Por: André | 04 Dezembro 2012
De todas as reflexões e livros que apareceram nos últimos anos sobre a democracia e a crise, o ensaio do professor Pierre Rosanvallon é o mais vasto e profundo. No livro A sociedade dos iguais, Pierre Rosanvallon traça a fascinante história das políticas a favor da igualdade que marcaram os séculos XIX e XX ao mesmo tempo em que moderniza o termo com contribuições reflexivas substanciais.
Pierre Rosanvallon ocupa desde 2001 a cátedra de História da Política Moderna e Contemporânea no Collège de France e é também diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais. Próximo do Partido Socialista francês, Rosanvallon tem como horizonte intelectual a reflexão sobre a democracia, sua história, o papel do Estado e a justiça social nas sociedades contemporâneas.
Seus livros foram traçando um corpo de reflexões que vão muito além do já trilhado diagnóstico do mal. A contrademocracia, a política na era da desconfiança, Por uma história conceitual do político, A legitimidade democrática ou O capitalismo utópico, história da ideia de mercado aportam um caudal impressionante de reflexões sobre um sistema político do qual, apesar de tudo, desconhecemos seus impulsos. A sociedade dos iguais responde perfeitamente à crise contemporânea marcada por uma perigosa dualidade: o avanço da democracia política, dos direitos, e o paulatino desaparecimento do laço social que cria e alimenta as sociedades democráticas.
Com grande rigor, Rosanvallon esmiúça as teorias da justiça promovidas por autores como John Rawls e seu conseguinte ideal: a igualdade de possibilidades e sua aliada principal, a meritocracia. Rosanvallon destaca como entre a revolução conservadora encarnada pela ex-primeira ministra britânica Margaret Thatcher e o ex-presidente norte-americano Ronald Reagan e a posterior queda do comunismo surgiu um novo capitalismo que mudou a fase da história. Mas esse novo capitalismo destroçou a capacidade de os seres humanos viverem e construírem juntos como iguais e não apenas como consumidores ou como forças majoritárias. Rosanvallon moderniza então o termo igualdade, entendida não como uma questão de distribuição das riquezas, mas como uma filosofia da relação social.
Nesta entrevista ao Página/12, realizada em Paris, Pierre Rosanvallon aborda aos conteúdos essenciais de seu livro.
A entrevista é de Eduardo Febbro e está publicada no jornal Página/12, 02-12-2012. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Praticamente para onde quer que se olhe, a democracia vive um potente processo de degradação. No caso concreto do Ocidente, tem-se a impressão de que os valores democráticos mudaram de planeta.
Isto se deve ao fato de que, nos últimos 30 anos, nos países da Europa, nos Estados Unidos e praticamente em todo o mundo, houve um crescimento extraordinário das desigualdades. Podemos inclusive falar de uma mundialização das desigualdades. Trata-se de um fenômeno espetacular. Nos últimos 20 anos, as diferenças entre os países se reduziram. Os lucros médios na China, Brasil ou Argentina foram se aproximando aos da Europa. Entretanto, em cada um destes países as desigualdades aumentaram. O exemplo mais espetacular é a China. Ao mesmo tempo em que a China se desenvolvia, as desigualdades se multiplicaram de forma vertiginosa. Este problema diz respeito ao conjunto dos países. A Europa é o caso mais emblemático, porque o aumento da desigualdade aparece depois de um século de redução das desigualdades. Entre a Primeira Guerra Mundial e a primeira crise do petróleo, nos anos 70, na Europa e nos Estados Unidos houve uma redução espetacular das desigualdades. Podemos dizer que, para a Europa, o século XX foi o século da redução das desigualdades. Agora estamos no século da multiplicação das desigualdades.
Neste sentido, você defende que ao mesmo tempo em que a democracia se afirma como regime morre como forma de sociedade sob o peso da desigualdade. O laço entre os cidadãos desaparece.
Como regime, a democracia tende a progredir em todo o mundo. Mas sabemos que a democracia se define também como uma forma de sociedade, uma sociedade na qual podemos viver juntos, uma sociedade da vida comum, uma sociedade com relações de igualdade. A democracia política do sufrágio universal e da liberdade progrediu ao mesmo tempo em que a democracia da sociedade dos iguais perdia vigência. Hoje vemos um divórcio completo entre o cidadão eleitor e o cidadão companheiro de trabalho. Na maioria dos países estão se multiplicando os guetos, as formas de secessão e de separatismo social. A história da democracia nos mostra que a democracia tinha como objetivo a construção de um mundo comum entre os habitantes de um país. Hoje vemos a multiplicação dos mecanismos de fechamento sobre si mesmo. Isso é muito perigoso, porque se a distância entre a democracia política e a democracia social continuar a se aprofundar, é a própria democracia política que corre um grande perigo.
Você chama esse processo de “desgarramento democrático”. Em suma, o desgarramento da democracia é o desaparecimento do laço entre os componentes da sociedade.
O grande problema da sociedade moderna está no fato de que é uma sociedade de indivíduos. Mas esses indivíduos devem formar uma sociedade todos juntos. Os indivíduos querem ter sucesso em sua vida individual, querem ser reconhecidos pelo que são, pelo que há de específico. Mas isto implica saber compor com essas singularidades e oferecer um marco comum. E é precisamente esse marco comum que nos está faltando. Por conseguinte, essa demanda de singularidade só se expressa mediante um individualismo galopante. Este problema do indivíduo está no coração da modernidade. Desde a revolução norte-americana e a Revolução Francesa, no final do século XIX, já estamos em uma sociedade de indivíduos. O desenvolvimento do capitalismo criou o fenômeno da classe operária, do partido de classe. Era então uma sociedade de indivíduos que recompôs as formas de solidez coletiva. Hoje essas formas já não existem mais. Por quê? Porque o que aproxima as pessoas não é o mero fato de que as pessoas compartilham uma condição, mas também o fato de que compartilham trajetórias, situações. Requer-se hoje outra forma para pensar o laço social.
Você redefine a noção de igualdade. Em sua análise é preciso abordar a igualdade não como uma redistribuição das riquezas, mas como uma relação social em si.
Precisamos que na sociedade haja redistribuição e também solidariedade, mas para que haja solidariedade é preciso que antes se tenha o sentimento de que pertencemos a um mundo comum. Foi isso que ocorreu na Europa: se o Estado providência tornou-se tão importante é porque houve a experiência das duas guerras mundiais, é porque interveio o medo das revoluções. Se o Estado providência foi tão importante foi porque houve o sentimento de uma desgraça vivida em comum, de uma vida em comum que resultou decisiva. Hoje, o que falta às nossas sociedades é precisamente a possibilidade de refazer o laço social. A igualdade é uma forma de refazer esse laço social. Um filósofo britânico, John Stuart Mill, tomava o exemplo da relação entre homens e mulheres. Mill dizia: a igualdade entre o homem e a mulher não consiste em que sejam os mesmos, em que se pareçam; a igualdade consiste em que vivam como iguais. O problema de nossas sociedades é esse: não vivemos como iguais. E não vivemos como iguais porque há pessoas que vivem em seus bairros fechados, em suas mansões rodeadas de muros e alarmes, enquanto outros vivem na pobreza. Não vivemos como iguais porque há cada vez menos espaços públicos, porque se multiplicam os subúrbios, onde pessoas que têm as mesmas opiniões, a mesma religião, o mesmo nível de vida vivem entre si (e neste sentido os Estados Unidos são um exemplo extraordinário). Temos então sociedades que estão fechadas em si mesmas e não em sociedades onde há um mundo comum. E a igualdade é antes de tudo isso: consiste em fazer um mundo comum. Mas esse mundo comum não pode ser construído se as diferenças econômicas entre os indivíduos são muito importantes, não se pode fazer um mundo comum se não há respeito pelas diferenças, se todo mundo não joga as mesmas regras do jogo. Por isso tentei construir essa ideia de igualdade redefinida como uma relação social em torno de três princípios: singularidade – reconhecimento das diferenças –, reciprocidade – que cada um jogue com as mesmas regras de jogo – e comunalidade – a construção de espaços comuns. Na história do mundo, se as cidades foram centros de liberdade foi porque criaram algo comum entre os indivíduos. As cidades não foram somente lugares de produção econômica ou lugares de circulação, não; as cidades estavam organizadas em torno do fórum, da praça pública e de espaços que permitiam a discussão entre uns e outros; é isso que hoje está desaparecendo.
Um dos capítulos mais profundos de seu livro é aquele em que desenvolve uma crítica contra as teorias da justiça promovidas por autores como John Rawls. Essa teoria da justiça, que dá legitimidade à ideologia da igualdade de possibilidades, é para você uma pirâmide invertida: promove a igualdade, mas acrescenta a desigualdade.
Se coloquei a igualdade no centro da minha reflexão intelectual foi para pôr fim a uma visão de progresso social percebida exclusivamente a partir do tema da igualdade de possibilidades. Está claro que a igualdade de possibilidades não existe mais. A ideologia do mérito, da virtude, da igualdade de possibilidades, não pode servir para reconstruir sociedades. Por isso critiquei as chamadas teorias da justiça. Essas teorias, inclusive através daqueles que apresentam as versões mais progressistas dessa teoria, gente como o Prêmio Nobel de Economia Amartya Sen ou John Rawls, seguem estando inscritas em uma filosofia das desigualdades aceitáveis enquanto essas desigualdades estiveram articuladas em torno do mérito, da ação do indivíduo. Esse não é o modelo da boa sociedade. O modelo da boa sociedade não é a meritocracia. O bom modelo é o da sociedade dos iguais entendida no sentido de uma sociedade de relação entre os indivíduos, uma relação fundada sobre a igualdade. Temos a impressão de que a noção de igualdade de possibilidades, sobretudo se a definimos de forma radical, pode ser uma visão de esquerda. Todo o combate político se joga entre a definição mínima e a definição radical da ideia da igualdade de possibilidades. Eu digo que devemos desconfiar dessa ideia da igualdade de possibilidades, porque se vamos até às últimas consequências acabamos justificando as desigualdades e também a falta de reação contra as desigualdades na medida em que essas desigualdades foram legitimadas. O grande sociólogo britânico Michael Young foi o primeiro a falar, nos anos 60, da meritocracia, que é um velho ideal dos séculos XVIII e XIX. Young definia como um pesadelo qualquer país que fosse governado pela meritocracia. E é um pesadelo porque então ninguém teria direito a protestar contra as diferenças. Se todas as diferenças estão fundadas sobre o mérito, aquele que tem uma condição inferior é por sua culpa. Trata-se então de uma sociedade onde a crítica social não teria mais lugar. Precisamos tomar consciência do limite do ideal meritocrático, do limite das teorias da justiça, do limite das políticas sobre a igualdade das possibilidades. Mesmo que essas teorias tenham seu campo de validade, elas não representam a bússola que deve orientar uma sociedade para sua transformação.
Os utopistas dos séculos XVIII, XIX e XX também faziam da igualdade sua aspiração maior. Você, no entanto, moderniza a ideia da igualdade quando assinala que não se trata de que todo mundo seja igual, mas de viver como iguais partindo da nossa própria singularidade.
Se observamos as utopias escritas nos séculos XVIII e XIX, toda a visão da igualdade está fundada sobre a ideia de uma homogeneidade, ou seja, todo o mundo tem que se parecer. Para esses utopistas, a ideia comunista, no sentido comunitário plasmado pela igualdade, era uma ideia fundada sobre o fato de que todo mundo se parecia, de que todos trabalhavam em um mesmo marco. Foi o que se chamou, em uma determinada época, de uma espécie de igualdade de posição ou igualdade da uniformidade. Essa visão correspondeu a uma era da humanidade, mas hoje quem gostaria de uma igualdade desse tipo, ou uma igualdade de uniforme para todos, ou uma igualdade que viria a negar as diferenças entre os indivíduos? Esses utopistas não queriam as diferenças entre os indivíduos. Queriam que todo o mundo vivesse no mesmo ritmo, que todos fossem, de alguma maneira, o duplo dos demais. Mas não é assim. Creio que a emancipação humana passa hoje pela condição de que cada pessoa seja reconhecida pelo que tem de específico. Por conseguinte, a igualdade não pode mais ser a uniformidade, nem a uniformidade de posição: a igualdade deve ser uma igualdade da singularidade. Devemos voltar aos fundamentos do que foi a revolução democrática moderna: fazer com que reviva em um sentido autêntico a noção de igualdade, que não é a noção de igualitarismo. O igualitarismo é a visão aritmética da igualdade. Mas o que eu procuro definir é uma relação da sociedade, uma ideia da igualdade como relação.
