futuro. Agora, depois de vinte anos, e não apenas para a situação francesa, mas também para a Itália, Alemanha, Espanha, a sociedade mudou, não está mais simplesmente constituída por classes sociais, nem caracterizada por grupos profissionais, operários, empregados, comerciantes etc.
A sociedade está cada vez mais estruturada por trajetórias pessoais, situações individuais, dificuldades vivenciadas pelos cidadãos. E o mundo social não é representado da mesma maneira. Esta é uma sociedade fragmentada, onde existem comunidades de dificuldades, medos, angústias existenciais. Essa nova realidade não está representada pelos partidos políticos.
Mas, o que fazem os partidos políticos para responder às demandas desta época?
Seria possível dizer que os partidos políticos foram se dissolvendo gradualmente, não porque eram partidos tradicionais, e que foram partidos que de algum modo se tornaram velhos demais, mas porque a sociedade mudou. Além disso, o sistema político tradicional se decompôs, a noção de programa não tem mais o mesmo sentido em um mundo governado por crises e, neste momento, pode-se dizer que o futuro não é previsível. Os partidos políticos se inscreviam em uma visão do futuro que estava programada ou era programável.
Por essas duas razões, há uma espécie de atraso dos partidos políticos e uma espécie de momento de vazio que vivemos em todos os lugares. Os Estados Unidos desenvolvem formas de respostas novas do tipo populista. E, por sua vez, se desenvolvem não apenas movimentos sociais, mas revoltas existenciais. Os coletes amarelos na França, por exemplo. Algo semelhante ocorre no Chile, Líbano, Argélia, mesmo em países que não estavam democraticamente estruturados, há uma representação que cria uma reação às vezes incontrolável.
Você havia trabalhado a desigualdade em seu livro “La sociedad de los iguales”. Algo que não deixa de se agravar. A democracia pode sobreviver em um contexto tão difícil?
Sem dúvida, o sentimento de desigualdade cria elementos de revolta social em algum momento, mesmo que todas as desigualdades não sejam da mesma natureza. Vemos que os salários das estrelas de futebol, as estrelas do mundo do espetáculo, podem ser maiores do que os de um diretor-executivo de uma empresa. Percebe-se, então, que existe uma relação entre riqueza e mérito. E há também um sentimento de que se desenvolvam riquezas não merecidas: os cidadãos sentem que não são recompensados.
Há um movimento muito forte de revolução interna no capitalismo. E se não ocorrer essa revolução para superar essas desigualdades, é possível que se chegue a situações não revolucionárias de decomposição social. Vê-se que todos esses movimentos não são revolucionários, não há grupos preparados para tomar o poder, mas há uma crítica difusa do poder, especialmente do poder econômico junto ao poder político.
Há países que, poderíamos dizer, descobriram a democracia. Refiro-me aos do antigo bloco socialista e aos da “Primavera Árabe”. Que tipo de democracia praticam?
A situação não é totalmente análoga. Nos antigos países soviéticos, como Hungria, Polônia, República Tcheca, Romênia, foram conhecidas formas de democracia antes da chegada do poder stalinista. E o que se vê também é que estabeleceram uma democracia centrada no que eu chamaria de uma versão mínima da democracia, ou seja, o povo tem o direito de eleger seus dirigentes e rejeitá-los. E, de fato, as eleições funcionam lá como poderes ao mesmo tempo de legitimação e poderes de destituição, de recusa. Mas, a democracia não é apenas isso, é também que os cidadãos sintam que controlam sua existência, que exigem do poder que prestem contas do que faz. E o que mostram essas experiências é que, quando a democracia se limita ao eleitoral, vem a decepção.
Definir a democracia apenas como eleições políticas não é definir uma forma de sociedade, o que eu chamo de a sociedade dos iguais e a dos semelhantes. E, então, tem sido uma democracia um tanto hemiplégica a que se estabeleceu no Leste Europeu.
Quanto aos países da revolução árabe, foi uma revolução de destituição do poder corrompido, ou do poder autoritário, mas não houve projetos democráticos. O que se vê é que existe um poder social muito forte para chegar ao governo, mas não tem muita elaboração, eu diria, de uma visão comum, de uma democracia de futuro.
