20 Março 2021
No texto veterotestamentário, escrito por volta de 600 a.C., encontra-se uma sentença crucial para o tempo presente: “Escreve isto em um livro para memória” (Êxodo 17,14).
"Ocorre que a Constituição de 1988, por meio do poder soberano constituinte, estabeleceu uma nova Ordem Democrática no país, colocando por terra não somente o ordenamento jurídico que lhe foi anterior, como também toda a orientação doutrinária autoritária e organizativa que lhe dava sustentação", escreve Alexandre de Aragão Alburquerque em seu artigo.
A memória é um dos alicerces que dá sentido e direção à vida humana. Diz respeito à nossa capacidade de conservar e relembrar experiências e informações relacionadas ao passado relativas aos processos de convivências de humanos entre si e com o meio socioambiental no qual estão inseridos. Tem a ver com o testemunho pessoal, com os diversos testemunhos de outros humanos, além daqueles de natureza institucional, com seus objetos e fatos públicos. Por isso a importância fundamental do seu registro.
Em março de 1985 a Arquidiocese de São Paulo, sob o pastoreio do eminente cardeal franciscano Paulo Evaristo Arns (1921-2016), publicou um livro intitulado Brasil nunca mais cujo objetivo, nas palavras do prelado, era o de compartilhar as angústias e esperanças do povo brasileiro que vivia num período doloroso de sua história, “afinal o próprio Cristo, que passou pela Terra fazendo o bem, foi perseguido, torturado e morto, legando-nos a missão de trabalhar pelo reino de Deus que consiste na justiça, verdade, liberdade e amor”.
Trata-se de uma ampla, profunda e cuidadosa pesquisa, reunindo as cópias da quase a totalidade dos processos políticos que transitaram pela Justiça Militar brasileira, entre abril de 1964 até março de 1979, portanto por 15 anos, especialmente aqueles que atingiram a esfera do Superior Tribunal Militar (STM).
E por que foi adotada esta orientação metodológica de investigar os registros oficiais da ditadura militar como fonte básica da pesquisa?
Já o havia comprovado o pensador francês Michel Foucault, em seu livro “Vigiar e Punir”, ser possível reconstruir boa parte da história de uma época por meio do processo penal arquivado no Poder Judiciário de cada país. A verdadeira personalidade do Estado ficava gravada ali na forma de sentenças judiciais. Assim, também no Brasil, seria possível recuperar a história das torturas, dos assassinatos de presos políticos, das perseguições policiais e dos julgamentos tendenciosos, a partir dos próprios documentos oficiais que procuravam legalizar a repressão daqueles 15 anos. Dessa forma chegar-se-ia a um testemunho irrefutável, com uma dimensão de prova indiscutível, definitiva.
A finalidade, portanto, daquele trabalho foi o de revelar à consciência nacional, com as luzes da denúncia, uma realidade obscura mantida em segredo nos porões da repressão política hipertrofiada a partir de 1964, em plena observância do preceito evangélico que aconselha o conhecimento da verdade como pressuposto para a liberdade e a libertação: “a verdade vos tornará livres” (Jo 8, 31-42).
Como ilustração segue, retirado do livro, o registro do Conselho de Justiça Militar de Juiz de Fora – MG, em 1970, documentando que o método de tortura foi institucionalizado em nosso País e que a prova está no fato de se ministrarem aulas a este respeito: O estudante de 25 anos, Maurício Vieira de Paiva, serviu de cobaia numa aula que se realizou na Polícia do Exército do Estado da Guanabara, foi ministrada para 100 (cem) militares das Forças Armadas, sendo seu instrutor um tenente Hayton, daquela unidade militar. Na página 32, o livro denuncia que “a tortura no Brasil passou, com o Regime Militar, a ser incluída em currículos de formação de militares”. Não era um ensino meramente teórico, mas prático, “com pessoas realmente torturadas servindo de cobaias neste macabro aprendizado”. Em um dos registros militares consta que um aluno do Colégio Militar, nível médio, a título de prestar estágio no IPM, participou de uma dessas aulas de torturas cominadas a um ser humano.
Ontem (17), estranhamente, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5), sediado em Recife-PE, decidiu, a pedido da Advocacia Geral da União do governo Bolsonaro, permitir que se possam fazer celebrações oficiais do aniversário do golpe que instalou a ditadura militar de 1964 no Brasil. Um regime fechado, repleto de Atos Institucionais autoritários, que endividou o Brasil externamente; praticou arrocho salarial; lacrou o Congresso; cassou mandato de parlamentares; perseguiu servidores públicos, trabalhadores da cidade e do campo; executou prisões arbitrárias; suspendeu o instrumento do Habeas Corpus; exerceu a censura e controle aos movimentos sociais, à cultura e à Imprensa; outorgou a Constituição autoritária de 1967; torturou e executou opositores políticos.
Ocorre que a Constituição de 1988, por meio do poder soberano constituinte, estabeleceu uma nova Ordem Democrática no país, colocando por terra não somente o ordenamento jurídico que lhe foi anterior, como também toda a orientação doutrinária autoritária e organizativa que lhe dava sustentação. Com a Constituição Cidadã, a ditadura militar, com seus entulhos ideológicos, foi sepultada. O resgate da memória desse tempo se dá não com celebrações festivas, mas como luto e reflexão crítica. Na Alemanha, por exemplo, não há celebração oficial do período autoritário.
No dizer do sociólogo francês Alain Touraine (O que é democracia. Vozes, 1996), a democracia é antes de tudo um sistema aberto, cuja secularização é sua expressão cultural, afirmativa dos direitos humanos baseados no direito fundamental de cada ser humano, cada vez mais, ser livre de poderes absolutos e autoritários. A vontade democrática é garantir que os sujeitos possam agir livremente, discutindo de igual para igual a respeitos dos seus direitos e garantias. Uma democracia é vigorosa na medida em que alimenta e é alimentada por um desejo de libertação, voltando-se constantemente contra as formas de autoridade e repressão que atinjam a experiência mais pessoal. É não somente um conjunto de garantias institucionais, como também a luta dos sujeitos contra a lógica dominadora dos sistemas autoritários.
Como se não bastassem o descaso e a total incompetência do governo federal, desde o início da pandemia, pela mortandade diária de brasileiros e brasileiras com a Covid-19 (ontem se atingiu o recorde diário de 3.149 óbitos), esse ataque à democracia, com a decisão do TRF-5 viabilizando celebrações oficiais do período autoritário, enterrado política e juridicamente pela nova Ordem Democrática da Constituição de 1988, vem denunciar a que nível de perversidade se chegou com o Golpe de 2016.
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Finalmente, o que é democracia? Artigo de Alexandre de Aragão Alburquerque - Instituto Humanitas Unisinos - IHU