08 Abril 2021
"O povo brasileiro continua afundado em uma das maiores sexta-feira da paixão da nossa história. Mais de 340 mil irmãos e irmãs nossos já foram crucificados pela covid-19 e pela política de morte genocida em curso no Brasil", escreve Gilvander Moreira, Frei e padre da Ordem dos carmelitas.
Frei Gilvander é doutor em Educação pela FAE/UFMG, licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR, bacharel em Teologia pelo ITESP/SP, mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália, assessor da CPT, CEBI, SAB, Ocupações Urbanas e Movimentos Populares e professor de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
É tempo de Páscoa, mas o Brasil continua afundado em uma das maiores sexta-feira da paixão da nossa história. Sob as boas energias da Páscoa, que é passagem da escravidão para a libertação de todas as correntes, com a alegria da presença de Jesus Cristo ressuscitado no nosso meio, em nós, nos empobrecidos e em todos/as os/as crucificados/as da história, em todas as forças de vida, temos que seguir a luta pela salvação do povo brasileiro. A quaresma de 2021 passou, mas a quarentena que a pandemia requer precisa continuar e com maior rigor. A Campanha da Fraternidade Ecumênica de 2021 terminou, mas tornou-se necessário encararmos de forma permanente a luta para que o tema “Fraternidade e Diálogo: compromisso de amor” se torne uma realidade perene no nosso conviver social.
Escrito cerca de 40 anos após os acontecimentos, no Evangelho de Marcos, na Bíblia, em Mc 15,33-41 podemos encontrar uma cena altamente eloquente: Jesus de Nazaré crucificado. “Escuridão sobre toda a terra”. Jesus exclama: “Eloi, Eloi, lamá sabactâni?”, que quer dizer: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” [...] “Jesus lançou um forte grito, e expirou. A cortina do santuário se rasgou de alto a baixo, em duas partes. Um oficial do exército, que estava bem na frente da cruz, viu como Jesus havia expirado, e disse:
“De fato, esse homem era mesmo Filho de Deus!””. De fato, condenaram um justo e inocente, que de tão humano se tornou Filho de Deus, à pena de morte, sob crucifixão – a pena mais execrável imposta pelo Império Romano -, após processo falso, sob a presidência de juízes suspeitos e parciais, em duas instâncias:
1) uma religiosa, sob Caifás, sumo-sacerdote, que presidia o sinédrio - um tipo de senado religioso, administrativo e jurídico – dominado por saduceus, os grandes invasores de terra da época que expropriavam os camponeses empurrando-os para a miséria;
2) e uma instância política, sob Pilatos, governador imposto pelo Imperialismo Romano, que “lavou as mãos”, mas pela neutralidade impossível ficou com as mãos sujas de sangue, pois “entregou Jesus para ser crucificado”.
Com essa trama brutal dos podres poderes da época, só podia mesmo resultar em “noite escura sobre toda a terra”. Por ter se tornado sumamente humano, Jesus Cristo sente o horror da crueldade que lhe era imposta e clama: ‘Por que está acontecendo isso comigo? Meu Deus me abandonou?’ Eis uma experiência profundamente humana. Quando uma tragédia se abate sobre nós, as primeiras perguntas são: Por que isso? Tem a mão de Deus nisso? Entretanto, precisamos afastar e banir a interpretação bíblico-teológica que chega ao absurdo de afirmar que Jesus Cristo teria sido crucificado, porque Deus quis para nos salvar da condenação após a morte. Esta afirmação é absurda e execrável, por vários motivos:
1) Um Deus que quisesse a morte do seu filho seria um deus sádico e masoquista, não seria Deus, Pai e Mãe de infinito amor;
2) Não podemos espiritualizar e negar a trama histórica acontecida, que diz que Jesus foi condenado à morte, torturado e crucificado, porque pelo seu ensinamento libertador e por sua práxis transformadora, ele consolava quem estava sendo injustiçado/a e, assim, incomodava muito os opressores que eram titulares dos poderes religioso, político e econômico;
3) Jesus Cristo se tornou servo sofredor e doou sua vida por amor ao próximo, testemunhando que o caminho para construirmos uma verdadeira Páscoa inclui necessariamente doar a vida pelo próximo colocando em prática a lógica do amor e os princípios da misericórdia e da indignação contra toda e qualquer injustiça. Isso desmascara os opressores e exploradores.
