09 Abril 2021
“O poder formal está fundado no voto universal, na relação de maiorias e minorias e na alternância. E o poder oculto que não vai às eleições também precisa de um consenso que não se expressa nos mecanismos eletivos, mas na sua aceitação pela grande maioria da sociedade civil como conatural. A cultura, a educação e a comunicação desempenham seu papel para condicionar a subjetividade coletiva aos padrões do capitalismo e da meritocracia”, escreve Ricardo Rouvier, sociólogo e analista político argentino, em artigo publicado por Télam, 07-04-2021. A tradução é do Cepat.
Trata-se de compreender o mundo contemporâneo, especialmente se o que se quer é transformá-lo. O peso do século XX sobre nossos ombros é muito forte e é difícil avançar com a desconstrução requerida para definir uma visão.
Além disso, a história continua mostrando uma dinâmica de espiral ascendente em que cada etapa traz elementos da anterior e outros que anunciam o novo. A evolução se torna palpável na materialidade da inovação, caso deixemos de lado aspectos que têm haver com a subjetividade em matéria de felicidade coletiva.
O coração do sistema é aquela velha instituição conhecida como propriedade privada dos meios para gerar riqueza, que desde a sua origem fundou a desigualdade, que se mantém e se aprofunda a ponto de, segundo a ONG britânica Oxfam dedicada à caridade, as oito pessoas mais ricas do mundo acumularem mais riqueza que a metade da população do mundo mais pobre, cerca de 3,6 bilhões de pessoas. Não é exagerado destacar isto como um desastre humanitário, no qual a cultura criou a filantropia como uma forma de os ricos agradarem aos deuses.
Um dos aspectos destacados no Ocidente é a democracia como a conhecemos, destinada a harmonizar os interesses do mercado e a sobrevivência do Estado. Expande-se a partir da Segunda Guerra Mundial e funciona para a ordem do espaço público, que pertence a um sistema mais complexo, no qual se cruzam lutas pelo sentido e determinações entre o econômico, o jurídico e o político. O Estado não é o reflexo idêntico do poder real, mas afirma sua existência na lei e a força, ao passo que subterraneamente a concorrência e a concentração se realizam por trás da democracia.
A metáfora arquitetônica marxista de infra e superestrutura não é mais um instrumento pedagógico eficiente (Gramsci a abandonou em 1931), mas isso não significa que, nestas reflexões, não sejam levadas em conta algumas categorias de análises e relações intrassistema que provenham dessa fonte. O objetivo é alcançar um diagnóstico profundo e objetivo, que não prescinda da ideologia do observador, mas que faça um esforço para conseguir maior aproximação. Dizemos ideologia como projeto de mundo, como destino, evitando acomodar a realidade em nossas ideias prévias.
O desafio do século XXI exige outros mecanismos, outros dispositivos para entender a atualidade, e deveria fundar uma nova práxis política. As perguntas pela luta de classes ou pelo sujeito da emancipação são categorias em estado de problema e que são apresentadas pelo pós-marxismo. Nos casos de Laclau e Dussel, voltam ao conceito de povo desalojando a luta de classes como motor principal. Também emerge uma conhecida questão: O uso da democracia formal permite uma escalada reformista a partir da participação e as organizações populares? A luta democrática é insuficiente? E se for, qual é o caminho?
A crise democrática em todo Ocidente supõe a desilusão de uma das obras mais apreciadas da civilização, ao ponto de que pelo esgotamento dentro do subsistema político, levantam-se vozes da extrema direita. Surge algo chamado por alguns analistas de “Autocracia Eletiva”, que supõe um forte centralismo, continuísmo e uma fragilização das instituições para o debate. Suspeitamos que por trás destas novidades estão sendo preparados novos ataques ao populismo progressista na América Latina. Hoje, na Europa, a ultradireita está presente em cinco governos e 22 parlamentos da aliança.
Sob o político – como administração do Estado e posicionamento de forças sociais e políticas – está o poder real não visível, e o poder real gere o mecanismo de criação de riqueza ampliada, e isso decorre da própria imanência do capitalismo. Uma das promessas não cumpridas da democracia liberal, segundo Norberto Bobbio, é a eliminação do poder invisível, ou também chamado de duplo Estado.
Apesar disso, a democracia é preferida pela grande maioria, mas não se consegue que os cidadãos se entusiasmem com a mesma a ponto de participar. Ao contrário, a norma tácita é que quando os homens e mulheres ganham as ruas e intervêm, a democracia está em perigo.
Em nossa análise, embora buscamos evitar o determinismo econômico, não é possível negar que a modalidade de criação de riqueza é o motor dinamizador de todo o sistema, e também sua incidência no subsistema político. A partir das ações de pressão dos grupos concentrados, destinadas a maximizar os lucros, minimizar os impostos e proteger a propriedade, a ordem política condiciona a liberdade de seus cidadãos a aceitar o reinado do mercado.
Na base do dispositivo hegemônico também está a cultura correspondente a uma etapa civilizatória que antes era considerada uma superestrutura determinada pelo econômico, e agora é considerada uma parte indispensável do poder real que naturaliza e confere justificativa ao sistema. O senso comum é uma parte central da cultura que produz consensos e reproduz cotidianamente a legitimidade do vencedor. Se não houvesse subjetividade coletiva cooptada pelo poder, não haveria poder efetivo.