A 30 anos da queda do Muro de Berlim, leem-se pesquisas sobre a vida no Leste Europeu e se encontra a palavra “nostalgia”...
Houve uma visão um pouco mágica do fim do comunismo. Dizia-se que o fim do comunismo iria resolver todos os problemas. O fim do comunismo resolveu um problema importante, que é o da liberdade. Não se pode esquecer que havia centenas de milhares de cidadãos que foram prisioneiros, não havia liberdade de imprensa. No entanto, há uma decepção econômica. Diria que há uma mudança que todos reconhecem como muito positiva. Há uma esperança de prosperidade econômica, mas não há uma nostalgia do comunismo.
Ao analisar esta situação extraordinária vivida pelo Chile, que elementos em comum encontra com o movimento dos coletes amarelos?
Existem pontos em comum. Ambos são movimentos de exasperação, de expressão existencial, uma espécie de válvula de segurança que salta. São movimentos com capacidade de expressão, mas não de transformação. Um movimento social tem projetos precisos de transformação, de governo. Os coletes amarelos, os manifestantes no Chile e os de Beirute arrancam com a decepção frente ao estado das coisas existentes. Em princípio, é a expressão de um desajuste social. E sua particularidade é que não encontrou um catalisador.
Os coletes amarelos não tiveram um líder, rejeitaram a liderança. Da mesma forma, no Líbano não se busca um líder, os manifestantes pertencem a movimentos xiitas, como o Hezbollah, ou a movimentos cristãos. No Chile, há diferentes setores da sociedade, são movimentos de reação, exasperação, mas que rejeitam a ideia de líder porque querem continuar sendo movimentos de expressão e não querem ser cooptados rapidamente por um processo político.
E no subjetivo, qual é o eixo que atravessa realidades tão diferentes?
São manifestações de rejeição, de medo do futuro ameaçador.
Consequentemente, a crise da representação política se agrava?
Os dois principais partidos políticos que dominaram, nos anos 1970 e 1980, a vida política francesa reuniam 70% do eleitorado francês, atualmente, não representam mais que 10% ou 12%. É um sinal deslumbrante, quer dizer também que é necessário se perguntar o que quer dizer representar a sociedade. Quer dizer que o que se vive, seja expressado, levado em consideração. Ser representado não pode significar apenas ter um delegado, um porta-voz, alguém que carrega suas reivindicações. Ser representado significa que o que se vive e o que parece constitutivo de sua existência possa ser expressado na sociedade.
As séries de TV, os filmes, representam mais um mundo social que não é o mundo de todos. Isso também é a representação. Caso contrário, surge o sentimento de que se é invisível, de que não é escutado. Por isso, lancei um programa de edição de texto que se chamava “Contar a vida”, baseado em um manifesto que intitulei “o parlamento dos invisíveis”.
Vê-se na América Latina que existem governos sem um plano de gestão. Macron tem um plano e governa da melhor maneira possível?
Há duas coisas. Uma é que Emmanuel Macron venceu as eleições como um candidato antissistema, fora do mundo dos partidos. A tal ponto que competiu com outros dois candidatos populistas, Jean-Luc Mélenchon e, depois, Marine Le Pen. Os três tinham um discurso que em francês se poderia dizer degagiste (neologismo que vem do verbo degager, que significa limpar), onde se dizia que queriam varrer o passado. Isso foi essencial para Macron.
Macron era, inicialmente, um candidato do degagisme e também um candidato a um projeto que se poderia dizer social-liberal, e que muito cedo se revelou como um projeto somente liberal. E agora se pode dizer que é um projeto liberal-autoritário. Mas, por trás de todo projeto, também está a gestão, a pressão de um mundo que muda constantemente. Sem dúvida, para um presidente na Europa, as relações com a China são essenciais. Em suma, o futuro não pode ser tão facilmente planejado. É necessário tentar permanentemente manter o rumo em um mar meteorologicamente imprevisível.