Para você, a ruptura com a filosofia política da igualdade é uma crise moral e antropológica, algo que vai muito além dos aspectos econômicos ou sociais. Você chama a esta situação de “desnacionalização” da democracia.
Há duas definições de nação: por um lado, pode-se conceber a nação como um bloco definido por uma identidade, pela homogeneidade. É a definição nacionalista de nação, para a qual só é bom o mundo homogêneo e a solidariedade só existe se formar um bloco homogêneo. Para mim, esta é uma definição arcaica de democracia. A definição democrática de nação consiste em que a nação é um espaço de redistribuição aceito, no qual as diferenças se compõem, até mesmo um espaço de aprendizagem do universalismo. Quando os Estados nacionais nasceram foi porque houve uma impossibilidade de realizar o universalismo em sua acepção máxima. Como não foi possível fazer o máximo, tratou-se de fazê-lo a partir do pequeno. A grande ideia democrática de nação consiste em ser um espaço de experimentação do universalismo a partir do pequeno. E quem diz experimentação do universalismo está falando de experimentação da solidariedade, da redistribuição, da organização das diferenças para viver em comum.
A modernidade parece encerrada em outro paradoxo. Por exemplo, o mercado é bom e ruim, aceito e criticado, desejado e temido. Isto leva à inação.
Se a ideia de mercado se impôs foi porque se aliou à ideia das preferências individuais. E os indivíduos têm relações ambíguas com o mercado. Se o mercado é definido como a ditadura longínqua do dinheiro contra a vida pessoa e social, a crítica do mercado, das bolhas especulativas, é aceita por todos. No entanto, se o mercado se apresenta como o campo dos consumidores, como aquele que vai permitir que se pague menos por determinados produtos, nesse caso a atitude frente aos mercados será menos negativa. Se o mercado aparece como portador de valores como a individualidade, será aceito mais facilmente. Dali provém a grande contradição do mundo moderno. Podemos dizer que o mercado é aceito e rechaçado secretamente. Há duas dimensões: é aceito porque veicula valores ligados ao indivíduo, porque veicula valores ligados à valorização do consumidor, mas, ao mesmo tempo, é rechaçado como sistema global de dominação que instala uma potência da abstração sobre a vida concreta dos indivíduos. Ninguém questiona o fato de que devemos viver em economias de mercado porque é uma forma de adequar a riqueza, de organizar os intercâmbios: não há como objetar isso. Mas, de certa forma, o mercado se torna uma tirania quando deixa de ser um instrumento e se torna um amo dominador. Estar alienado ou dominado significa ter as ideias do inimigo na cabeça. Diria que se o poder das oligarquias é tão forte, deve-se ao fato de que uma parte das suas ideias está na cabeça das pessoas. O terreno da batalha das ideias é absolutamente essencial. Nunca as oligarquias teriam sido tão potentes no mundo contemporâneo se a ideia do mercado não tivesse penetrado a sociedade através de alguns de seus aspectos positivos. A ideia penetrou a sociedade com postulados como a defesa do consumidor ou o sentido do indivíduo e, de alguma maneira, o mercado ganhou também uma forma de adesão das pessoas para seus maus aspectos: fez crer que seu lado ruim era inseparável do lado que parece positivo à população.
O capitalismo teve várias etapas. Você traça uma fronteira no modo de funcionar do capitalismo até os anos 70, o que você chama de capitalismo de organização, e a mudança que se produz depois com o capitalismo de inovação. Quais são as particularidades de ambos?
O capitalismo de organização é aquele que triunfou depois da Segunda Guerra Mundial e perdurou durante 30 anos. A força desse capitalismo de organização reside em sua capacidade de dominação do mercado por parte das empresas e em sua capacidade de organizar as empresas. Pois bem, a partir dos anos 70 passamos do capitalismo de organização ao capitalismo de inovação. No capitalismo de organização, o valor agregado não era o indivíduo, nem sequer o diretor geral. Mas, no capitalismo de inovação o que vai contar é o trabalho dos indivíduos. Não se pode imaginar a Microsoft sem seu chefe, a Apple sem Steve Jobs ou o Oracle sem o Alison. Neste novo capitalismo há, então, uma nova relação entre a contribuição dos indivíduos e o sucesso das empresas. Isso acarreta um paradoxo: há uma tendência a considerar legítimas as desigualdades nos lucros se se aceita que essas desigualdades estão ligadas à capacidade diferencial de inovação e à contribuição que isso representa para as empresas. No capitalismo de inovação, o trabalhador moderno não é apenas um elo, como ocorria com os trabalhadores das fábricas. Não. Esse trabalhador deve mobilizar-se pessoal e permanentemente para avaliar os problemas ou solucionar as dificuldades. Entramos em uma economia que fez da criatividade e da mobilização sua principal força produtiva. E se a economia fez da criatividade e da mobilização sua principal força produtiva, então produz-se um excesso que consiste em classificar os indivíduos segundo sua criatividade e sua suposta mobilização. E digo suposta, porque é muito difícil explicar por que um diretor ganha 500 vezes mais que um trabalhador. O diretor não contribui 500 vezes mais. Em uma equipe de futebol, é fácil identificar quem faz os gols; em uma empresa, inclusive se entramos em uma economia de inovação, o fenômeno segue sendo coletivo.
Sua obra e sua vida foram consagradas à democracia. Você não tem a impressão de que já ultrapassamos o estado de perigo e que estamos chegando a uma fase de eliminação da democracia?
Creio que ainda não chegamos ao estado da eliminação da democracia porque a sociedade espera algo. Vemos muito bem como as sociedades que conheceram uma multiplicação considerável das desigualdades são sociedades instáveis, que se tornam mais perigosas. A desigualdade tem um custo para todos. Isso é muito importante: uma sociedade desigual não tem somente um custo para os pobres. Estes, é verdade, são os primeiros concernidos, mas o custo não recai exclusivamente sobre os excluídos, mas é o conjunto da sociedade que será afetado, é a segurança de todos que é afetada, é a possibilidade de uma convivialidade que está questão.
Para você a democracia ainda é um regime insuperável.
A democracia é o regime natural do moderno. Estamos em sociedades que não podem mais ser reguladas pela tradição. Não se pode dizer que somos regulados pelo poder dos ancestrais. Estamos em sociedades que não podem regular-se recorrendo a uma lei divina. Por conseguinte, estamos em sociedades onde devemos organizar o mundo comum a partir da discussão pública. E se é tão decisivo é porque se trata de uma experiência que sempre é difícil. Quem vê a história da democracia como a história de um progresso que vai da tirania à democracia realizada se equivoca. A história da democracia é também uma história de sucessos e traições. No século XX, a Europa foi, por um lado, o continente da invenção da democracia e também o continente que viu as piores patologias da democracia. Os totalitarismos foram, em primeiro lugar, uma história europeia. O que me fascina na história da democracia é que é a história de uma experiência frágil e não uma espécie de progresso acumulativo. É a história de uma experiência, de uma indeterminação, é a história de um combate que nunca se acaba, de uma luta contra seus fantasmas que não termina de tornar mais clara a deliberação entre os cidadãos para que encontrem o caminho de uma vida comum. No fundo, a democracia é isso: organizar a vida comum sobre a deliberação de regras que se fixam e não sobre algo que nos teria sido dado adiantado, como uma herança.
Esse é, para você, o ponto central.
Sim, é o ponto central: a democracia é uma experiência sempre frágil. Não podemos nos tornar democratas crédulos: temos que ser democratas atentos, democratas vigilantes. Não há democracia sem vigilância de suas debilidades e dos riscos de manipulação. O cidadão não é simplesmente um eleitor. O cidadão deve exercer esta função de vigilância individual e coletiva.
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“A desigualdade se mundializou”. Entrevista com Pierre Rosanvallon - Instituto Humanitas Unisinos - IHU