O poder formal está fundado no voto universal, na relação de maiorias e minorias e na alternância. E o poder oculto que não vai às eleições também precisa de um consenso que não se expressa nos mecanismos eletivos, mas na sua aceitação pela grande maioria da sociedade civil como conatural. A cultura, a educação e a comunicação desempenham seu papel para condicionar a subjetividade coletiva aos padrões do capitalismo e da meritocracia.
Então, produz crenças, narrativas e impõe costumes sociais. Inclusive, ultimamente, desenvolve um formidável aparato de serviços de entretenimento. Todas estas condutas são conjugadas e estimuladas para que a hegemonia se eternize.
Antes de chegar ao monopólio ou oligopólio midiático, o sujeito é recrutado pela sociedade a partir de sua domesticação. E na socialização primária se faz com que o sujeito acredite em sua liberdade, mais do que realmente possui. Como o sistema é aberto e muda (é um erro acreditar que a hegemonia só é representada por conservadores. Essa é mais uma tendência que integra o bloco dominante, existem também os modernizadores), verifica-se um notável aumento das liberdades civis, e uma maior integração social no mundo. Paradoxo entre desigualdade e integração. Sim, é um paradoxo entre tantos outros apresentados pelas hegemonias na história da humanidade.
Na outra ponta do planeta emerge uma potência mundial fundada no desenvolvimento econômico do Oriente, favorecida por uma avalanche de investimentos provenientes do capitalismo mais avançado. Mas, hoje, dentro da concorrência bipolar mundial, está em jogo dois sistemas políticos diferentes e antagônicos. Assim como dissemos que a democracia formal não cumpre suas promessas, que os modos de representação fracassam, também levantamos várias interrogações a respeito do futuro do modelo político asiático, a partir do protagonismo crescente de seu mercado interno e sua incidência nas relações sociais.
A atual pandemia e as crises das dívidas externas de muitos países apontam que, apesar do grave impacto dos setores de trabalhadores e pobres, mulheres, jovens e aposentados, a situação social ficará aquém da recuperação econômica. É preciso restabelecer o consumo e o Estado se ocupará disso, e os fornecedores privados pressionarão para que isso aconteça nos países capitalistas de mercado, e de forma mista na República Popular.
Esta não é uma época revolucionária, os caminhos estão bloqueados e a hegemonia econômica mundial hoje transcorre com contradições e conflitos, com uma concorrência bipolar entre as superpotências. Se cabe a possibilidade de um destino bélico, não sabemos, porque o entrelaçamento de interesses entre as duas também é uma condição. Outro paradoxo: são inimigas e são sócias.
Este cenário apresenta aos países periféricos novos desafios para se posicionar no mundo, pois não existem opções polares entre capitalismo e comunismo, ou entre Ocidente e Oriente. Mesmo a contradição entre a República Popular da China e os Estados Unidos é dirimida mais no plano comercial do que militar, e não há desembarques ideológicos dos asiáticos.
A contemporaneidade se estrutura na convergência de desenvolvimentos históricos globais que abarcam da biopolítica à cultura digital. Os países centrais do Ocidente seguem ostentando a liberdade de expressão, de imprensa, o respeito aos direitos humanos, a defesa da democracia formal. São valores constitutivos das nações neoliberais. Os Estados Unidos voltam a hasteá-los para o seu posicionamento estratégico mundial.
Vão dizer que há falsidades por trás destes valores. Claro que existem. Não há hegemonia, nem a do século XII ou a do XXI, sem adulteração. A propriedade privada dos meios de produção é anterior aos seis séculos de capitalismo e é, como dissemos, o núcleo central do sistema e encontra na economia moderna a possibilidade de seu máximo desenvolvimento.
O individualismo triunfante impulsionado pelo neoliberalismo desloca o coletivo como sujeito de transformação. A democracia formal sem participação, e na solidão do quarto escuro, realiza este ideal de cidadão livre e não de comunidade livre.
A ideologia dominante é o neoliberalismo. Uma das identidades que lhes são atribuídas é o desaparecimento do Estado. Coisa que não é bem assim, pois recorre a ele, sobretudo quando ocorre o incêndio como na crise do petróleo, dos anos 1970, ou na crise das hipotecas, de 2008, ou agora com a pandemia.
O Estado foi e é um ator principal durante os seis séculos de capitalismo, mas os setores dominantes não querem um Estado intervencionista, assim como não querem uma comunidade participativa. As duas coisas reduzem a marca do indivíduo, mais ainda: reduzem a margem de manobra do capital.
A democracia está em questão. É uma institucionalidade que coabita com maior ou menor compromisso com o poder formal e também com o poder real. Oculta este último, faz de conta que não existe, e deixa que a política seja compreendida só pela legalidade.
No momento, não existe uma alternativa global ao sistema, mas tentativas de reformas para melhorar seu desempenho. É preciso decidir se a democracia será aproveitada para ser aprofundada.
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Poder e democracia. Artigo de Ricardo Rouvier - Instituto Humanitas Unisinos - IHU