Como avalia a qualidade da democracia estadunidense sob o governo de Trump?
Trump tem um comportamento típico de líder populista, mas com uma peculiaridade: tem um nível de vulgaridade quase único. Esse populismo vulgar tem uma consequência muito importante: para Trump tudo se resolve em um combate político entre aqueles que estão a seu favor e aqueles que estão contra. Não é mais importante ter um projeto positivo para o país, tudo é visto através de uma polarização da política.
No impeachment contra Nixon, vários republicanos votaram a favor porque lhes parecia que certas condições legais foram cumpridas. Da mesma forma, vários democratas votaram a favor do impeachment contra Clinton, porque consideravam que havia um problema de direito. Trump apresenta o impeachment apenas como uma questão de oposição política, e há muito poucos republicanos dispostos a votar a favor. Trump conseguiu que o Estado de Direito fosse considerado secundário frente à divisão política. Isso é muito sério, porque um país não depende apenas de uma Constituição escrita, depende do espírito das instituições.
Vemos que Trump é obrigado a seguir a Constituição formalmente, mas não segue as tradições constitucionais. A forma, por exemplo, com que obrigou o presidente do FBI a renunciar não foi algo estritamente ilegal, mas contrário à tradição democrática americana. Assim, vemos que o país que parecia ter um sistema muito forte de pesos e contrapesos também pode ser frágil. O que acontece nos Estados Unidos deveria ser um alerta para todas as democracias. Como o que aconteceu na Grã-Bretanha, um dos países considerados mais sólido democraticamente. Os países mais estruturalmente democráticos também podem vacilar.
Como vê a situação no Brasil com Bolsonaro e Lula livre?
Bolsonaro é um líder populista tradicional, mas coloca um acento sobre o conservadorismo social. Embora Trump se apoie nos evangélicos, não tem uma postura tão extrema como a de Bolsonaro em temas como o aborto ou coisas assim. Quanto à libertação de Lula da prisão, podemos esperar que marque um certo retorno ao Estado de Direito que havia sido abusado no Brasil.
O que pensa sobre o retorno do peronismo na Argentina?
Não penso nada. Vejo o resultado e vejo que se Macri perdeu a eleição, de alguma forma perdeu sua aposta. Quando há um fracasso político, hoje, a democracia se afirma como um poder destituinte, como uma revanche diante da decepção.
Como deve reagir o sistema democrático diante da verdade, da pós-verdade e das notícias falsas?
Esse momento de pós-verdade mostra que, no fundo, toda a realidade é vista através do prisma do interesse ou da divisão política. Nossas sociedades devem ser reeducadas completamente. É uma tarefa dos intelectuais, da vida universitária, da escola, mas também dos meios de comunicação. É necessário que o conhecimento não seja algo que pertença a um determinado grupo social, mas que seja um bem comum. Se o conhecimento aparece como algo do mundo privilegiado, dos liberais, esse conhecimento é rejeitado. É necessário um conhecimento que tenha modéstia.
Falo como professor do Collège de France, com muitos colegas cientistas. Hoje, existem pessoas que podem discutir algo com o Prêmio Nobel, porque fizeram uma pesquisa na Internet, o que significa que o Nobel precisa dar explicações sobre como chegou a esse conhecimento. A sabedoria e a verdade não são questões dadas, são um processo de pesquisa e crítica permanente. A verdade se pesquisa e esta pesquisa tem que se expressar em sua realidade, sua modéstia, suas dificuldades.
A verdade não pode ser arrogante, deve ser pedagógica e mostrar que não é propriedade de certas pessoas, de certas instituições ou grupos sociais, mas que é um bem coletivo ao qual todos devem se apegar, na discussão, na reflexão e na crítica. A verdade científica não é algo fechado, é uma reflexão que está sempre em movimento. Se a verdade não está em movimento, haverá um degagisme que irá se expressar contra, e chegará o obscurantismo.
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“Há uma revolução interna no capitalismo”. Entrevista com Pierre Rosanvallon - Instituto Humanitas Unisinos - IHU