A ressurreição de Jesus Cristo atesta que faz história e aponta o caminho justo a seguir quem se doa ao próximo construindo uma sociedade justa, solidária, (macro)ecumênica, sustentável ecologicamente e respeitosa quanto à imensa diversidade cultural. Por outro lado, foi, é e sempre será jogado na lata de lixo da história os opressores e exploradores, os que adoram na prática o ídolo capital. Nas entrelinhas, Jesus crucificado pergunta: “Meu Deus, meu Deus, para que me abandonaste?” Diante desta pergunta, nas entranhas da história, o Deus de infinito amor responde: ‘Não te abandonei. Os opressores te condenaram à morte cruel, mas eu estou contigo, porque te amo imensamente assim como amo todos/as os/as outros/as bilhões de filhos/as. Desta brutalidade surge um sinal: que todos/as sigam o seu exemplo, vivendo e lutando como você, meu amado filho viveu e lutou’.
“A cortina do templo se rasgou”. Ou seja, o projeto de Jesus rompeu radicalmente com o projeto dos podres poderes acumpliciado com o Império Romano. E também não há mais separação entre história profana e história da salvação. Há uma única história e é nas entranhas da história que o divino age e está ressuscitado no nosso meio. Por fim, é olho-no-olho, cara-a- cara, que até um ser humano usado para reproduzir a escravidão e a superexploração do Império Romano, um soldado, concluí: “Realmente, este crucificado é Filho de Deus!”
O povo brasileiro continua afundado em uma das maiores sexta-feira da paixão da nossa história. Mais de 340 mil irmãos e irmãs nossos já foram crucificados pela covid-19 e pela política de morte genocida em curso no Brasil. “Eu não consigo mais respirar”, clamam pedindo socorro milhares de irmãos e irmãs nossos entubados ou na fila de espera por uma UTI. A espada de dor da fome voltou a golpear milhões de corações de mães que ouvem seus filhos pedindo pão e não têm para lhes oferecer. O coronavírus está sendo letal para milhões em todo o mundo. Quem tem fome tem pressa, pois a fome mata como uma bomba que implode a pessoa por dentro e impõe morte lenta. Em dois, três anos, com a política de morte do inominável antipresidente, o povo brasileiro empobreceu a níveis de “50 anos” atrás. Ai de quem negar os sinais dramáticos da brutalidade da pandemia da covid-19 e do desgoverno dos fascistas e genocidas que se apossaram do poder no Executivo Federal e está também em cerca de 70% do Congresso Nacional e com tentáculos no Supremo Tribunal Federal (STF), em empresários que adoram o ídolo capital e em pessoas cegadas por fake news disseminadas por fundamentalistas que dizem defender abstratamente a família, mas não praticam o que dizem, estão matando milhões de famílias aos poucos, de muitas formas!
Os sinais são alarmantes. O número de mortos pela covid-19 e de difusão do contágio segue aumentando dia a dia. Só em março último, foram 66 mil mortos no Brasil, número maior do que o número de vítimas no mesmo período em 109 países. Já ultrapassamos a média de 3 mil mortos por dia. E os dados oficiais de hospitais brasileiros apontam que o número de mortes por covid-19 já pode ter passado de 443 mil, quase 120 mil a mais que as estatísticas divulgadas pelo desgoverno federal. A mesma estimativa aponta que morrem cerca de 4 mil pessoas por dia no país. Pelos registros oficiais, com apenas 3% da população mundial, o Brasil tem 33% das mortes por dia no mundo. Pesquisa da Universidade de Washington e de vários pesquisadores brasileiros, entre os quais o neurocientista e professor catedrático da Universidade Duke (EUA) Miguel Nicolelis, prevê para abril 100 mil mortos pela covid-19 podendo chegar em julho de 2021 com quase 600 mil mortos. Estão em falta vários tipos de remédios necessários para cuidar dos milhares que estão internados em UTIs. Assim, de abril a junho poderemos ter cerca de 300 mil mortos, o que levará o Brasil ao colapso funerário e a um ponto de não retorno da pandemia. Segundo o professor Miguel Nicolelis, esse colapso funerário resultará em contaminação do solo, do subsolo, dos lençóis freáticos, podendo eclodir muitas outras doenças epidêmicas gravíssimas. Todos os alertas dos cientistas têm se cumprido.
Repudiamos com veemência a decisão do ministro Nunes Marques, do STF, de 03 de abril, que determinou a abertura de igrejas para cultos/celebrações, fazendo, assim, uso político do Judiciário para favorecer interesses econômicos de grupos, inclusive religiosos, amparado em falsas e grosseiras motivações constitucionais. A liberdade de culto não pode comprometer outros direitos como a saúde e a vida das pessoas. Malditos os falsos religiosos que abusam da fé dos pobres para se enriquecerem, estão mais interessados no dízimo do que em cuidar espiritualmente das pessoas. Caso o plenário do STF não casse a decisão injusta do ministro Nunes teremos um aumento do contágio e daqui a 15 dias veremos o aumento do número de pessoas com covid-19 e de mortos. Prescrever que haja cultos com apenas 25% da capacidade das igrejas é medida insana, porque no 1º dia após a decisão vimos pelo Brasil afora centenas de igrejas lotadas. As prefeituras e a Polícia Militar não têm efetivo suficiente para fiscalizar todas as igrejas.
O descontrole da pandemia exige com urgência o que já foi feito em vários países bem governados: lockdown nacional rígido de pelo menos 30 dias, sem aglomerações, com circulação apenas de atividades essenciais, com fechamento de portos, aeroportos, rodovias e rodoviárias. Tornou-se questão de vida ou morte: evitar aglomerações, levar a sério as medidas sanitárias de distanciamento social e corporal, uso correto de máscaras, higienização das mãos com frequência, vacinação de pelo menos 2 milhões de pessoas por dia, auxílio emergencial justo e digno, de, pelo menos, 600 reais para mais de 60 milhões de pessoas até o fim da pandemia, políticas públicas que garantam a vida das micro, pequenas e médias empresas. Quem no desgoverno federal e no Congresso Nacional determinou o fim do Auxílio Emergencial de 600 reais em dezembro de 2020 e a recriação somente de uma migalha de 250 reais apenas após três meses sem nenhum auxílio está sendo cúmplice do genocídio do povo e está com as mãos encharcadas de sangue.
Não dá mais para tolerarmos a cumplicidade de 70% dos deputados/as e dos/as senadores/as e de parte do STF com o genocídio protagonizado pelo desgoverno federal. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e o presidente da Câmara Federal, Arthur Lira, ao não colocarem em votação os mais de 60 pedidos de impeachment do antipresidente, estão sendo cúmplices do genocídio em curso.
O STF também está tolerando o intolerável: política de morte que viola com requintes de crueldade a Constituição Federal. Na prática, o Congresso Nacional e o STF estão tentando servir a dois senhores: o mercado idolatrado (interesses do grande capital) e a vida do povo, oferecendo apenas migalhas para a parte mais empobrecida da população e bilhões para os banqueiros, por exemplo. Com medidas paliativas, a pandemia seguirá se agravando e matando massivamente. O Evangelho de Mateus registra que para Jesus Cristo “ninguém pode servir a dois senhores. Vocês não podem servir a Deus e ao capital” (Mt 6,24).
Enfim, quanto mais continuar só com vacinação a conta gotas, sem auxílio emergencial justo e digno e sem lockdown sério, só aumentarão os milhares de mortos; podendo chegar a mais de 1 milhão. E a quem está resistindo, sugiro já ir treinando e se acostumando a viver com pouco, de forma simples e austera, pois nunca mais será possível voltar ao “normal capitalista de antes”.
Precisamos voltar ao estilo de vida dos povos originários, dos indígenas, Povos e Comunidades Tradicionais: conviver de forma respeitosa com a natureza e cultivar um estilo de vida simples.[1] Eis a condição para a humanidade não ser extinta da nossa única Casa Comum, o planeta Terra.
[1] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.
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Brasil na UTI: e agora? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU