22 Abril 2021
Não podemos conhecer a essência de Deus (quem é Deus) sem a revelação que o homem Jesus faz d’Ele, mas podemos conhecer a sua existência (que Deus é). É uma incognoscibilidade do quid e não do quod de Deus. A humanização de Deus nos revela o quid da sua essência.
O comentário é de Paolo Gamberini, jesuíta italiano, capelão da Universidade La Sapienza de Roma, em artigo publicado em Settimana News, 20-04-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O livro do teólogo espanhol José Maria Castillo – “Jesus: a humanização de Deus” (Ed. Vozes, 2015) – foi inicialmente publicado na Espanha em 2010. Junto com outros teólogos significativos (J. A. Pagola, J. Arregi e X. Pikaza), o autor representa a vanguarda da reflexão cristológica na Espanha.
Embora seja uma obra de fácil leitura e compreensão – mérito também da clara tradução para o italiano de L. Tommaselli e D. Culot – trata-se de um texto muito complexo e articulado.
A intenção fundamental do ensaio é de colocar no centro da reflexão cristológica o homem Jesus (as suas palavras e as suas obras, o seu estilo de vida e a sua mensagem), liberando a compreensão da sua pessoa de construções e incrustações ideológicas, provenientes não só das definições dogmáticas dos concílios (Niceia, Constantinopla, Éfeso e Calcedônia), mas também das várias reconstruções historiográficas realizadas pelas várias correntes de pesquisa histórico-crítica sobre Jesus.
O autor quer liberar a figura de Jesus das pré-compreensões desviantes que lhe foram dadas pelo sistema religioso ao longo dos séculos.
Não se trata de oferecer uma leitura “judaica” ou “não judaica” do homem da Galileia: ambas as leituras são insuficientes para captar a dimensão disruptiva que têm a mensagem e a pessoa do homem da Galileia.
“Crer nele” não significa estar certo das informações sobre o Jesus histórico ou ter uma imagem dogmaticamente segura dele, mas “estar convencido” da sua pessoa, compartilhando as suas escolhas, o seu comportamento e o seu estilo de vida.
O Jesus dos Evangelhos não é o apresentado pelos dogmas, nem o da pesquisa histórico-crítica, para a qual, defende o autor, “a fé não consiste apenas e principalmente em estar seguro sobre uma série de conhecimentos ou de verdades, mas em ter algumas convicções que geram uma conduta, um modelo de vida” (p. 29).
Esse pressuposto epistemológico é fundamental na construção da cristologia de Castillo, mas, ao mesmo tempo, contém uma aporia em seu interior. Se, por um lado, é verdade que não sabemos nada do que é o Transcendente, pois, como diz Agostinho, “si comprehendis, non est Deus” (Sermão 117); por outro lado, também é verdade que, para falar de humanização de Deus, é necessário pressupor um mínimo de significado quando se fala do Transcendente: isto é, d’Aquele sem o qual nada é e nada se conhece.
Afirmar que Deus “se situa em outro plano, não no plano das coisas” (p. 55) ou que Jesus “veio para nos dizer ou nos revelar algo sobre Deus que não sabíamos ou não podemos saber por nós mesmos” (p. 58) também significa pressupor pelo menos o conceito de criaturalidade.
Não podemos conhecer a essência de Deus (quem é Deus) sem a revelação que o homem Jesus faz d’Ele, mas podemos conhecer a sua existência (que Deus é). É uma incognoscibilidade do quid e não do quod de Deus. A humanização de Deus nos revela o quid da sua essência.
Pretender conhecer a Deus, negligenciando a Sua humanidade, significa cair nos labirintos da projeção humana. Assim, surge daí um círculo vicioso. O Deus “da religião” é a imagem deificada do poder (violento e excludente): um Deus não humano e tão divino que gera a desumanidade.
Especialmente na soteriologia, manifesta-se o rosto violento desse Deus religioso. O sofrimento e a morte de Jesus não seriam tanto as consequências inevitáveis de das escolhas feitas por Jesus em relação à instituição política e religiosa do seu tempo, mas sim o sacrifício exigido pela vontade perversa de um Deus que, para salvar o mundo, precisou do sangue do seu filho. A teologia do sacrifício e da expiação expressam essa desumanização de Deus.
Uma perversão semelhante ocorre quando o cristianismo pretende atribuir ao Deus de Jesus um caráter excludente em relação às outras religiões. Segundo Castillo, a diferença trazida por Jesus não é a de ter fundado uma religião superior às outras ou de ter se considerado divino, mas de ter tomado partido decisivamente pelo respeito e pela dignidade de cada homem e mulher. Para fazer isso, Jesus teve que romper o sistema religioso e político. A unicidade de Jesus consiste em ter realizado plenamente aquela humanidade que é acessível a todos nós – como seres humanos.
Jesus despedaça o círculo vicioso da divinização humana, pois faz experiência de Deus como Pai (Abbá) através da ação libertadora do Reino de Deus nos últimos: doentes, pequenos, pobres e pecadores. Deus revela a sua paternidade na práxis de Jesus: restabelecendo a saúde humana, fazendo florescer novamente relações interrompidas e compartilhando o pão da convivialidade.
Ao fazer isso, “Jesus mudou o nome de Deus, chamando-o de Pai e, com o nome, modificou o próprio conceito de Deus” (p. 354). Essa experiência singular de Deus como Pai motivou e está na base do projeto antirreligioso (portanto secular) e alternativo de Jesus em relação ao Templo e à Lei religiosa. A esse respeito, “a religiosidade de Jesus se separou da religião judaica em coisas absolutamente fundamentais” (p. 354).
No atual debate sobre o Jesus histórico, esse aspecto crítico da práxis de Jesus continua sendo o ponto mais controverso. Ao contrário de outros autores contemporâneos que compreendem a figura histórica de Jesus como a de um reformador religioso (E. Sanders e F. Bermejo Rubio, para citar alguns), Castillo opta decididamente por uma interpretação “não religiosa” de Jesus.
Para realizar isso, ele se apoia em autores – por exemplo J. Jeremias – que evidenciam mais os elementos de descontinuidade em relação aos judaísmo do século I. ”A leitura dos Evangelhos mostra uma imagem de Jesus que certamente não corresponde à ideia de um judeu observante e incondicionalmente submisso às práticas e às tradições religiosas, como se pretendeu fazer sobretudo recentemente, na compreensível tentativa do judaísmo de recuperar Jesus como fiel praticante da piedade e das tradições de Israel” (p. 249).
A diferença específica do judeu Jesus, portanto, não era uma variante do judaísmo da época, que se tornou uma diferença fundamental por causa da subsequente separação dos cristãos dos judeus. Segundo a interpretação do historiador Bermejo Rubio (“La invención de Jesus de Nazaret”), essa separação seria o resultado de uma ficção religiosa operada pelos discípulos em relação à pessoa de Jesus, para reelaborar o trauma subjacente entre eles após o fracasso trágico da morte de cruz do Nazareno. A confissão da divindade de Jesus expressa o resultado último dessa invenção da comunidade cristã primitiva.
O ensaio de Castillo se opõe a esse tipo de leitura do fenômeno de Jesus e se situa como uma alternativa a qualquer reconstrução judaizante da sua pessoa; mas, ao mesmo tempo, a cristologia de Castillo responde às abstrações desumanizantes dos dogmas cristológicos dos primeiros cinco séculos.
Como o autor repete frequentemente, “para Jesus o importante não era a Lei de Deus, mas sim a vida das pessoas” (p. 126). Não se trata, por isso, de analisar minuciosamente o quanto Jesus observou ou não da Torá e da Halachá de Israel.
Também não se trata de fundamentar as reflexões teológicas de Paulo e dos outros autores do Novo Testamento, assim como dos dogmas dos concílios, no Jesus histórico. Há uma mensagem bem mais relevante.
Nos gestos e nas palavras desse homem, Deus se fez dizível e cognoscível. Na interpretação da pessoa de Jesus, o critério não é um credo ou uma observância religiosa. Não é a religião que interpreta o Evangelho, mas é o Evangelho que submete a juízo a religião, libertando o homem de toda sujeição ao poder religioso e político. Jesus encarna este projeto (logos) humanizante do ser humano.
No mar infindável das atuais publicações sobre Jesus, o ensaio de Castillo, nos seus nove capítulos, propõe uma reflexão teológica não só interessante, mas também estimulante para o estudioso e para o leitor. É um texto bem escrito que nos incita a responder a duas perguntas: “Quem dizem as pessoas que eu sou?” e “E vocês, quem dizem que eu sou?” (Mc 8,26,29); uma obra que pode servir de bússola em meio a percursos historiográficos e cristológicos nem sempre fáceis e muitas vezes insidiosos.
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Jesus, o projeto humanizante de Deus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU